Evangelho: Mt 18 12-14
12 «Que vos parece? Se alguém tiver cem ovelhas, e uma delas se
extraviar, porventura não deixa as outras noventa e nove no monte, e vai em
busca daquela que se extraviou? 13 E, se acontecer encontrá-la,
digo-vos em verdade que se alegra mais por esta, do que pelas noventa e nove
que não se extraviaram. 14 Assim, não é a vontade de vosso Pai que
está nos céus que pereça um só destes pequeninos.
Comentário:
Meditando
este texto podemos imaginar a sensação de alívio da ovelha perdida ao ser
encontrada pelo pastor.
Como se
sentiria confortável aos ombros daquele que tão bem conhece e em quem confia!
Ah! E o
regresso ao redil familiar, o reencontro com o rebanho!
(ama, comentário sobre Mt 18, 12-14, 2013.12.10)
Leitura espiritual
São Josemaria Escrivá
Amigos de Deus 23 a 29
23
Tenho
recordado com frequência aquela cena comovedora que o Evangelho nos relata:
Jesus está na barca de Pedro, de onde tinha falado ao povo. Essa multidão que o
seguia moveu o afã de almas que consome o seu Coração e o Divino Mestre quer
que os discípulos participem quanto antes desse zelo. Depois de lhes dizer que
se façam ao largo - duc in altum! - sugere a Pedro que lance as redes para
pescar.
Não
me vou demorar agora nos pormenores, tão instrutivos, desses momentos. Desejo
que consideremos a reacção do Príncipe dos Apóstolos perante o milagre:
afasta-te de mim, Senhor, que sou um homem pecador. É uma verdade - disso não
tenho dúvidas - que se ajusta perfeitamente à situação pessoal de todos. No
entanto, asseguro-vos que, ao tropeçar durante a minha vida com tantos
prodígios da graça, realizados através de mãos humanas, tenho-me sentido
inclinado, diariamente cada vez mais inclinado, a gritar: Senhor, não te
afastes de mim, pois sem Ti não posso fazer nada de bom.
Precisamente
por isso, percebo muito bem aquelas palavras do Bispo de Hipona, que soam como
um cântico maravilhoso à liberdade: Deus, que te criou sem ti, não te salvará
sem ti, porque cada um de nós, tu, eu, temos sempre a possibilidade - a triste
desventura - de nos levantarmos contra Deus, de rejeitá-lo - talvez só com a
nossa conduta - ou de exclamar: não queremos que reine sobre nós.
24
Escolher a vida
Agradecidos
por nos apercebermos da felicidade a que estamos chamados, aprendemos que todas
as criaturas foram tiradas do nada por Deus e para Deus: as racionais, os
homens, apesar de tão frequentemente perdermos a razão; e as irracionais, as
que percorrem a superfície da terra, ou habitam as entranhas do mundo, ou
cruzam o azul do céu, algumas delas até fitarem o Sol. Mas, no meio desta
maravilhosa variedade, só nós, homens -não falo aqui dos anjos - nos unimos ao
Criador pelo exercício da nossa liberdade, podendo prestar ou negar a Nosso
Senhor a glória que lhe corresponde como Autor de tudo o que existe.
Essa
possibilidade é a principal componente do claro-escuro da liberdade humana.
Nosso Senhor convida-nos e anima-nos a escolher o bem, porque nos ama
profundamente. Considera que ponho hoje diante de ti, dum lado, a vida e o bem,
do outro, a morte e o mal. Recomendo-te que ames o Senhor teu Deus, que andes
nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, as suas leis e os seus
decretos. Se assim fizeres, viverás... Escolhe, pois, a vida para que vivas.
Queres
pensar - pela minha parte também farei o meu exame - se manténs imutável e
firme a tua escolha da Vida? Se, ao ouvires essa voz de Deus, amabilíssima, que
te estimula à santidade, respondes livremente que sim? Dirijamos o olhar para o
nosso Jesus, quando falava às multidões pelas cidades e campos da Palestina.
Não pretende impor-se. Se queres ser perfeito..., diz ao jovem rico. Aquele
rapaz rejeitou o convite e o Evangelho conta que abiit tristis , que se retirou
entristecido. Por isso, alguma vez lhe chamei a ave triste: perdeu a alegria,
porque se negou a entregar a liberdade a Deus.
