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Navegando pela minha cidade
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Quem anda a pé pelas ruas da cidade precisa de ter muito cuidado. É um cuidado que nos obriga a andar como o escritor obssessivo-compulsivo interpretado por Jack Nicholson no filme MELHOR É IMPOSSÍVEL.
Ou seja, tem de permanentemente ir a olhar para o chão, de forma a evitar – não as riscas no cimento ou da separação das placas dos passeios que o escritor não podia pisar – mas da porcaria que os cães lá deixam todos os dias com a mesma regularidade da do funcionamento dos seus intestinos.
É verdadeiramente um triste resultado da falta de civismo dos seus donos. Ou antes, falta de respeito pelos outros. Sendo que a falta de respeito pelos outros começa, talvez, por ser uma falta de respeito por si próprios.
Mas se fosse só isto … mas é muito mais do que isto. Este é apenas um dos impactos – de menor importância - da falência de um povo como tal.
Chamem-lhe o quiserem: falência; insolvência; decadência; desistência; degenerescência. O que quiserem. Seja qual deles for, será sempre o fim que se aproxima mais tarde ou mais cedo.
Um artigo do jornal Público de hoje informa: Seremos apenas seis milhões em 2100. O último relatório da ONU sobre estimativas da população mundial, divulgado esta semana, revela que Portugal terá em 2100 menos quatro milhões de habitantes … é uma redução de 36,8%.
Leston Bandeira da Associação Portuguesa de Demografia ainda tem esperança e diz que com “políticas inteligentes” e políticos “capazes” será possível contrariar as previsões.
E onde estão umas e outros? Mas isto não é uma questão política nem de políticos.
Isto é uma questão civilizacional. E a nossa civilização está a desumanizar-se: porque não quer ter filhos; não quer ter pais; não quer ter família; não quer ter responsabilidades; não quer trabalhar; não quer sofrer; não quer lutar; não quer ser criatura; não quer existir realmente.
Mas quer ter tudo; quer ser feliz. Mais, quer ter direito ao amor, não sabendo que ele não é um direito, mas uma inscrição na coração do Homem.
E como o amor não é alcançável sem dar; sem se dar - para saciar essa imensa fome de afecto - que é a expressão sensível do amor - estão cá os cães de todos os feitios, tamanhos, raças e cores para satisfazer os mais variados gostos e carências afectivas. Afinal não é o homem o melhor amigo do cão?
Cães que, paulatinamente, vão transformando a cidade – quarteirão a quarteirão – num enorme e monstruoso canil cujos utentes ladram, e ladram durante o dia todo e que ao anoitecer uivam desesperadamente uns para os outros … ou uns com os outros.
Parafraseando, cumpre-se a sentença de Plauto: Homo homini canis.
E assistimos sem questionar, a esta obscenidade que é a de – num país com mais de 20% da população a viver na pobreza ou no seu limiar – os hiper; super e mini mercados terem cada vez mais espaço para a venda de comida para cães (e gatos); e haver cada vez mais clínicas; hospitais e hotéis para cães.
Sinto-me sempre envergonhado quando passo por sacos de arroz e enlatados de carne para cão e me lembro de tanta e tanta gente que se vende por um pouco de comida.
Quando se fala na perda de valores fala-se numa abstracção ou fala-se em actos concretos, atitudes e práticas de vida? Desde as mais simples e pouco importantes até às mais complexas e muito importantes. E a prática de um valor interage sempre com o outro porque só existe em função do outro; o homem só não existe.
Tive um cão que se chamava Cão – pois era isso que ele era – ao qual sempre só dei restos e foi muito mais feliz do que estes desgraçados engaiolados nas varandas desta cidade.
Neste ritmo de perda de valores - causa e efeito da perda demográfica - desapareceremos muito brevemente.
E Depois? Depois ficam os cães sozinhos a comerem-se uns aos outros.
O resto é silêncio.
Afonso Cabral