20/06/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual


INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO

"Creio em Deus" – Hoje

TERCEIRA PARTE
O ESPÍRITO E A IGREJA
CAPÍTULO SEGUNDO

Duas Questões Fundamentais do Artigo sobre o Espírito Santo e sobre a Igreja

As considerações feitas até aqui tentaram sublinhar a riqueza e a vastidão dos Últimos artigos do símbolo. Ressoam aí novamente a imagem cristã do homem, o problema do pecado e da salvação; sobretudo, porém, neles está ancorada a afirmação da ideia sacramental que, por sua vez, exprime o cerne do conceito de Igreja: Igreja e sacramento estão unidos como que por um cordão umbilical: ficam de pé ou caem juntamente. Igreja sem sacramentos não passaria de organização vazia; e sacramentos sem Igreja seriam ritos sem sentido e sem nexo interno. Portanto, a primeira questão principal apresentada pelo último artigo do Credo é sobre a Igreja; o outro grande problema indicado ali está contido no artigo sobre a "ressurreição da carne", doutrina não menos escandalosa para a nossa mentalidade moderna do que o foi para o espiritualismo do mundo helénico, muito embora os motivos do escândalo tenham sido alterados. Vamos tentar uma reflexão um pouco mais detalhada sobre estas questões, à guisa de epílogo para o nosso giro através do símbolo.

1.   "A Igreja santa, católica”.

Evidentemente não podemos desenvolver aqui uma doutrina completa sobre a Igreja. Abstraindo das diversas questões teológicas, técnicas, desejamos tentar concisamente descobrir a dificuldade exacta que nos barra o caminho ao pronunciarmos a fórmula da "Igreja santa, católica", e esforçar-nos por identificar a resposta já incluída no mesmo texto do Credo. Sem perder de vista o que se disse antes a respeito da localização espiritual e do nexo intrínseco dessas palavras relacionadas com a crença na poderosa actividade do Espírito Santo na história e, por outro lado, expressas nas palavras do perdão dos pecados e da comunhão dos santos, em que se aponta para o baptismo, a penitência e a eucaristia como pontos arquitectónicos da Igreja, como seu exacto conteúdo e sua certa maneira de existir.

Se se conserva diante dos olhos este duplo nexo, quiçá já se tenha eliminado muito do que nos perturba na crença na Igreja. Apesar disto manifestemos o que hoje nos preocupa neste ponto. Se formos sinceros, seremos tentados a dizer que a Igreja não é nem santa, nem católica: o próprio Concílio Vaticano II venceu a relutância, falando não apenas da Igreja santa, mas também da Igreja pecadora; e se algo existe a censurar-lhe, será, no máximo, o facto de se ter conservado hesitante demais nas suas declarações, tão forte é a impressão da pecaminosidade da Igreja na consciência de todos. Naturalmente pode haver aí alguma influência teológica luterana sobre o pecado e, com ela, a agir, uma hipótese gerada de influxo de decisões dogmáticas. Mas o que torna essa "dogmática" tão penetrante é sua concordância com a nossa experiência. Os séculos da história da Igreja estão tão replectos de humano fracasso, que podemos compreender a horrível visão de Dante, ao descrever a prostituta babilónica sentada na carruagem da Igreja, parecendo-nos também plausíveis as terríveis palavras do bispo de Paris, Guillaume d'Auvergne (século XIII) o qual acreditava que qualquer pessoa que visse o embrutecimento da Igreja, deveria ficar tomado de horror: "Não é mais esposa, mas um monstro de medonho aspecto e selvageria... ".

Como a santidade, também a catolicidade da Igreja parece problemática. A túnica inconsútil do Senhor está dividida entre partidos litigantes, a Igreja única fraccionada em muitas igrejas, das quais cada uma tem a pretensão, mais ou menos extremada, de ser a única a ter razão. Por isso a Igreja para muitos tornou-se um real impedimento para a fé. Eles são capazes apenas de ver as aspirações humanas pelo poder, o espectáculo mesquinho daqueles seus membros que, afirmando serem os administradores do cristianismo oficial, parecem constituir o empecilho máximo ao verdadeiro espírito cristão.

