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Leitura Espiritual |
INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
TERCEIRA PARTE
O ESPÍRITO E A IGREJA
CAPÍTULO SEGUNDO
Duas Questões Fundamentais do Artigo
sobre o Espírito Santo e sobre a Igreja
As considerações feitas até aqui
tentaram sublinhar a riqueza e a vastidão dos Últimos artigos do símbolo.
Ressoam aí novamente a imagem cristã do homem, o problema do pecado e da salvação;
sobretudo, porém, neles está ancorada a afirmação da ideia sacramental que, por
sua vez, exprime o cerne do conceito de Igreja: Igreja e sacramento estão
unidos como que por um cordão umbilical: ficam de pé ou caem juntamente. Igreja
sem sacramentos não passaria de organização vazia; e sacramentos sem Igreja
seriam ritos sem sentido e sem nexo interno. Portanto, a primeira questão
principal apresentada pelo último artigo do Credo é sobre a Igreja; o outro
grande problema indicado ali está contido no artigo sobre a "ressurreição
da carne", doutrina não menos escandalosa para a nossa mentalidade moderna
do que o foi para o espiritualismo do mundo helénico, muito embora os motivos
do escândalo tenham sido alterados. Vamos tentar uma reflexão um pouco mais
detalhada sobre estas questões, à guisa de epílogo para o nosso giro através do
símbolo.
1. "A Igreja santa, católica”.
Evidentemente não podemos desenvolver
aqui uma doutrina completa sobre a Igreja. Abstraindo das diversas questões teológicas,
técnicas, desejamos tentar concisamente descobrir a dificuldade exacta que nos
barra o caminho ao pronunciarmos a fórmula da "Igreja santa,
católica", e esforçar-nos por identificar a resposta já incluída no mesmo
texto do Credo. Sem perder de vista o que se disse antes a respeito da localização
espiritual e do nexo intrínseco dessas palavras relacionadas com a crença na
poderosa actividade do Espírito Santo na história e, por outro lado, expressas
nas palavras do perdão dos pecados e da comunhão dos santos, em que se aponta
para o baptismo, a penitência e a eucaristia como pontos arquitectónicos da
Igreja, como seu exacto conteúdo e sua certa maneira de existir.
Se se conserva diante dos olhos este
duplo nexo, quiçá já se tenha eliminado muito do que nos perturba na crença na
Igreja. Apesar disto manifestemos o que hoje nos preocupa neste ponto. Se
formos sinceros, seremos tentados a dizer que a Igreja não é nem santa, nem
católica: o próprio Concílio Vaticano II venceu a relutância, falando não
apenas da Igreja santa, mas também da Igreja pecadora; e se algo existe a censurar-lhe,
será, no máximo, o facto de se ter conservado hesitante demais nas suas
declarações, tão forte é a impressão da pecaminosidade da Igreja na consciência
de todos. Naturalmente pode haver aí alguma influência teológica luterana sobre
o pecado e, com ela, a agir, uma hipótese gerada de influxo de decisões
dogmáticas. Mas o que torna essa "dogmática" tão penetrante é sua
concordância com a nossa experiência. Os séculos da história da Igreja estão
tão replectos de humano fracasso, que podemos compreender a horrível visão de
Dante, ao descrever a prostituta babilónica sentada na carruagem da Igreja,
parecendo-nos também plausíveis as terríveis palavras do bispo de Paris,
Guillaume d'Auvergne (século XIII) o qual acreditava que qualquer pessoa que
visse o embrutecimento da Igreja, deveria ficar tomado de horror: "Não é mais
esposa, mas um monstro de medonho aspecto e selvageria... ".
Como a santidade, também a catolicidade
da Igreja parece problemática. A túnica inconsútil do Senhor está dividida
entre partidos litigantes, a Igreja única fraccionada em muitas igrejas, das
quais cada uma tem a pretensão, mais ou menos extremada, de ser a única a ter
razão. Por isso a Igreja para muitos tornou-se um real impedimento para a fé.
Eles são capazes apenas de ver as aspirações humanas pelo poder, o espectáculo
mesquinho daqueles seus membros que, afirmando serem os administradores do
cristianismo oficial, parecem constituir o empecilho máximo ao verdadeiro
espírito cristão.