25
Consideremos
agora o momento sublime em que o Arcanjo São Gabriel anuncia a Santa Maria o
desígnio do Altíssimo. A nossa Mãe ouve e interroga para compreender melhor
aquilo que Nosso Senhor lhe pede; depois, surge a resposta firme: Fiat! -
faça-se em mim segundo a tua palavra! -, o fruto da melhor liberdade: a de se
decidir por Deus.
Em
todos os mistérios da nossa fé católica paira esse cântico à liberdade. A
Santíssima Trindade tira do nada o mundo e o homem, num livre esbanjamento de
amor. O Verbo desce do Céu e assume a nossa carne com este selo maravilhoso da
liberdade na submissão: eis que venho, segundo está escrito de mim no princípio
do livro, para fazer, ó Deus, a tua vontade . Quando chega a hora marcada por
Deus para salvar a humanidade da escravidão do pecado, contemplamos Jesus
Cristo em Getsemani, sofrendo terrivelmente até derramar um suor de sangue e
aceitando rendida e espontaneamente o sacrifício que o Pai lhe reclama: como
cordeiro levado ao matadouro, como ovelha muda diante dos tosquiadores. Já o
tinha anunciado aos seus, numa daquelas conversas em que abria o Coração, com a
finalidade de que aqueles que o amam conheçam que Ele é o Caminho - não há
outro - para se aproximarem do Pai: por isso o meu Pai me ama, porque dou a
minha vida para outra vez a assumir. Ninguém ma tira, mas Eu é que a dou por
minha própria vontade e tenho o poder de a dar e o poder de a recobrar.
26
O sentido da liberdade
Nunca
poderemos entender perfeitamente a liberdade de Jesus Cristo, imensa - infinita
- como o Seu amor. Mas o tesouro preciosíssimo do Seu generoso holocausto deve
levar-nos a pensar: porque me deste, Senhor, este privilégio com que sou capaz
de seguir os teus passos, mas também de Te ofender? Acabamos, assim, por
calibrar o recto uso da liberdade, se se inclina para o bem; e a sua errada
orientação, quando, com essa faculdade, o homem se esquece, se afasta do Amor
dos amores. A liberdade pessoal - que defendo e defenderei sempre com todas as
minhas forças - leva-me a perguntar com uma segurança convicta e também
consciente da minha própria fraqueza: que esperas de mim, Senhor, para o fazer
voluntariamente?
O
próprio Cristo nos responde: Veritas liberabit vos; a verdade far-vos-á livres.
Que verdade é esta, que inicia e consuma o caminho da liberdade em toda a nossa
vida? Resumi-la-ei com a alegria e com a certeza que provêm da relação de Deus
com as suas criaturas: saber que saímos das mãos de Deus, que somos objecto da
predilecção da Santíssima Trindade, que somos filhos de um Pai tão grande. Peço
ao meu Senhor que nos decidamos a apercebermo-nos disso, a saboreá-lo dia após
dia: assim actuaremos como pessoas livres. Não esqueçamos: quem não sabe que é
filho de Deus desconhece a sua verdade mais íntima e carece, na sua actuação,
do domínio e do senhorio próprios dos que amam Nosso Senhor, sobre todas as
coisas.
Persuadamo-nos
de que para ganhar o Céu temos de nos empenhar livremente, com uma decisão
plena, constante e voluntária. Mas a liberdade não se basta a si mesma:
necessita de um norte, de uma orientação. A alma não pode andar sem ninguém que
a dirija; e para isso foi redimida de modo que tenha por Rei Cristo, cujo jugo
é suave e a carga leve (Mt 11, 30), e não o diabo, cujo jugo é pesado.
Não
nos deixemos enganar pelos que se conformam com uma triste vozearia: liberdade!
liberdade! Muitas vezes, nesse mesmo clamor, esconde-se uma trágica servidão:
porque a escolha que prefere o erro não liberta; o único que liberta é Cristo,
pois só Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida.
27
Perguntemo-nos
de novo, na presença de Deus: Senhor, para que nos deste este poder? Porque
depositaste em nós esta faculdade de Te escolher ou de Te rejeitar? Tu desejas
que usemos acertadamente esta nossa capacidade. Senhor, que queres que eu
faça?. A resposta é diáfana e precisa: amarás o Senhor teu Deus com todo o teu
coração e com toda a tua alma e com toda a tua mente .
Vêem?
A liberdade adquire o seu sentido autêntico quando se exerce ao serviço da
verdade que resgata, quando se gasta a procurar o amor infinito de Deus, que
nos desata de todas as escravidões. Aumentam cada vez mais os meus desejos de
anunciar em altos brados esta insondável riqueza do cristão: a liberdade da
glória dos filhos de Deus! Nisso se resume a boa vontade que nos ensina a
seguir o bem, depois de o distinguir do mal.
