A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIII
CAPÍTULO IV
Porque é que os que são absolvidos dos seus pecados pela graça da
regeneração, não são libertados da morte que é a pena do pecado?
Se porventura alguém perguntar porque é que essa primeira morte, se ela é a
pena do pecado, há-de ferir aqueles cujo pecado foi abolido pela graça, poderei
responder com o na minha obra De baptismo parvulorum (sobre o baptismo
das crianças) onde esta questão já foi tratada e resolvida. Esta experiência da
separação da alma e do corpo, diz-se aí, é mantida depois da supressão dos
laços do pecado porque, se a imortalidade corporal se seguisse imediatamente ao
sacramento da regeneração, a fé ficaria debilitada: é que não há fé senão
quando se aguarda na esperança o que na realidade ainda se não vê. Foi com o vigor
e o esforço da fé que, pelo menos em épocas passadas, se teve de vencer o medo
da própria morte — o que se nota principalmente nos santos mártires. Para eles
não teria havido nem vitória nem glória em com bater (porque todo o com bate
lhes seria impossível) se, tornados santos pelo banho da regeneração, ficassem
doravante incapazes de morrer. Quem não correria com as crianças para a graça
do baptismo de Cristo com a intenção sobretudo de escapar à morte? Assim a fé já
não se sujeitaria à prova da expectativa duma recompensa invisível. Já não
haveria mesmo fé ao buscar-se e receber-se imediatamente a recompensa do acto.
Agora, porém, a pena do pecado converteu-se, por uma graça maior e mais
maravilhosa do Salvador, em obra de justiça. Foi dito outrora ao homem:
Se pecares, morrerás, [i]
— agora, diz-se ao mártir: «morre para que não peques».
Outrora foi dito:
Se transgredirdes os meus mandamentos, morrereis, [ii]
— agora diz-se: «se recusardes a morte, transgredireis os meus mandamentos». O
que então havia que temer para não pecar, deve agora aceitar-se por medo de
pecar. E assim, graças à inefável misericórdia de Deus, a própria pena dos
vícios se transforma em arma de virtude e o suplício do pecador se converte em
recompensa do justo. Outrora mereceu-se a morte, pecando — agora cumpre-se a
justiça, morrendo. Isto verifica-se nos santos mártires a quem o perseguidor
propõe a alternativa: ou renegar a fé ou suportar a morte. Mas os justos
preferem sofrer pela fé o que os primeiros pecadores sofreram por não terem acreditado.
Estes não morreriam se não tivessem pecado
— aqueles pecarão se não morrerem. Portanto, estes morrem porque pecaram
—
aqueles não pecam porque morrem. Por culpa destes se chegou à pena — por pena daqueles
se evita a culpa. Não é que a morte se
tenha convertido num bem que antes fora um mal — mas Deus concedeu à fé uma
graça tamanha que, por ela, a morte, que é o contrário da vida, tornou-se num
meio de passar à vida.
CAPÍTULO V
Assim como os iníquos fazem mau uso da lei que é boa, assim os justos fazem
bom uso da morte que é má.
O Apóstolo, ao pretender mostrar quão nocivo é o pecado sem a ajuda da graça,
não hesitou em apresentar a própria lei, pela qual o pecado é proibido, com o a
força do pecado. Diz ele:
0 pecado é o aguilhão da morte; mas a força do pecado
é a lei.[iii]
Pura verdade! De facto, a proibição aviva o desejo dum acto ilícito quando se
não ama suficientemente a justiça para lhe encontrar um encanto que vença o
desejo de pecar. Mas, para chegar a ser amada e a deleitar, a verdadeira
justiça precisa da graça divina. E, para que se não tome a lei com o um mal por
ter sido chamada «força do pecado», o Apóstolo, voltando à questão noutra
passagem, diz:
Assim a lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom. Então o
que é bom tomou-se morte para mim? De maneira nenhuma! Mas o pecado, para
mostrar que era pecado, por meio do que era bom produziu em mim a morte e assim
o pecado tomou-se pecaminoso acima da medida por meio do mandamento.[iv]
Disse acima da medida (super modum) porque a prevaricação aumenta
quando, acrescentando o desejo de pecar, se despreza a própria lei. Porque é
que julgámos que devíamos isto rememorar? Porque assim como a lei não é um mal
quando aumenta o desejo dos que pecam, assim também a morte não é um bem quando
aumenta a glória dos que sofrem. Assim com o a lei, quando é posta de lado pela
iniquidade, faz prevaricadores — assim também a morte, quando se aceita pela
verdade, faz mártires. Por isso é que a lei é efectivamente boa, porque é a
proibição do pecado — e a morte é má porque é o salário do pecado. Mas assim
com o a injustiça usa mal, não apenas dos males, mas também dos bens, — da
mesma forma a justiça usa bem, não só dos bens, mas também dos males. Daí
resulta que os maus usam mal da lei, embora ela seja boa — e que os bons morrem
bem, embora a morte seja um mal.
CAPÍTULO VI
Do mal geral da morte pelo qual se desfaz a união da alma e do corpo.
No que respeita à morte corporal, isto é, à separação da alma do corpo, quando
a sofrem aqueles a quem chamamos moribundos, para ninguém é boa. A própria força
que separa o que estava unido e ligado no ser vivo, produz nele, enquanto a sua
acção perdura, um sentimento de repulsa e contra a natureza até que se extinga
a sensibilidade que resultava precisam ente da união da carne e da alma. Por
vezes um único choque do corpo ou um rapto da alma vem interromper todo este
sofrimento, impedindo de o sentir a rapidez. Mas, seja o que for o que nos
moribundos faz desaparecer a sensibilidade, se isso for piedosa e santamente
suportado, aumentará o mérito da paciência, mas não perde o nome de pena. Se a morte,
que desde o primeiro homem, sem interrupção, se propaga, é indubitavelmente uma
pena para aquele que nasce, desde que suportada em nome da piedade e da justiça
toma-se glória para o que renasce. E essa morte, retribuição do pecado, obtém
por vezes a remissão total da sua dívida.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)