Não existe teoria capaz de rebater
convincentemente tais objecções, como, naturalmente, elas, por sua vez, não
nascem apenas da razão, mas de corações amargurados, desiludidos quiçá na sua
grande expectativa, que, presa de um amor magoado e ferido, apenas sentem a
destruição da sua esperança. Portanto, que resposta podemos dar-lhes? Em última
análise, só podemos fazer uma profissão de fé, explicando por que, apesar de
tudo, estamos em condições de amar esta Igreja, pela fé; por que ousamos, ainda
e sempre, reconhecer, através do rosto desfigurado, a face da santa Igreja.
Apesar disto, comecemos pelos elementos objectivos. A palavra
"santo", como já vimos, não denota em primeiro lugar a santidade de
pessoas humanas, mas aponta para as dádivas divinas que distribuem santidade no
meio da miséria humana. A Igreja é chamada de "santa", não porque
todos os seus membros sejam santos, isentos de pecado – sonho a renovar-se em
todos os séculos mas sem lugar no mundo vigilante do nosso texto, sonho que
exprime tão comovedoramente um anseio dos homens que jamais o podem abandonar,
até que um novo céu e uma terra nova lhes deem o que este tempo presente jamais
lhes poderá conceder. Já neste ponto há-de reconhecer-se que os críticos mais
implacáveis da Igreja no nosso tempo, secretamente, também vivem deste sonho e,
como o encaram desiludidos, batem, a porta da casa e denunciam-no como falso.
Mas, tornemos ao assunto: a santidade da Igreja consiste naquela força de
santificação que Deus exerce nela, apesar da pecaminosidade humana. Deparamos
aqui com a precípua característica da "nova aliança": em Cristo o
próprio Deus amarrou-se aos homens, deixou-se atar por eles. A nova aliança não
se baseia mais – no cumprimento de estipulações mútuas, mas é presente de Deus,
como graça que subsiste também contra a infidelidade do homem. É expressão do
amor de Deus que não se deixa vencer pela incapacidade do homem, mas, apesar de
tudo, volta sempre a mostrar-se-lhe bondoso, a recebê-lo exactamente como
pecador, a voltar-se para o homem, a santificá-lo, a amá-lo.
Devido à doação jamais revogada pelo
Senhor, a Igreja é continuamente santificada por ele, sendo o lugar onde a
santidade do Senhor está presente entre os homens. Mas trata-se da autêntica
santidade do Senhor a tornar-se presente, escolhendo sem cessar, em amor
paradoxal, as mãos poluídas dos homens para vasos da sua presença. É santidade
que, como santidade de Cristo, irradia-se sem cessar no meio do pecado da
Igreja. Assim a figura paradoxal da Igreja, onde o divino tantas vezes se
apresenta em mãos indignas, onde o divino sempre está presente apenas sob a
forma do "apesar de tudo", essa figura é para os crentes um sinal do
"mesmo assim" de um amor de Deus ainda maior. O excitante
entrelaçamento de fidelidade de Deus e de humana infidelidade, que caracteriza
a estrutura da Igreja, é como que a dramática figura da graça, mediante a qual
a realidade desta graça, enquanto agraciamento dos indignos em si, se torna
presente de modo claro na história. Partindo daí, podemos dizer que a Igreja é
a figura da graça neste mundo, precisamente na sua estrutura paradoxal de
santidade e pecaminosidade.
Avancemos mais um passo. A santidade é
imaginada, no sonho humano por um mundo melhor, como isenção do pecado e do
mal, e não misturada com eles; conserva-se assim, de algum modo, uma ideia de
preto-e-branco, que elimina e condena implacavelmente a respectiva forma
negativa (que naturalmente admite muitas maneiras de ser concebida). Na crítica
hodierna da sociedade e nas acções através das quais ela é exercida, torna-se
clara demais esta tendência que sempre acompanha os ideais humanos. Por isso, o
escandaloso na santidade de Cristo já era, para os seus coevos, o facto de lhe faltar
totalmente esse traço julgador – não caiu fogo sobre os indignos nem se
permitiu aos zelosos arrancar o joio que eles viam a vicejar. Ao contrário, a sua
santidade revelava-se precisamente como procura dos pecadores, que Jesus atraía
para perto de si; como um misturar-se até ao extremo de ele próprio se ter
tornado "pecado", carregando a maldição da lei no seu suplício –
total comunidade de destino com o perdido (cfr. 2Cor 5,21; Gál 3,13).