Não existe teoria capaz de rebater convincentemente tais objecções, como, naturalmente, elas, por sua vez, não nascem apenas da razão, mas de corações amargurados, desiludidos quiçá na sua grande expectativa, que, presa de um amor magoado e ferido, apenas sentem a destruição da sua esperança. Portanto, que resposta podemos dar-lhes? Em última análise, só podemos fazer uma profissão de fé, explicando por que, apesar de tudo, estamos em condições de amar esta Igreja, pela fé; por que ousamos, ainda e sempre, reconhecer, através do rosto desfigurado, a face da santa Igreja. Apesar disto, comecemos pelos elementos objectivos. A palavra "santo", como já vimos, não denota em primeiro lugar a santidade de pessoas humanas, mas aponta para as dádivas divinas que distribuem santidade no meio da miséria humana. A Igreja é chamada de "santa", não porque todos os seus membros sejam santos, isentos de pecado – sonho a renovar-se em todos os séculos mas sem lugar no mundo vigilante do nosso texto, sonho que exprime tão comovedoramente um anseio dos homens que jamais o podem abandonar, até que um novo céu e uma terra nova lhes deem o que este tempo presente jamais lhes poderá conceder. Já neste ponto há-de reconhecer-se que os críticos mais implacáveis da Igreja no nosso tempo, secretamente, também vivem deste sonho e, como o encaram desiludidos, batem, a porta da casa e denunciam-no como falso. Mas, tornemos ao assunto: a santidade da Igreja consiste naquela força de santificação que Deus exerce nela, apesar da pecaminosidade humana. Deparamos aqui com a precípua característica da "nova aliança": em Cristo o próprio Deus amarrou-se aos homens, deixou-se atar por eles. A nova aliança não se baseia mais – no cumprimento de estipulações mútuas, mas é presente de Deus, como graça que subsiste também contra a infidelidade do homem. É expressão do amor de Deus que não se deixa vencer pela incapacidade do homem, mas, apesar de tudo, volta sempre a mostrar-se-lhe bondoso, a recebê-lo exactamente como pecador, a voltar-se para o homem, a santificá-lo, a amá-lo.

Devido à doação jamais revogada pelo Senhor, a Igreja é continuamente santificada por ele, sendo o lugar onde a santidade do Senhor está presente entre os homens. Mas trata-se da autêntica santidade do Senhor a tornar-se presente, escolhendo sem cessar, em amor paradoxal, as mãos poluídas dos homens para vasos da sua presença. É santidade que, como santidade de Cristo, irradia-se sem cessar no meio do pecado da Igreja. Assim a figura paradoxal da Igreja, onde o divino tantas vezes se apresenta em mãos indignas, onde o divino sempre está presente apenas sob a forma do "apesar de tudo", essa figura é para os crentes um sinal do "mesmo assim" de um amor de Deus ainda maior. O excitante entrelaçamento de fidelidade de Deus e de humana infidelidade, que caracteriza a estrutura da Igreja, é como que a dramática figura da graça, mediante a qual a realidade desta graça, enquanto agraciamento dos indignos em si, se torna presente de modo claro na história. Partindo daí, podemos dizer que a Igreja é a figura da graça neste mundo, precisamente na sua estrutura paradoxal de santidade e pecaminosidade.

