15/01/2011

Diálogos apostólicos




Volto a repetir: não lhes dês ouvidos. 

Não são teus amigos e ponto!

Quem, de verdade quer o teu bem só pode desejar que sejas feliz e tu, meu caro, já sabes muito bem onde está a felicidade.

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 (ama, 2011.01.15)

O mistério da felicidade (Afonso Cabral)


Navegando pela minha cidade
Sempre que passo pela Rua de Camões lembro-me do meu pai. Lembro-me do meu pai e da história que um dia escreveu sobre um dos seus doentes. É essa história que passo a transcrever:

«Tive um amigo que se chamava Francisco e era criado de Café. Nasceu em qualquer aldeia do Minho e radicara-se no Porto, em busca de trabalho.
Foi numa característica casa portuense, que encontrei, pela segunda e última vez, o meu amigo Francisco.
A casa, como tantas outras do Porto, tinha o seu longo e estreito jardim rectangular, encostado à zona de serviço do rés-do-chão por um pátio lajeado sobre o qual descia, da varanda do primeiro andar, uma escada de largos degraus de granito, formando um desvão fechado onde se guardava o carvão e a lenha que abasteciam os fogões, no tempo em que ainda não havia gás nem electrodomésticos.

Conheci o Francisco, três semanas antes, no consultório.
Logo à primeira vista, todo o seu aspecto revelava um lamentável estado de saúde. Era um homem novo, impressionantemente magro, muito pálido, com uma tosse húmida e impertinente.
O seu fato castanho-listrado, polido e bastante coçado pelo uso, não disfarçava a perfurante magreza dos joelhos e omoplatas.
O olhar mantinha-se vivo e brilhante, denunciando um misto de profunda tristeza, bem dominada, e de revolta agressiva que, a cada momento, se inflamava.
A temperatura reconfortante do consultório e o repouso, foram-lhe restituindo as forças e diminuindo a “falta de ar”.
Contou, lentamente, a história de uma vida em que o pouco que ganhava era gasto no jogo e no deboche.
Já há bastante tempo se sentia enfraquecer e que sobreviera aquela “maldita” tosse acompanhada de pequenas e frequentes hemoptises. Sabia que estava tuberculoso, e não lhe interessava viver. Apesar disso, completei a consulta. O Francisco estava tísico no último grau, de nada valendo qualquer tentativa de tratamento entre os poucos recursos de que então se dispunha e que ele, aliás, recusava tenazmente.
Procurei conduzir a conversa para zonas mais profundas e íntimas, com a intenção de o ajudar a sofrer e a morrer: não era difícil prever que teria uma sobrevivência muito curta.
Disse-me que vivia absolutamente só e que há muitos anos abandonara todas as práticas de vida de piedade religiosa. Segundo declarava, tinha fé em Deus, mas abominava os padres. Explicou-me que a atitude abusiva do abade da sua aldeia tinha “atirado para a desgraça” uma jovem que ele então namorava.
O tempo e a vida que levou haviam apagado os ódios pessoais que naquele momento se projectavam sobre todo o clero e sobre a Igreja.
Tentei, em vão, oferecer-lhe os apoios morais que me ocorreram; procurei, discretamente, desalojá-lo da posição rígida em que se encaixava; por fim, pedi-lhe que me mandasse chamar sempre que precisasse ou quisesse.
Negou-se a indicar o seu endereço: “tinha vergonha que fosse a sua casa...”.
Despediu-se mais sério e mais triste. Senti-me desarmado, mas pedi à Secretária que atendesse com urgência, qualquer recado que recebesse daquele doente.
Passadas três semanas chegou um pedido para o visitar na Rua de Camões. Adiei todo o programa desse fim de dia, nevoento e frio. Com a velocidade que o trânsito permitia, parei à sua porta, e bati insistentemente. Alguém me apontou o caminho escuro do pátio lajeado e do desvão da escada de granito.