Jesus atraiu a si o pecado e tornou-o parte dele, revelando deste modo o que é
autêntica "santidade": não isolamento, não julgamento, mas amor
salvador. Não é a Igreja a mera continuação desse compromisso divino com a
miséria humana; não é a Igreja a mera continuação da comunidade da mesa de
Jesus com os pecadores, do seu misturar-se com a miséria do pecado, de modo a
dar a impressão de naufragar nele? Na santidade pecadora da Igreja, em
contraste com a expectativa humana dos puros, não se revela a verdadeira
santidade de Deus que é amor, amor que não se conserva a nobre distância diante
dos puros intocáveis, mas se mistura com a sujidade do mundo para vencê-la?
Nesta perspectiva a santidade da Igreja poderia ser outra coisa que o mútuo
suportar-se que, naturalmente, flui para todos do facto de Cristo a todos sustentar?
Confesso: para mim a santidade pecadora
da Igreja tem algo de infinitamente confortador. Pois não se deveria desanimar
diante de uma santidade imaculada, capaz de exercer influência sobre nós
exclusivamente julgando e queimando? E quem poderia afirmar de si que não tem
necessidade de ser suportado e até sustentado por outros? E como poderia
dispensar o suportar, quem vive de ser suportado por parte dos outros? Não
estaria aí a única dádiva que ele está em condições de oferecer em troca, o único
consolo que lhe resta, por suportar assim como é suportado? A santidade na
Igreja começa com o suportar-se e conduz ao portar, ao carregar; ora, onde não
há mais o suportar, cessa o portar, e à existência sem apoio só lhe resta cair
no vácuo. Pode conceder-se calmamente que em tais palavras se exprime uma
existência precária faz parte do ser-cristão a impossibilidade da autarquia e a
própria fraqueza: existe sempre um secreto orgulho a actuar no fundo da crítica
contra a Igreja, quando ela assume aquele amargor de fel que hoje começa a
tomar feição de gíria. Lamentavelmente, não poucas vezes, a esse amargor
associa-se um vazio espiritual, em que não se enxerga mais a Igreja na sua
forma exacta, mas se considera apenas como uma estrutura política utilitária,
cuja organização se sente como mísera ou brutal, como se o específico da
Igreja não se localizasse para além da instituição, no conforto da palavra e
dos sacramentos que a Igreja prodigaliza em bons e maus dias. Os crentes
autênticos não dão excessiva importância à luta pela reorganização de formas
eclesiásticas. Vivem do que a Igreja sempre é. E querendo saber o que é a
Igreja, basta dirigir-se a eles. Porquanto a Igreja geralmente está não onde se
organiza, reforma, rege, mas nos que creem singelamente, recebendo dela a
dádiva da fé, que se lhes torna fonte de vida. Só quem experimentou de que
modo, por cima das vicissitudes dos seus ministros e das suas formas, a Igreja
sustenta os homens, lhes dá pátria e esperança, uma pátria que é esperança: caminho
para a vida eterna – só quem o experimentou, sabe o que é Igreja em todos os
tempos.
Isto não significa que se deva deixar
tudo correr como sempre foi, aceitando-o como inevitável. O suportar pode ser
um processo altamente ativo, uma luta para tornar a Igreja sempre mais
suportadora e portadora. A Igreja não vive de outro modo senão em nós, vive da
luta dos pecadores pela santidade, como, logicamente, esta luta vive da dádiva
divina sem a qual seria irrealizável. Mas esta luta frutificará e edificará
somente quando animada pelo espírito do suportar, pelo verdadeiro amor.
Simultaneamente tocamos aqui no critério a ser aplicado sempre a qualquer luta
crítica por uma santidade melhor, critério que não só não se opõe ao suportar,
mas que é por ele exigido. Esse critério é a edificação. Um amargor que só
destrói, já se julga a si mesmo. Uma porta fechada, sem dúvida, pode servir de
lembrete a sacudir os que ficaram do lado de dentro. Mas a ilusão de que na
solidão se possa edificar mais do que no convívio não passa de ilusão, exactamente
como a utopia de uma Igreja dos "santos" em invés de uma "santa
Igreja", que é santa porque o Senhor oferece nela a dádiva da santidade
sem merecimento.
