A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO IX
CAPÍTULO XIV
Sendo mortais, poderão os homens gozar da verdadeira felicidade?
Se o homem poderá ser simultaneamente feliz e mortal — é a grande questão que
entre os homens se põe. Alguns, olhando para a sua condição com demasiada modéstia,
negaram ao homem a capacidade de ser feliz enquanto vive sujeito à mortalidade.
Outros, considerando-
-se superiores, ousaram dizer que os mortais poderão ser felizes desde que
estejam de posse da sabedoria. Se assim é, porque é que se não colocam estes
como intermediários entre os homens miseráveis e os felizes imortais, pois têm de
comum com os imortais felizes a felicidade e com os mortais miseráveis a
mortalidade? Com certeza que, se são felizes, a ninguém invejam (haverá
realmente algo de mais miserável que a inveja?), e ajudam, na media que lhes é
possível, os mortais infelizes a obterem a felicidade para que possam também
ser imortais depois da morte e possam unir-se aos anjos imortais e felizes.
CAPÍTULO XV
O homem Jesus Cristo mediador entre Deus e os homens.
Mas, se, segundo a opinião mais aceitável e mais provável, todos os homens são
necessariamente infelizes por serem mortais, tem que se procurar um
intermediário que seja, além de homem, também Deus — para, por mediação da sua
bem-aventurada imortalidade, encaminhar os homens da sua miserável mortalidade
à imortalidade bem-aventurada. Era necessário que nem fosse excluído da
mortalidade nem constrangido a permanecer mortal. Tornou-se, de facto, mortal, não
por enfraquecimento da divindade do Verbo, mas por assunção da fraqueza da
carne. Mas não permaneceu mortal na carne, que Ele ressuscitou dos mortos. O
fruto da sua mediação é precisamente este: que aqueles para cuja libertação se
fez mediador não permaneçam mais na morte perpétua da carne. Foi, pois,
necessário que o mediador entre Deus e nós possuísse uma mortalidade
transitória e uma felicidade permanente, para se poder acomodar aos mortais no
passageiro e levá-los de entre os m ortos ao que permanece.
Os anjos bons não podem, portanto, ocupar uma posição intermediária entre os
infelizes mortais e os imortais bem-aventurados, porque eles próprios são
bem-aventurados (felizes) e imortais. Podê-lo-iam ser os anjos maus, porque,
com o os mortais, são infelizes, e imortais como os bem-aventurados. Contrário
a eles está o bom mediador que, contra a imortalidade e desgraça dos anjos maus,
quis tornar-se mortal por algum tempo e pôde permanecer bem-aventurado na
eternidade. Assim, para impedir que os maus anjos, imortais orgulhosos e
infelizes
criminosos, seduzissem os homens, valendo-se da sua imortalidade para os
conduzir à infelicidade, — o bom mediador, pela humildade da sua morte e a
suavidade da sua beatitude destruiu o domínio daqueles nos corações que pela fé
purificou da sua imundíssima tirania.
Assim, o homem mortal e infeliz, muito afastado dos seres imortais e felizes,
que mediador poderá escolher que o conduza à imortalidade e à beatitude? O que
poderia deleitá-lo na imortalidade dos demónios, é miséria; o que poderia
chocá-lo na mortalidade de Cristo, já não existe. Naquele caso, tem que se
precaver contra a desgraça sem fim, — neste caso, já não tem que temer a morte
que não pôde ser eterna, mas amar a felicidade sempiterna. Se se interpusesse
um mediador imortal e infeliz, seria para fechar a passagem à imortalidade
feliz, porque o que impede de lá chegar — a própria infelicidade — persiste sempre.
Mas, ao contrário, o que era mortal e feliz interpôs-se, uma vez passada a
mortalidade, para dar aos que morreram a imortalidade — o que ele mostrou em si
próprio ressuscitando e conferindo aos que são infelizes a beatitude de que
jamais foi privado.