Avancemos mais um passo. A santidade é imaginada, no sonho humano por um mundo melhor, como isenção do pecado e do mal, e não misturada com eles; conserva-se assim, de algum modo, uma ideia de preto-e-branco, que elimina e condena implacavelmente a respectiva forma negativa (que naturalmente admite muitas maneiras de ser concebida). Na crítica hodierna da sociedade e nas acções através das quais ela é exercida, torna-se clara demais esta tendência que sempre acompanha os ideais humanos. Por isso, o escandaloso na santidade de Cristo já era, para os seus coevos, o facto de lhe faltar totalmente esse traço julgador – não caiu fogo sobre os indignos nem se permitiu aos zelosos arrancar o joio que eles viam a vicejar. Ao contrário, a sua santidade revelava-se precisamente como procura dos pecadores, que Jesus atraía para perto de si; como um misturar-se até ao extremo de ele próprio se ter tornado "pecado", carregando a maldição da lei no seu suplício – total comunidade de destino com o perdido (cfr. 2Cor 5,21; Gál 3,13). Jesus atraiu a si o pecado e tornou-o parte dele, revelando deste modo o que é autêntica "santidade": não isolamento, não julgamento, mas amor salvador. Não é a Igreja a mera continuação desse compromisso divino com a miséria humana; não é a Igreja a mera continuação da comunidade da mesa de Jesus com os pecadores, do seu misturar-se com a miséria do pecado, de modo a dar a impressão de naufragar nele? Na santidade pecadora da Igreja, em contraste com a expectativa humana dos puros, não se revela a verdadeira santidade de Deus que é amor, amor que não se conserva a nobre distância diante dos puros intocáveis, mas se mistura com a sujidade do mundo para vencê-la? Nesta perspectiva a santidade da Igreja poderia ser outra coisa que o mútuo suportar-se que, naturalmente, flui para todos do facto de Cristo a todos sustentar?

Confesso: para mim a santidade pecadora da Igreja tem algo de infinitamente confortador. Pois não se deveria desanimar diante de uma santidade imaculada, capaz de exercer influência sobre nós exclusivamente julgando e queimando? E quem poderia afirmar de si que não tem necessidade de ser suportado e até sustentado por outros? E como poderia dispensar o suportar, quem vive de ser suportado por parte dos outros? Não estaria aí a única dádiva que ele está em condições de oferecer em troca, o único consolo que lhe resta, por suportar assim como é suportado? A santidade na Igreja começa com o suportar-se e conduz ao portar, ao carregar; ora, onde não há mais o suportar, cessa o portar, e à existência sem apoio só lhe resta cair no vácuo. Pode conceder-se calmamente que em tais palavras se exprime uma existência precária faz parte do ser-cristão a impossibilidade da autarquia e a própria fraqueza: existe sempre um secreto orgulho a actuar no fundo da crítica contra a Igreja, quando ela assume aquele amargor de fel que hoje começa a tomar feição de gíria. Lamentavelmente, não poucas vezes, a esse amargor associa-se um vazio espiritual, em que não se enxerga mais a Igreja na sua forma exacta, mas se considera apenas como uma estrutura política utilitária, cuja organização se sente como mísera ou brutal, como se o específico da Igreja não se localizasse para além da instituição, no conforto da palavra e dos sacramentos que a Igreja prodigaliza em bons e maus dias. Os crentes autênticos não dão excessiva importância à luta pela reorganização de formas eclesiásticas. Vivem do que a Igreja sempre é. E querendo saber o que é a Igreja, basta dirigir-se a eles. Porquanto a Igreja geralmente está não onde se organiza, reforma, rege, mas nos que creem singelamente, recebendo dela a dádiva da fé, que se lhes torna fonte de vida. Só quem experimentou de que modo, por cima das vicissitudes dos seus ministros e das suas formas, a Igreja sustenta os homens, lhes dá pátria e esperança, uma pátria que é esperança: caminho para a vida eterna – só quem o experimentou, sabe o que é Igreja em todos os tempos.

Isto não significa que se deva deixar tudo correr como sempre foi, aceitando-o como inevitável. O suportar pode ser um processo altamente ativo, uma luta para tornar a Igreja sempre mais suportadora e portadora. A Igreja não vive de outro modo senão em nós, vive da luta dos pecadores pela santidade, como, logicamente, esta luta vive da dádiva divina sem a qual seria irrealizável. Mas esta luta frutificará e edificará somente quando animada pelo espírito do suportar, pelo verdadeiro amor. Simultaneamente tocamos aqui no critério a ser aplicado sempre a qualquer luta crítica por uma santidade melhor, critério que não só não se opõe ao suportar, mas que é por ele exigido. Esse critério é a edificação. Um amargor que só destrói, já se julga a si mesmo. Uma porta fechada, sem dúvida, pode servir de lembrete a sacudir os que ficaram do lado de dentro. Mas a ilusão de que na solidão se possa edificar mais do que no convívio não passa de ilusão, exactamente como a utopia de uma Igreja dos "santos" em invés de uma "santa Igreja", que é santa porque o Senhor oferece nela a dádiva da santidade sem merecimento.