A carvoeira, caiada de branco, estava transformada num quarto de dormir onde mal cabiam três móveis rudimentares e toscos.
O Francisco, sentado na cama, apoiava-se no colchão sobre as duas mãos espalmadas, os braços esqueléticos esticados, os ombros salientes. Voltou para mim uma cara desfigurada, arroxeada-escura, boca entreaberta e seca, olhos arregalados, gritando por socorro. Sem ter tempo para mais nada, correspondi a esse apelo aflitivo: “Já sei, meu amigo, você quer que lhe vá buscar um padre”. Um vago movimento de cabeça e uma mudança quase imperceptível no olhar, fizeram-me sair apressadamente. Voltei acompanhado por um Capuchinho.
A porta da carvoeira fechou-se. Fiquei no pátio escuro e húmido, fixando a luz amarelenta que saía pelas frinchas da velha porta.
Passado pouco tempo, o padre Capuchinho fez-me sinal para entrar. O meu amigo Francisco, agarrando-se com firmeza à minha mão direita disse textualmente o seguinte, com muita dificuldade mas com muita clareza: “muito obrigado; “vou-me lembrar do que fez por mim”.
Pouco depois, puxou-me para mais perto de si e, pronunciando muito bem cada palavra, acrescentou: “nunca imaginei ser tão feliz”. E repetiu, acentuando: “nunca, nunca....”. Alguns minutos depois perdia a consciência e, em pouco tempo, deixava de respirar.
Aos pés da cama, o padre Capuchinho rezava baixo; e eu, entre imprecisas orações, perdia-me em desgarrados pensamentos sobre a dor e a morte.

Desde esse dia, sobretudo nas horas de maior preocupação, as últimas palavras do meu amigo Francisco, voltavam a soar aos meus ouvidos, com extrema clareza.
Não esquecerei jamais a expressão de sofrimento de todo o seu corpo sentado na cama e lutando desesperadamente contra a asfixia. Mas o que domina sempre o campo da minha memória, com serenidade e confiança, é o misterioso segredo da sua imensa e profunda felicidade.»

Afonso Cabral, 2011.01.15

                                                                                        






Maturidade

TEMA PARA BREVE REFLEXÃO


A maturidade humana, manifesta-se, sobretudo, em certa estabilidade de ânimo, na capacidade de tomar decisões ponderadas e no modo recto de julgar os acontecimentos e os homens. 

(Concílio Vaticano II, Decreto Optatum Totius, nr. 11)



Evangelho e comentário do dia


Tempo comum - I Semana


Evangelho: Mc 2, 13-17

13 Foi outra vez para a beira mar. Todo o povo ia ter com Ele e Ele ensinava-os.14 Ao passar viu Levi, filho de Alfeu, sentado no banco dos cobradores de impostos, e disse-lhe: «Segue-Me». Ele, levantando-se, seguiu-O. 15 Aconteceu que, estando Jesus sentado à mesa em casa dele, estavam também à mesma mesa com Jesus e os Seus discípulos muitos publicanos e pecadores; porque eram muitos que também O seguiam. 16 Os escribas e fariseus, vendo que Jesus comia com os pecadores e publicanos, diziam aos discípulos: «Porque come e bebe o vosso Mestre com os publicanos e pecadores?». 17 Ouvindo isto, Jesus disse-lhes: «Não têm necessidade de médico os sãos, mas os doentes; Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores».

Comentário:

Este: “segue-me” de Jesus deveria ter tal inflexão de voz, tal profundidade de tom, tal alcance que não era possível a quem ouvia esta interpelação deixar-se ficar sem reagir de imediato. Segue-me, talvez fosse uma interpelação comum feita pelos Mestres de Israel aos seus discípulos. Não parece contudo que se possa pôr no mesmo plano que esta convocatória de Jesus. Aqui há uma decisão súbita, não preparada. Não houve uma apresentação prévia entre Jesus e Mateus. 


