A
PAZ NA FAMÍLIA
AS
CORDAS DO CORAÇÃO
…/2
Os outros, quer sejam
amáveis ou grosseiros, quer sejam pacientes ou irritadiços, farão soar dentro
do nosso coração uma nota conforme as nossas cordas.
Se a corda da generosidade
anda fraca, qualquer atitude da esposa, do marido, do filho ou do pai que exija
algum sacrifício fará vibrar a nota desafinada do mau-humor.
Pelo contrário, se o coração
for grande e a corda da generosidade estiver “bem temperada”, mesmo as
agressões mais desagradáveis dos outros farão ressoar a nota da compreensão, da
afabilidade que desvia a discussão, da grandeza de alma que finge nem ter
reparado na ofensa.
E, então, haverá paz.
Vale a pena, portanto,
insistir em que a primeira causa das desavenças, brigas e desarmonias, não
convém buscá-la no que “os outros fazem ou dizem”, mas na maneira como isso que
fazem ou dizem – quer seja bom, quer ruim – repercute no nosso coração.
Lembremo-nos do exemplo de
Cristo.
Ele – cujo coração de
Homem-Deus tinha as cordas das virtudes divinamente afinadas – espalhava à sua
volta uma paz imensa, não só quando pregava aprazivelmente nas margens do lago
de Genesaré, e todos se encantavam com as suas palavras, mas também quando agonizava
no alto da cruz, cercado de impropérios, zombarias e tormentos atrozes.
Do
coração é que sai tudo, dizia Cristo [i].
Tudo depende do coração, do
amor, da bondade e das virtudes que nele se enraízam. Boas virtudes são
geradoras de paz.
Defeitos arraigados são
provocadores de guerra.
Como entendia bem São Paulo
o ensinamento de Cristo!
Bastará, por ora, lembrar
apenas dois trechos das suas cartas, que põem à mostra as cordas da paz e as
cordas da guerra:
– Cordas da paz: Revesti-vos de entranhada misericórdia, de
bondade, humildade, mansidão, paciência. Suportai-vos uns aos outros e
perdoai-vos mutuamente, se um tiver contra outro motivo de queixa [...]. Mas,
acima de tudo, revesti-vos do amor, que é o vínculo da perfeição. Triunfe em
vossos corações a paz de Cristo, para a qual fostes chamados [ii].
– Cordas da guerra: Nenhuma palavra má saia da vossa boca [...].
Toda a amargura, indignação, cólera, gritos, injúrias, e toda a espécie de
malícia, sejam banidos dentre vós [iii].
Guerra e paz, sim. Vale a
pena encará-las ambas.
E, para que a nossa reflexão
seja como uma escada, que vai subindo dos fundões até as cumeadas, assim como
Dante começou a Divina Comédia pelo Inferno, também vamos iniciar estas
simplicíssimas meditações entrando, primeiro, nos porões onde fermentam os
conflitos familiares, para depois subir, contemplar com perspectiva cristã o
ideal familiar, e procurar, enfim, os caminhos que podem conduzir a família à
paz.
UMA
DESCIDA AOS PORÕES
PRIMEIRO
PORÃO: O ORGULHO
O
“EU” SOBRE O ALTAR
De todas as cordas
desafinadas do coração, a pior é a do orgulho.
Este vício capital é o
primeiro inimigo da paz familiar; o orgulho que, de resto, é o inimigo número
um de toda a bondade e de toda a alegria. Não é em vão que a Bíblia diz, no
livro do Eclesiástico, que o orgulho é o
princípio de todo o pecado [iv].
Mas, o que é o orgulho?
Uma definição clássica reza
assim: “O orgulho é o apetite desordenado da própria excelência”.
Trocando a frase em miúdos,
significa: é o desejo exorbitado de sobressair, de ficar por cima, de ser
valorizado, acatado e estimado; é a ânsia de sentir-se superior aos outros, ou
pelo menos nunca inferiorizado; é a incapacidade de aceitar qualquer coisa que
fira o nosso amor-próprio ou rebaixe a nossa imagem.
O orgulho cega.
Essa supervalorização do
nosso “eu” impede-nos de enxergar a verdade sobre os nossos defeitos e culpas,
porque não suportamos que essa verdade nos situe abaixo do alto conceito que
fazemos de nós mesmos ou nos coloque por baixo dos outros.
Poderíamos dizer que a
pessoa orgulhosa construiu um altar dentro do seu coração, onde entronizou o
seu próprio “eu” como um ídolo intocável, que constantemente defende e adora.
Qualquer coisa que atinja
esse falso “deus”, qualquer coisa que tente questioná-lo ou ameace rebaixá-lo,
provoca no orgulhoso uma reação imediata, violenta como uma descarga elétrica,
ou abafada e surda (por exemplo, um mutismo sufocante, um ar carrancudo de
dignidade ofendida, etc.), que acaba com a paz.
Não há dúvida de que o
orgulho é a corda mais desafinada do coração.
Melhor dizendo, o orgulho é
todo um conjunto de cordas desafinadas. Procuraremos agora ouvir o som de
algumas delas.