Há, pois, um mediador mau que separa os amigos — e há um mediador bom que
congraça os inimigos. São muitos os mediadores que separam, porque, se a
multidão dos anjos bons tira a sua beatitude da participação no Deus único, a
desgraçada multidão dos anjos maus, privada desta participação, faz oposição
mais para impedir do que para facilitar a nossa felicidade. A sua própria multidão
de certo modo nos ensurdece com a sua vozearia, para nos tornar impossível o
acesso ao bem único e beatificante. Para o conseguirmos, não são precisos muitos
mediadores: basta um — precisamente aquele cuja participação nos torna felizes,
o Verbo de Deus incriado, por quem tudo foi criado. Todavia, não é enquanto Verbo que ele é
mediador, porque o Verbo, soberanamente imortal e soberanamente feliz, está
longe dos mortais infelizes. Ele é mediador enquanto homem, mostrando por isso
mesmo que, para atingir aquele que é, não somente o Bem feliz (beatum) mas
também beatificante (beatificum) não é preciso procurar outros mediadores
que julguemos encarregados de dispor os degraus da nossa ascensão — pois foi o
próprio Deus bem-aventurado (beatus) beatificante (beatificus), tornado
partícipe da nossa humanidade, quem nos forneceu um meio rápido de
participarmos na sua divindade. Realmente, ao libertar-nos da mortalidade e da
miséria, não foi para os anjos imortais e felizes que nos encaminhou, para nos
alcançar uma felicidade e uma imortalidade deles recebida: foi sim para aquela
Trindade cuja participação faz a felicidade dos próprios anjos. Por isso,
quando quis, para ser mediador, pôs-se abaixo dos anjos na forma de escravo,
manteve-se acima deles na sua forma de Deus, fazendo-se caminho de vida entre
os inferiores, Ele mesmo que é a vida entre os superiores.
CAPÍTULO XVI
Terão os platónicos caracterizado acertadamente os deuses celestes quando
afirmam que, para evitarem o contacto terreno, eles se não misturam com os
homens, os quais, por sua vez, para conseguirem a sua amizade, precisam da
ajuda dos demónios?
Não é verdade o dito que o mesmo platónico atribui a Platão:
Nenhum deus se mistura com os homens [i] .
A melhor prova da sublimidade dos deuses, acrescenta ele, é que se não maculam
em qualquer contacto com os homens. Reconhece, portanto, que os demónios estão maculados
— e, por isso, não podem purificar aqueles que os poluem, e todos se tornam
igualmente impuros: os demónios pelo contacto com os homens, os homens pelo
culto dos demónios. Ou então, se os demónios podem contactar e misturar-se com
os homens sem se mancharem, é porque são melhores que os deuses, que se
manchariam se se misturassem aos homens. Realmente, é privilégio dos deuses,
diz-se, estarem de tal modo separados pela sublimidade que o contacto hum ano
os não poderá macular.
Quanto ao Deus supremo, de tudo criador, a quem chamamos o Deus verdadeiro, diz
Apuleio que, segundo Platão, é o único que não pode, por penúria da palavra humana,
ser convenientemente compreendido pela linguagem; só no sábio, quando por sua
força de alma, se despoja, tanto quanto possível, do corpo humano, se torna transparente
a com preensão deste Deus — e mesmo isto só por vezes, com o um fulgurante
relâmpago em trevas profundas. Se, portanto, o Deus verdadeiramente superior a todas
as coisas, nem por isso deixa de estar presente, embora só por vezes e no
brilho fulgurante dum rápido
relâmpago, duma maneira inteligível e inefável à inteligência dos sábios
quando eles tanto quanto possível se desprendem do corpo, sem já serem para
Deus uma ocasião de contaminação — para que pôr os deuses pagãos tão longe nas
alturas, com medo de que o contacto humano os macule? Como se não fosse suficiente
ver esses corpos etéreos cuja luz ilumina, tanto quanto basta, a Terra! Se, na verdade,
os astros, de que Apuleio faz outros tantos deuses visíveis, não são poluídos
por quem os vê, também os demónios o não serão pelos olhares dos homens, mesmo que
estes os vejam de perto.
