15/12/2017

Leitura espiritual

A PAZ NA FAMÍLIA

AS CORDAS DO CORAÇÃO

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Os outros, quer sejam amáveis ou grosseiros, quer sejam pacientes ou irritadiços, farão soar dentro do nosso coração uma nota conforme as nossas cordas.
Se a corda da generosidade anda fraca, qualquer atitude da esposa, do marido, do filho ou do pai que exija algum sacrifício fará vibrar a nota desafinada do mau-humor.
Pelo contrário, se o coração for grande e a corda da generosidade estiver “bem temperada”, mesmo as agressões mais desagradáveis dos outros farão ressoar a nota da compreensão, da afabilidade que desvia a discussão, da grandeza de alma que finge nem ter reparado na ofensa.
E, então, haverá paz.

Vale a pena, portanto, insistir em que a primeira causa das desavenças, brigas e desarmonias, não convém buscá-la no que “os outros fazem ou dizem”, mas na maneira como isso que fazem ou dizem – quer seja bom, quer ruim – repercute no nosso coração.
Lembremo-nos do exemplo de Cristo.
Ele – cujo coração de Homem-Deus tinha as cordas das virtudes divinamente afinadas – espalhava à sua volta uma paz imensa, não só quando pregava aprazivelmente nas margens do lago de Genesaré, e todos se encantavam com as suas palavras, mas também quando agonizava no alto da cruz, cercado de impropérios, zombarias e tormentos atrozes.

Do coração é que sai tudo, dizia Cristo [i].

Tudo depende do coração, do amor, da bondade e das virtudes que nele se enraízam. Boas virtudes são geradoras de paz.

Defeitos arraigados são provocadores de guerra.
Como entendia bem São Paulo o ensinamento de Cristo!

Bastará, por ora, lembrar apenas dois trechos das suas cartas, que põem à mostra as cordas da paz e as cordas da guerra:
– Cordas da paz: Revesti-vos de entranhada misericórdia, de bondade, humildade, mansidão, paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se um tiver contra outro motivo de queixa [...]. Mas, acima de tudo, revesti-vos do amor, que é o vínculo da perfeição. Triunfe em vossos corações a paz de Cristo, para a qual fostes chamados [ii].

– Cordas da guerra: Nenhuma palavra má saia da vossa boca [...]. Toda a amargura, indignação, cólera, gritos, injúrias, e toda a espécie de malícia, sejam banidos dentre vós [iii].

Guerra e paz, sim. Vale a pena encará-las ambas.
E, para que a nossa reflexão seja como uma escada, que vai subindo dos fundões até as cumeadas, assim como Dante começou a Divina Comédia pelo Inferno, também vamos iniciar estas simplicíssimas meditações entrando, primeiro, nos porões onde fermentam os conflitos familiares, para depois subir, contemplar com perspectiva cristã o ideal familiar, e procurar, enfim, os caminhos que podem conduzir a família à paz.

UMA DESCIDA AOS PORÕES

PRIMEIRO PORÃO: O ORGULHO

O “EU” SOBRE O ALTAR

De todas as cordas desafinadas do coração, a pior é a do orgulho.
Este vício capital é o primeiro inimigo da paz familiar; o orgulho que, de resto, é o inimigo número um de toda a bondade e de toda a alegria. Não é em vão que a Bíblia diz, no livro do Eclesiástico, que o orgulho é o princípio de todo o pecado [iv].

Mas, o que é o orgulho?

Uma definição clássica reza assim: “O orgulho é o apetite desordenado da própria excelência”.

Trocando a frase em miúdos, significa: é o desejo exorbitado de sobressair, de ficar por cima, de ser valorizado, acatado e estimado; é a ânsia de sentir-se superior aos outros, ou pelo menos nunca inferiorizado; é a incapacidade de aceitar qualquer coisa que fira o nosso amor-próprio ou rebaixe a nossa imagem.
O orgulho cega.
Essa supervalorização do nosso “eu” impede-nos de enxergar a verdade sobre os nossos defeitos e culpas, porque não suportamos que essa verdade nos situe abaixo do alto conceito que fazemos de nós mesmos ou nos coloque por baixo dos outros.
Poderíamos dizer que a pessoa orgulhosa construiu um altar dentro do seu coração, onde entronizou o seu próprio “eu” como um ídolo intocável, que constantemente defende e adora.
Qualquer coisa que atinja esse falso “deus”, qualquer coisa que tente questioná-lo ou ameace rebaixá-lo, provoca no orgulhoso uma reação imediata, violenta como uma descarga elétrica, ou abafada e surda (por exemplo, um mutismo sufocante, um ar carrancudo de dignidade ofendida, etc.), que acaba com a paz.