Não será agradável a música,
mas pode ser bom escutá-la, não, evidentemente, pelo prazer maldoso de ver
retratadas nela as falhas das pessoas da nossa casa (“É o vivo retrato do meu
marido”, “Acho que o autor deste livro fez a radiografia da minha mulher”, “É,
chapado, o meu irmão”, “Olhe aí a cara da minha sogra”...);
Não, não vamos procurar esse
prazer ruim...
Pelo contrário, vamos tentar
fazer um reconhecimento humilde dos porões escuros da nossa própria alma – das
nossas cordas desafinadas –, com o intuito positivo de ajustar-lhes as
cravelhas, de afinar, em suma, o instrumento poderoso que é o nosso coração e,
com a ajuda de Deus, conseguir que ele vibre com notas cada vez mais puras e
harmoniosas.
Vejamos, pois, essas cordas,
sem pretender falar de todas, nem colocá-las numa determinada ordem de importância.
Pensemos simplesmente nos atritos familiares que nos são mais conhecidos e
deixemos a reflexão correr.
Facilmente salta à vista uma
primeira corda bem mal ajustada: a crítica.
A pessoa orgulhosa tem muito
aguçado o espírito crítico.
Não por rigor filosófico ou
científico, mas por “superioridade” arrogante.
O orgulho só lhe deixa ver o
lado ruim dos outros, que ele contempla de cima para baixo, com ar de
desaprovação, com um desprezo prévio, preconceituoso, que é parecido com o do
fariseu da parábola de Cristo:
Eu
não sou como os outros homens [...], nem como este publicano [v].
Como pode haver paz e
harmonia num lar onde o pai, ou a mãe, ou o filho adolescente, ou a filha
universitária..., passam a vida criticando, reclamando, resmungando e “pondo
defeitos” em todas as coisas dos outros?
Para o irmão, o que a irmã
disse é estúpido, e assim o proclama em voz alta; para o pai, os ideais e
sonhos do filho são tolices, que lhe lavam o cérebro e o afastam da única coisa
que interessa: ganhar dinheiro; a comida – responsabilidade directa da mulher –
sempre está ruim: ou é salgada demais, ou é insossa, ou é uma fábrica de
colesterol, ou parece ração de quintal.
Uns e outros só vêem que os
demais falam alto, ou chegam tarde, ou não respondem, ou olham torto, ou não
ligam nem um pouco para o que se lhes diz, ou têm amizades intratáveis, ou
escolhem os piores momentos para fazer as coisas...
Em resumo:
críticas, críticas e mais
críticas. Como se o “criticão” tivesse um sensor que só fosse capaz de captar o
negativo.
Só a título ilustrativo, vou
contar uma pequena e divertida história da vida real.
Um casal de velhos. Ele,
arrastando a perna, vai fazer as compras para a geladeira e a despensa (não no
supermercado, mas na quitanda, como corresponde a um homem de outros tempos).
Ela, boa pessoa, tem, no entanto, o vício de criticar. Volta ele da quitanda
com o carro cheio: lá tem de tudo e um pouquinho mais. Mas a cara-metade, em
vez de agradecer, só se lembra de gritar, com um rangido de arranhar a alma: “E
o jiló? Onde está o jiló? Você se esqueceu do jiló!”
Essa corda da crítica fica
ainda mais desafinada quando se transforma, por um pior desajuste, na corda da
ironia ou do sarcasmo. Nestes casos, o desprezo é mais ferino.
Ironizar é quase sempre
diminuir e humilhar o outro. Às vezes, é pisar em cima dele até deixá-lo
esmagado no chão. Uma ironia bem aplicada é um dos golpes mais baixos que o
nosso orgulho pode desferir nos outros.
– Bolas, desta vez, de cada
três palavras que disse aos convidados, só quatro eram asneiras. Parabéns, está
melhorando! – espeta o marido, sarcasticamente, na cara da mulher.
– Fulano (colega do marido)
já foi promovido faz um ano, e tu ainda pastando lá em baixo. Deve ser porque o
ar daquele escritório de pé-rapado te faz bem... – ridiculariza a mulher,
mexendo com um marido já complexado pela falta de sucesso profissional.
– Sabem de que sofre “o”
neurónio da loira? – pergunta ironicamente o menino convencido, olhando com
desprezo para a irmã. – Sofre de solidão!
No dia seguinte vem com
outras duas piadas, que ele acha melhores ainda: – A loira burra (que, por
sinal, é bem mais inteligente do que ele) só tem três neurónios no cérebro:
Um receptor, um emissor...,
e o terceiro para atrapalhar os outros dois!
E tem mais!
Como é que a gente sabe que
a loira usou o computador?
Quando tem líquido corrector
na tela!
Deus nos livre da ironia
corrosiva, que é a escória da nossa vaidade e da nossa arrogância.
Não poucas vezes,
achando-nos “engraçadinhos”, estamos esfaqueando os outros.
Peçamos a Deus que, em casa
e fora de casa, saibamos praticar somente a ironia amável, simpática, aquela
que não fere ninguém, mas alegra os corações e faz rir com gosto.
(cont)
[vi] Francisco
Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito
Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote
em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção
espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas
obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas
Cristãos, os títulos:
O
valor das dificuldades;
O
homem bom;
Lágrimas
de Cristo, lágrimas dos homens;
A
língua;
A
paciência;
A voz da consciência.