Com isto chegamos a outra palavra com
que o Credo denomina a Igreja: ela é "católica". São múltiplas as
nuances de sentido que esta palavra traz, desde a origem. Apesar disto, pode
constatar-se um pensamento principal como decisivo desde o início: a palavra
aponta para a unidade da Igreja em dois sentidos: primeiro, para a unidade
local – somente é "Igreja católica" a comunidade unida com o bispo, e
não os agrupamentos que – qualquer que seja a razão – se tenham dela separado.
Em segundo lugar, conota-se com ela a unidade das numerosas igrejas locais,
ligadas entre si, que não podem fechar-se em si mesmas, somente podendo
continuar como Igreja se permanecerem inter-abertas, dando testemunho comum da
palavra e da comunhão da mesa eucarística, à disposição de todos os que
integram uma Igreja. As antigas explicações do Credo confrontam a Igreja
"católica" com aquelas igrejas que existem "só nas suas
províncias", contradizendo assim a verdadeira natureza da Igreja.
Portanto, na palavra
"católica" expressa-se a estrutura episcopal da Igreja e a
necessidade da união de todos os bispos entre si; o símbolo não contém nenhuma
alusão à cristalização dessa unidade na sede episcopal de Roma. Sem dúvida,
versaria em erro quem concluísse daí que um tal ponto de orientação ou
convergência da unidade não passa de evolução secundária. Em Roma, onde surgiu
o nosso símbolo, muito depressa essa ideia passou a ser considerada como
evidente. Contudo, é certo que essa afirmação não se deve contar entre os
elementos primários do conceito de Igreja e muito menos ainda encarada como seu
ponto de construção propriamente dito. Surgem antes como elementos básicos da
Igreja: perdão, conversão, penitência, comunidade eucarística e, a partir dela,
pluralidade e unidade: pluralidade das igrejas locais que, no entanto, só se
conservam igrejas pelo entrosamento no organismo da Igreja única. – Como
conteúdo da unidade devem ser considerados, antes de tudo, palavra e sacramento
– a Igreja é una pela palavra una e pelo único pão. A estrutura episcopal
transparece como instrumento desta unidade. Ela não existe para si, mas
pertence à ordem dos meios; a sua posição pode ser descrita pela partícula
"para": ela serve a concretização da unidade das igrejas locais em si
e entre si. Um próximo estádio na ordem dos meios descreveria serviço do bispo
de Roma.
Uma coisa é clara: a Igreja não deve
ser pensada a partir da sua organização, mas a organização a partir da
Igreja. Ao mesmo tempo, porém, é claro que, para a Igreja visível, a unidade
visível é algo mais do que "organização". A unidade concreta da fé
comum a testemunhar-se na palavra e na mesa comum de Jesus Cristo pertence
essencialmente ao sinal a ser erguido pela Igreja no meio do mundo. Só como
"católica", isto é, visivelmente una, apesar da multiplicidade, a
Igreja corresponde ao postulado do Credo. Cumpre-lhe ser sinal e instrumento de
unidade em meio do mundo dilacerado, superando e unindo nações, raças e
classes. Por mais que ela tenha sempre fracassado, saibamos: já na antiguidade lhe
foi infinitamente pesado ser ao mesmo tempo Igreja dos bárbaros e dos romanos;
na época moderna ela não conseguiu evitar a luta entre nações cristãs e hoje
continua não logrando unir ricos e pobres de modo tal que o excesso de uns se
torne a saciação dos outros – continua irrealizado o sinal da comunidade de
mesa. Apesar disto, não se podem negar todos os imperativos que a pretensão de
catolicidade sem cessar fez e faz soar aos ouvidos dos homens; sobretudo,
porém, em vez de ajustar contas com o passado, cumpriria colocar-nos à
disposição do presente, tentando não só professar catolicidade no Credo, mas
realizá-la pela vida em nosso mundo conturbado.
(cont)
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)