Por acaso será que os deuses, que não podem ser manchados pela vista, poderão
sê-lo pela voz dos homens — e por isso se teriam valido da intervenção dos
demónios para receberem deles as palavras humanas, de que se conservam afastados
para se manterem totalmente puros? Que direi, então, dos outros sentidos? Não é
cheirando que quer os deuses quer os demónios, quando estão presentes, podem
ser contaminados pelas exalações dos corpos vivos dos homens — pois que não o
são durante os sacrifícios pela pestilência dos cadáveres. Quanto ao gosto —
nenhuma necessidade os obriga a restabelecer a sua mortalidade, para que,
movidos pela fome, peçam
alimentos aos homens. O tacto está à sua disposição, porque, embora pareça que
o contacto se relaciona principalmente com o tacto, os deuses poderiam muito
bem, se quisessem, misturar-se com os homens de m aneira a verem e a serem
vistos, a ouvirem e a serem ouvidos. Que necessidade têm eles de tocar? Os
próprios homens não se atreveriam a desejar tal dom desde que gozassem da vista
ou do convívio dos deuses ou dos demónios bons. E, se a sua curiosidade
chegasse ao ponto de o desejarem — como poderia um homem tocar num deus ou num
demónio contra a vontade deles, se nem num pardal poderá tocar sem o apanhar?
Os deuses poderiam, portanto, misturar-se corporalmente com os homens, vendo-os
e oferecendo-se à sua vista, falando-lhes e ouvindo-os. Mas, se os demónios, como
disse, deste modo se misturam aos homens sem por isso se mancharem, ao passo
que os deuses se mancham por esse contacto, então os demónios, no seu entender,
não podem ser manchados, mas podem-no os deuses. Mas,
se os próprios demónios se maculam, que auxílio podem eles prestar aos homens
para lhes obterem a vida bem-aventurada depois da morte? Estando maculados, não
podem purificá-los para os reunirem, uma vez purificados, aos deuses sem
mácula, junto dos quais foram constituídos mediadores dos homens. E, se não
prestam este serviço para que serve aos homens a amistosa mediação dos demónios?
Será porventura para que, depois da morte, os homens não passem a deuses por
intervenção dos demónios, mas vivam uns e outros contaminados e, portanto, nem
uns nem outros felizes? A não ser que alguém o explique dizendo que os
demónios, à laia de esponjas ou
coisa parecida, limpam os seus amigos, ficando eles tanto mais sórdidos quanto
mais os homens ficam asseados por esta espécie de limpeza. Se assim é, os
deuses misturam-se com os demónios mais contaminados, ao passo que, para não
serem contaminados, evitam a vizinhança e o contacto dos homens. Ou será que
os deuses podem purificar os demónios contaminados pelos homens, sem por eles
serem contaminados, e não podem do mesmo modo purificar os homens? Quem senão
um enganado pelos falacíssimos demónios poderá pensar desta maneira? Se alguém fica
manchado por ver e por ser visto — porque é que os deuses visíveis (como diz
Apuleio)
essas brilhantes luzes do mundo [ii]
e com eles, todos os outros astros, estão expostos aos olhares dos
homens, ao passo que os demónios, que só serão vistos se quiserem, estão livres
deste contágio dos homens? E, se não é o facto de ser visto, mas o de ver que contamina,
— então, terão que negar que
essas brilhantes luzes do mundo [iii]
de que fizeram deuses, vêem os homens quando dardejam os seus raios sobre a
Terra! Estes raios, que se difundem sobre tantos objectos imundos, não se
contaminam, — e contaminam-se os deuses, se se misturarem com os homens, mesmo
que necessário seja o contacto para aos homens socorrerem? O facto é que,
tocada pelos raios do
Sol e da Lua, a Terra não contamina a sua luz.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[ii] Apuleio, De Deo
Socratis, II, p. 8, ed. Thomas.
Ver Vergílio, Georg. I,
5-6
[iii] Apuleio, De Deo
Socratis, II, p. 8, ed. Thomas.
Ver Vergílio, Georg. I,
5-6