Não há dúvida de que o orgulho é a corda mais desafinada do coração.
Melhor dizendo, o orgulho é todo um conjunto de cordas desafinadas. Procuraremos agora ouvir o som de algumas delas.
Não será agradável a música, mas pode ser bom escutá-la, não, evidentemente, pelo prazer maldoso de ver retratadas nela as falhas das pessoas da nossa casa (“É o vivo retrato do meu marido”, “Acho que o autor deste livro fez a radiografia da minha mulher”, “É, chapado, o meu irmão”, “Olhe aí a cara da minha sogra”...);

Não, não vamos procurar esse prazer ruim...
Pelo contrário, vamos tentar fazer um reconhecimento humilde dos porões escuros da nossa própria alma – das nossas cordas desafinadas –, com o intuito positivo de ajustar-lhes as cravelhas, de afinar, em suma, o instrumento poderoso que é o nosso coração e, com a ajuda de Deus, conseguir que ele vibre com notas cada vez mais puras e harmoniosas.
Vejamos, pois, essas cordas, sem pretender falar de todas, nem colocá-las numa determinada ordem de importância. Pensemos simplesmente nos atritos familiares que nos são mais conhecidos e deixemos a reflexão correr.

Facilmente salta à vista uma primeira corda bem mal ajustada: a crítica.
A pessoa orgulhosa tem muito aguçado o espírito crítico.
Não por rigor filosófico ou científico, mas por “superioridade” arrogante.
O orgulho só lhe deixa ver o lado ruim dos outros, que ele contempla de cima para baixo, com ar de desaprovação, com um desprezo prévio, preconceituoso, que é parecido com o do fariseu da parábola de Cristo:
Eu não sou como os outros homens [...], nem como este publicano [v].

Como pode haver paz e harmonia num lar onde o pai, ou a mãe, ou o filho adolescente, ou a filha universitária..., passam a vida criticando, reclamando, resmungando e “pondo defeitos” em todas as coisas dos outros?
Para o irmão, o que a irmã disse é estúpido, e assim o proclama em voz alta; para o pai, os ideais e sonhos do filho são tolices, que lhe lavam o cérebro e o afastam da única coisa que interessa: ganhar dinheiro; a comida – responsabilidade directa da mulher – sempre está ruim: ou é salgada demais, ou é insossa, ou é uma fábrica de colesterol, ou parece ração de quintal.
Uns e outros só vêem que os demais falam alto, ou chegam tarde, ou não respondem, ou olham torto, ou não ligam nem um pouco para o que se lhes diz, ou têm amizades intratáveis, ou escolhem os piores momentos para fazer as coisas...
Em resumo:
críticas, críticas e mais críticas. Como se o “criticão” tivesse um sensor que só fosse capaz de captar o negativo.

Só a título ilustrativo, vou contar uma pequena e divertida história da vida real.
Um casal de velhos. Ele, arrastando a perna, vai fazer as compras para a geladeira e a despensa (não no supermercado, mas na quitanda, como corresponde a um homem de outros tempos). Ela, boa pessoa, tem, no entanto, o vício de criticar. Volta ele da quitanda com o carro cheio: lá tem de tudo e um pouquinho mais. Mas a cara-metade, em vez de agradecer, só se lembra de gritar, com um rangido de arranhar a alma: “E o jiló? Onde está o jiló? Você se esqueceu do jiló!”

Essa corda da crítica fica ainda mais desafinada quando se transforma, por um pior desajuste, na corda da ironia ou do sarcasmo. Nestes casos, o desprezo é mais ferino.
Ironizar é quase sempre diminuir e humilhar o outro. Às vezes, é pisar em cima dele até deixá-lo esmagado no chão. Uma ironia bem aplicada é um dos golpes mais baixos que o nosso orgulho pode desferir nos outros.
– Bolas, desta vez, de cada três palavras que disse aos convidados, só quatro eram asneiras. Parabéns, está melhorando! – espeta o marido, sarcasticamente, na cara da mulher.
– Fulano (colega do marido) já foi promovido faz um ano, e tu ainda pastando lá em baixo. Deve ser porque o ar daquele escritório de pé-rapado te faz bem... – ridiculariza a mulher, mexendo com um marido já complexado pela falta de sucesso profissional.
– Sabem de que sofre “o” neurónio da loira? – pergunta ironicamente o menino convencido, olhando com desprezo para a irmã. – Sofre de solidão!
No dia seguinte vem com outras duas piadas, que ele acha melhores ainda: – A loira burra (que, por sinal, é bem mais inteligente do que ele) só tem três neurónios no cérebro:
Um receptor, um emissor..., e o terceiro para atrapalhar os outros dois!
E tem mais!
Como é que a gente sabe que a loira usou o computador?
Quando tem líquido corrector na tela!
Deus nos livre da ironia corrosiva, que é a escória da nossa vaidade e da nossa arrogância.
Não poucas vezes, achando-nos “engraçadinhos”, estamos esfaqueando os outros.

Peçamos a Deus que, em casa e fora de casa, saibamos praticar somente a ironia amável, simpática, aquela que não fere ninguém, mas alegra os corações e faz rir com gosto.

(cont)

FRANCISCO FAUS [vi]




[i] Mc 7, 21
[ii] Col 3, 12-15
[iii] Ef 4, 29.31
[iv] Ecle 10, 15
[v] Lc 18, 11
[vi] Francisco Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, os títulos:
O valor das dificuldades;
O homem bom;
Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens;
A língua;
A paciência;
A voz da consciência.

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