Gostaria
que meditássemos num ponto fundamental que nos situa perante a responsabilidade
da nossa consciência. Ninguém pode escolher por nós: eis o grau supremo da dignidade
dos homens: que, por si mesmos e não por outros, se dirijam para o bem . Muitos
de nós herdámos dos nossos pais a fé católica e, por graça de Deus, quando
recém-nascidos recebemos o Baptismo, começou na alma a vida sobrenatural. Mas
temos de renovar ao longo da nossa existência - e mesmo ao longo de cada dia -
a determinação de amar a Deus sobre todas as coisas. É cristão, digo,
verdadeiro cristão, aquele que se submete ao império do único Verbo de Deus,
sem impor condições a esse acatamento, disposto a resistir à tentação diabólica
com a mesma atitude de Cristo: Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
28
Liberdade e entrega
O
amor de Deus é ciumento; não fica satisfeito, se nos apresentarmos com
condições no encontro marcado: espera com impaciência que nos entreguemos
totalmente, que não guardemos no coração recantos escuros, onde o gozo e a
alegria da graça e dos dons sobrenaturais não consigam chegar. Talvez pensem:
responder sim a esse Amor exclusivo não é, porventura, perder a liberdade?
Com
a ajuda de Nosso Senhor, que preside à nossa oração, com a sua luz, espero que
este tema fique ainda mais definido para vós e para mim. Cada um de nós sabe
por experiência que, algumas vezes, seguir Cristo Nosso Senhor implica dor e
fadiga. Negar esta realidade significaria não se ter encontrado com Deus. A
alma apaixonada sabe que essa dor é uma impressão passageira e bem depressa
descobre que o seu peso é leve e a sua carga suave, porque Ele a leva às costas,
tal como se abraçou ao madeiro quando estava em jogo a nossa felicidade eterna.
Mas há homens que não entendem, que se revoltam contra o Criador - uma rebelião
impotente, mesquinha, triste -, que repetem cegamente a queixa inútil que o
Salmo regista: Quebremos os seus laços! Para longe de nós o seu jugo. Resistem
a realizar, com silêncio heróico, com naturalidade, sem brilho e sem lamentações,
o trabalho duro de cada dia. Não compreendem que a Vontade divina, mesmo quando
se apresenta com matizes de dor, de exigências que ferem, coincide exactamente
com a liberdade, que só reside em Deus e nos seus desígnios.
29
São
almas que fazem barricadas com a liberdade. A minha liberdade, a minha
liberdade! Têm-na e não a seguem; olham-na e põem-na como um ídolo de barro
dentro do seu entendimento mesquinho. É isso liberdade? Que aproveitam dessa
riqueza sem um compromisso sério, que oriente toda a existência? Um tal
comportamento opõe-se à categoria própria, à nobreza, da pessoa humana. Falta a
rota, o caminho claro que oriente os seus passos na terra; essas almas -
decerto já as encontraram, como eu - depressa se deixarão arrastar pela vaidade
pueril, pela presunção egoísta, pela sensualidade.
A
sua liberdade mostra-se estéril ou produz frutos ridículos, mesmo do ponto de
vista humano. Quem não escolhe - com plena liberdade! - uma norma recta de
conduta, ver-se-á manipulado por outros cedo ou tarde, viverá na indolência -
como um parasita - sujeito ao que os outros determinarem. Prestar-se-á a ser
cirandado por qualquer vento e outros resolverão sempre por ele. São nuvens sem
água que os ventos levam de um lado para o outro, árvores outonais, sem fruto;
duas vezes mortas, sem raízes, ainda que se encubram, numa contínua tagarelice,
com paliativos que tentam disfarçar a sua falta de carácter, de valentia e de
honradez.
"Mas
a mim ninguém me coage!", repetem obstinadamente. Ninguém? Todos coagem
essa liberdade ilusória, que não se arrisca a aceitar com responsabilidade as
consequências de actuações livres e pessoais. Onde não há amor de Deus,
produz-se um vazio do exercício individual e responsável da liberdade: apesar
das aparências, tudo neles é coacção. O indeciso, o irresoluto é como matéria
plástica à mercê das circunstâncias; qualquer pessoa o molda de acordo com o
seu capricho e moldam-no também, em primeiro lugar, as paixões e as piores
tendências da natureza ferida pelo pecado.
(cont)