O Evangelista refere claramente que Jesus ia a passar e que viu Levi no seu posto de trabalho. Não cita nenhuma troca de palavras entre os dois, nem sequer um cumprimento em que ambos se dão a conhecer um ao outro.

Logo, esta interpelação de Jesus, mais que um convite, soa como que uma ordem imperativa que não admite recusa.

De facto, Levi, não tem qualquer hesitação e, levantando-se segue Jesus com tal naturalidade que, provavelmente, alguns dos circunstantes poderia ter pensado que se tratava de algo combinado previamente.
Constatamos que este seguimento de Jesus, esta correspondência pela parte de Mateus ao chamamento do Mestre, é para valer, uma decisão para toda a vida. A partir daquele momento, o cobrador de impostos tem a sua vida intimamente ligada à vida de Jesus Cristo.
Não faz a mais pequena ideia do que Cristo lhe vai pedir, nem sequer lhe pode passar pela cabeça que virá a ser um dos quatro inspirados a contar a história da salvação concentrada na narrativa da vida de Jesus na terra.

Durante o banquete percebe perfeitamente que as palavras de Jesus lhe dizem respeito, quando refere que não veio para chamar os justos mas os pecadores. E sente-se de tal forma honrado como pecador que se transforma num justo demonstrando o seu arrependimento e desejos de ressarcir o mal eventualmente praticado.

A outros, Jesus explicou os Seus planos: «farei de vós pescadores de homens», a Mateus não, deixa-o descobrir por si mesmo o que quer que faça. E, afortunadamente, Mateus, descobre a sua missão, o papel que, a partir de agora, lhe compete desempenhar na campanha do anúncio da chegada do Reino de Deus: assistir e ouvir com redobrada atenção, à actuação e palavras do Senhor para, mais tarde, as poder lavrar em livro para que a posteridade saiba, fidedignamente, o que o Salvador fez e disse. 


(ama, comentário sobre Mt 2, 13-17, 2010.12.07)


Doutrina

«RERUM NOVARUM»

Obrigações dos operários e dos patrões

10. Entre estes deveres, eis os que dizem respeito ao pobre e ao operário: deve fornecer integral e fielmente todo o trabalho a que se comprometeu por contrato livre e conforme à equidade; não deve lesar o seu patrão, nem nos seus bens, nem na sua pessoa; as suas reivindicações devem ser isentas de violências e nunca revestirem a forma de sedições; deve fugir dos homens perversos que, nos seus discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças exageradas e lhe fazem grandes promessas, as quais só conduzem a estéreis pesares e à ruína das fortunas.

Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objecto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços. O cristianismo, além disso, prescreve que se tenham em consideração os interesses espirituais do operário e o bem da sua alma. Aos patrões compete velar para que a isto seja dada plena satisfação, para que o operário não seja entregue à sedução e às solicitações corruptoras, que nada venha enfraquecer o espírito de família nem os hábitos de economia. Proíbe também aos patrões que imponham aos seus subordinados um trabalho superior às suas forças ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo.

Mas, entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém. Certamente, para fixar a justa medida do salário, há numerosos pontos de vista a considerar. Duma maneira geral, recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria e especular com a indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas; que cometeria um crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a qualquer no preço dos seus labores: «Eis que o salário, que tendes extorquido por fraude aos vossos operários, clama contra vós: e o seu clamor subiu até aos ouvidos do Deus dos Exércitos» (Tg 5,4). Enfim, os ricos devem precaver-se religiosamente de todo o acto violento, toda a fraude, toda a manobra usurária que seja de natureza a atentar contra a economia do pobre, e isto mais ainda, porque este é menos apto para defender-se, e porque os seus haveres, por serem de mínima importância, revestem um carácter mais sagrado. 
A obediência a estas leis — pergunta-mos nós — não bastaria, só de per si, para fazer cessar todo o antagonismo e suprimir-lhe as causas?