Navegando pela minha cidade |
«Tive um amigo que se chamava Francisco e era criado de Café. Nasceu em qualquer aldeia do Minho e radicara-se no Porto, em busca de trabalho.
Foi numa característica casa portuense, que encontrei, pela segunda e última vez, o meu amigo Francisco.
A casa, como tantas outras do Porto, tinha o seu longo e estreito jardim rectangular, encostado à zona de serviço do rés-do-chão por um pátio lajeado sobre o qual descia, da varanda do primeiro andar, uma escada de largos degraus de granito, formando um desvão fechado onde se guardava o carvão e a lenha que abasteciam os fogões, no tempo em que ainda não havia gás nem electrodomésticos.
Conheci o Francisco, três semanas antes, no consultório.
Logo à primeira vista, todo o seu aspecto revelava um lamentável estado de saúde. Era um homem novo, impressionantemente magro, muito pálido, com uma tosse húmida e impertinente.
O seu fato castanho-listrado, polido e bastante coçado pelo uso, não disfarçava a perfurante magreza dos joelhos e omoplatas.
O olhar mantinha-se vivo e brilhante, denunciando um misto de profunda tristeza, bem dominada, e de revolta agressiva que, a cada momento, se inflamava.
A temperatura reconfortante do consultório e o repouso, foram-lhe restituindo as forças e diminuindo a “falta de ar”.
Contou, lentamente, a história de uma vida em que o pouco que ganhava era gasto no jogo e no deboche.
Já há bastante tempo se sentia enfraquecer e que sobreviera aquela “maldita” tosse acompanhada de pequenas e frequentes hemoptises. Sabia que estava tuberculoso, e não lhe interessava viver. Apesar disso, completei a consulta. O Francisco estava tísico no último grau, de nada valendo qualquer tentativa de tratamento entre os poucos recursos de que então se dispunha e que ele, aliás, recusava tenazmente.
Procurei conduzir a conversa para zonas mais profundas e íntimas, com a intenção de o ajudar a sofrer e a morrer: não era difícil prever que teria uma sobrevivência muito curta.
Disse-me que vivia absolutamente só e que há muitos anos abandonara todas as práticas de vida de piedade religiosa. Segundo declarava, tinha fé em Deus, mas abominava os padres. Explicou-me que a atitude abusiva do abade da sua aldeia tinha “atirado para a desgraça” uma jovem que ele então namorava.
O tempo e a vida que levou haviam apagado os ódios pessoais que naquele momento se projectavam sobre todo o clero e sobre a Igreja.
Tentei, em vão, oferecer-lhe os apoios morais que me ocorreram; procurei, discretamente, desalojá-lo da posição rígida em que se encaixava; por fim, pedi-lhe que me mandasse chamar sempre que precisasse ou quisesse.
Negou-se a indicar o seu endereço: “tinha vergonha que fosse a sua casa...”.
Despediu-se mais sério e mais triste. Senti-me desarmado, mas pedi à Secretária que atendesse com urgência, qualquer recado que recebesse daquele doente.
Passadas três semanas chegou um pedido para o visitar na Rua de Camões. Adiei todo o programa desse fim de dia, nevoento e frio. Com a velocidade que o trânsito permitia, parei à sua porta, e bati insistentemente. Alguém me apontou o caminho escuro do pátio lajeado e do desvão da escada de granito.
A carvoeira, caiada de branco, estava transformada num quarto de dormir onde mal cabiam três móveis rudimentares e toscos.
O Francisco, sentado na cama, apoiava-se no colchão sobre as duas mãos espalmadas, os braços esqueléticos esticados, os ombros salientes. Voltou para mim uma cara desfigurada, arroxeada-escura, boca entreaberta e seca, olhos arregalados, gritando por socorro. Sem ter tempo para mais nada, correspondi a esse apelo aflitivo: “Já sei, meu amigo, você quer que lhe vá buscar um padre”. Um vago movimento de cabeça e uma mudança quase imperceptível no olhar, fizeram-me sair apressadamente. Voltei acompanhado por um Capuchinho.
A porta da carvoeira fechou-se. Fiquei no pátio escuro e húmido, fixando a luz amarelenta que saía pelas frinchas da velha porta.
Passado pouco tempo, o padre Capuchinho fez-me sinal para entrar. O meu amigo Francisco, agarrando-se com firmeza à minha mão direita disse textualmente o seguinte, com muita dificuldade mas com muita clareza: “muito obrigado; “vou-me lembrar do que fez por mim”.
Pouco depois, puxou-me para mais perto de si e, pronunciando muito bem cada palavra, acrescentou: “nunca imaginei ser tão feliz”. E repetiu, acentuando: “nunca, nunca....”. Alguns minutos depois perdia a consciência e, em pouco tempo, deixava de respirar.
Aos pés da cama, o padre Capuchinho rezava baixo; e eu, entre imprecisas orações, perdia-me em desgarrados pensamentos sobre a dor e a morte.
Desde esse dia, sobretudo nas horas de maior preocupação, as últimas palavras do meu amigo Francisco, voltavam a soar aos meus ouvidos, com extrema clareza.
Não esquecerei jamais a expressão de sofrimento de todo o seu corpo sentado na cama e lutando desesperadamente contra a asfixia. Mas o que domina sempre o campo da minha memória, com serenidade e confiança, é o misterioso segredo da sua imensa e profunda felicidade.»
Afonso Cabral, 2011.01.15
Esta história, verídica, tem em si, encerra, de facto, duas histórias:
ResponderEliminarA primeira é a solicita atenção de um homem profundamente humano e profundamente cristão, como era o Pai do Afonso.
A segunda é um verdadeiro exemplo de como o apostolado pode e deve ser feito: aproveitando todas as ocasiões que se nos deparam para levar os outros a Deus.
E, assim fazendo, o Pai do Afonso levou - literalmente falando - o seu paciente à salvação eterna.