Com isto chegamos a outra palavra com que o Credo denomina a Igreja: ela é "católica". São múltiplas as nuances de sentido que esta palavra traz, desde a origem. Apesar disto, pode constatar-se um pensamento principal como decisivo desde o início: a palavra aponta para a unidade da Igreja em dois sentidos: primeiro, para a unidade local – somente é "Igreja católica" a comunidade unida com o bispo, e não os agrupamentos que – qualquer que seja a razão – se tenham dela separado. Em segundo lugar, conota-se com ela a unidade das numerosas igrejas locais, ligadas entre si, que não podem fechar-se em si mesmas, somente podendo continuar como Igreja se permanecerem inter-abertas, dando testemunho comum da palavra e da comunhão da mesa eucarística, à disposição de todos os que integram uma Igreja. As antigas explicações do Credo confrontam a Igreja "católica" com aquelas igrejas que existem "só nas suas províncias", contradizendo assim a verdadeira natureza da Igreja.

Portanto, na palavra "católica" expressa-se a estrutura episcopal da Igreja e a necessidade da união de todos os bispos entre si; o símbolo não contém nenhuma alusão à cristalização dessa unidade na sede episcopal de Roma. Sem dúvida, versaria em erro quem concluísse daí que um tal ponto de orientação ou convergência da unidade não passa de evolução secundária. Em Roma, onde surgiu o nosso símbolo, muito depressa essa ideia passou a ser considerada como evidente. Contudo, é certo que essa afirmação não se deve contar entre os elementos primários do conceito de Igreja e muito menos ainda encarada como seu ponto de construção propriamente dito. Surgem antes como elementos básicos da Igreja: perdão, conversão, penitência, comunidade eucarística e, a partir dela, pluralidade e unidade: pluralidade das igrejas locais que, no entanto, só se conservam igrejas pelo entrosamento no organismo da Igreja única. – Como conteúdo da unidade devem ser considerados, antes de tudo, palavra e sacramento – a Igreja é una pela palavra una e pelo único pão. A estrutura episcopal transparece como instrumento desta unidade. Ela não existe para si, mas pertence à ordem dos meios; a sua posição pode ser descrita pela partícula "para": ela serve a concretização da unidade das igrejas locais em si e entre si. Um próximo estádio na ordem dos meios descreveria serviço do bispo de Roma.

Uma coisa é clara: a Igreja não deve ser pensada a partir da sua organização, mas a organização a partir da Igreja. Ao mesmo tempo, porém, é claro que, para a Igreja visível, a unidade visível é algo mais do que "organização". A unidade concreta da fé comum a testemunhar-se na palavra e na mesa comum de Jesus Cristo pertence essencialmente ao sinal a ser erguido pela Igreja no meio do mundo. Só como "católica", isto é, visivelmente una, apesar da multiplicidade, a Igreja corresponde ao postulado do Credo. Cumpre-lhe ser sinal e instrumento de unidade em meio do mundo dilacerado, superando e unindo nações, raças e classes. Por mais que ela tenha sempre fracassado, saibamos: já na antiguidade lhe foi infinitamente pesado ser ao mesmo tempo Igreja dos bárbaros e dos romanos; na época moderna ela não conseguiu evitar a luta entre nações cristãs e hoje continua não logrando unir ricos e pobres de modo tal que o excesso de uns se torne a saciação dos outros – continua irrealizado o sinal da comunidade de mesa. Apesar disto, não se podem negar todos os imperativos que a pretensão de catolicidade sem cessar fez e faz soar aos ouvidos dos homens; sobretudo, porém, em vez de ajustar contas com o passado, cumpriria colocar-nos à disposição do presente, tentando não só professar catolicidade no Credo, mas realizá-la pela vida em nosso mundo conturbado.

(cont)

joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.


(Revisão da versão portuguesa por ama)

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