LEGENDA MAIOR
Vida de São Francisco de Assis)
CAPITULO 5
Austeridade
de vida e como as criaturas lhe proporcionavam consolo
7. Por outro lado, também
é verdade que procurava inculcar com insistência nos seus irmãos o desejo de
uma vida austera e penitente, mas repugnava-lhe a excessiva severidade que não
se reveste de entranhas de misericórdia nem é condimentada com o sal da discrição.
Efectivamente aconteceu
que um de seus irmãos, entregue aos rigores de uma abstinência por demais rigorosa,
começou a desmaiar de tanta fome, não podendo encontrar um momento de repouso.
Compreendendo o bom pastor
o perigo que corria aquela ovelha do seu rebanho, chamou-o, colocou diante dele
um pouco de pão e, para não deixá-lo embaraçado, começou a comer por primeiro,
enquanto com suavidade convidava o outro a comer. O irmão deixou de lado a
vergonha, tomou daquela comida com grande alegria, uma vez que com sua
vigilância e condescendência o Pai lhe havia evitado os danos do corpo e lhe
dera motivo de grande edificação.
Na manhã seguinte, reuniu
o homem de Deus os irmãos e, referindo-se ao que havia acontecido naquela
noite, acrescentou esta advertência:
“Irmãos, sede modelos uns
dos outros, não pelos jejuns mas por vossa caridade!”.
Recomendou-lhes também a
prática da prudência, não a da prudência inspirada pela nossa natureza humana
decaída, mas a prudência praticada por Cristo, cuja vida é modelo de toda
perfeição.
8. No seu estado actual de
fraqueza, o homem é incapaz de imitar o Cordeiro de Deus crucificado com
perfeição, evitando todo contágio do pecado. E assim ensinava Francisco aos
seus irmãos mediante o seu próprio exemplo que aqueles que procuram ser
perfeitos devem purificar-se, dia após dia com as lágrimas da contrição.
Atingira extraordinária,
pureza da alma e do corpo, embora nunca deixasse de purificar a sua visão
espiritual com lágrimas em profusão e não levasse em consideração o facto de
isso lhe custar a saúde dos olhos.
Em consequência das suas
constantes lágrimas, veio a sofrer dos olhos, mas quando o médico disse que
deveria restringir as lágrimas se quisesse evitar a perda da visão, ele
replicou:
“Irmão médico, usufruímos
da luz deste mundo em comum com as moscas; não devemos rejeitar a presença da
luz eterna apenas para preservá-la.
O nosso corpo recebeu a
faculdade da visão por causa da alma; a visão de que goza a alma não foi dada
por causa do corpo”.
Preferia perder a visão
dos olhos a sufocar a devoção do espírito, refreando as lágrimas, que limpam os
olhos da alma e os tornam capazes de ver a Deus.
9. Certa vez, os médicos
prescreveram-lhe como remédio uma cauterização, e os irmãos insistiam com ele
para que consentisse. O homem de Deus aceitou com humildade, pois via então uma
ocasião de se curar e ao mesmo tempo de sofrer.
Chamaram pois o cirurgião.
Veio ele e colocou um
ferro no fogo para realizar a operação.
O servo de Cristo,
querendo dar coragem ao próprio corpo, tomado de horror natural, dirigiu-se ao
fogo como a um amigo:
“Meu irmão fogo, disse ele, o Altíssimo te
criou como o mais útil, belo e poderoso entre todas as coisas para expressar a
formosura; sê propício comigo nesta hora, sê compassivo.
Peço ao Senhor que te
criou se digne moderar para mim teu calor, a fim de que possa sofrer-te quando
me queimares suavemente”.
Terminada a oração, fez o
sinal-da-cruz por cima do ferro em brasa e aguardou sem trepidar.
O ferro penetrou candente
naquela carne delicada, cauterizando desde a orelha até os cílios.
O santo expressou com as
seguintes palavras a dor que lhe havia produzido aquele fogo:
“Louvai ao Senhor, irmãos
meus caríssimos, pois na verdade vos digo que nem senti a dor do fogo nem experimentei
dor alguma no corpo”. E voltando-se para o cirurgião disse-lhe:
“Se a carne ainda não está
bem queimada, podes cauterizá-la ainda mais”. Ao ver o médico naquela carne
enferma virtude tão rara de espírito, ficou cheio de admiração e, atribuindo-a
a verdadeiro milagre, exclamou:
“Asseguro-vos, meus irmãos,
que hoje vi coisas admiráveis”. Pois havia o santo chegado a tão alto grau de
perfeição, que com harmonia admirável a carne se sujeitava ao espírito e o
espírito a Deus, e por divina ordenação as criaturas sujeitas ao serviço de
Deus se submetiam também de modo inefável ao domínio e vontade do seu servo.
10. Certo dia,
encontrando-se gravemente doente no eremitério de Santo Urbano e sentindo as
forças a abandoná-lo, pediu vinho para beber.
Como não houvesse em casa
nenhuma gota, mandou vir água. Fez sobre ela o sinal-da-cruz e aquilo que até
então era apenas água pura transformou-se em delicioso vinho.
O que a pobreza do
eremitério tornava impossível foi obtido pela pureza do santo. Mal provou do
vinho e as forças lhe voltaram. A água tinha um novo gosto, e o doente obtinha dela
uma saúde nova.
Tanto a bebida como aquele
que a tomara foram miraculosamente transformados.
Eram dois modos de indicar
quanto Francisco já se havia “despojado do homem velho e se transformara no
homem novo” (cf. Cl 3,9-10).
11. Não eram apenas as
criaturas que se submetiam à vontade do servo de Deus; o próprio Criador de
todas as coisas acedia aos seus desejos.
Certa vez, o santo,
prostrado por muitas doenças ao mesmo tempo, sentiu desejo de um pouco de
música que lhe devolvesse a alegria do espírito.
Mas como as conveniências
não permitiam contratar homens para esse fim, os anjos deram sua colaboração
para alegrá-lo.
De facto, certa noite,
enquanto vigiava em meditação, de repente ouviu uma cítara tocando com uma
harmonia maravilhosa e uma melodia dulcíssima.
Não se via ninguém, mas
percebia-se claramente o afastamento ou a aproximação do citarista.
Enlevado em Deus o
espírito do santo, sentiu-se repleto de tanta suavidade com aquela dulcíssima e
inefável harmonia que lhe pareceu estar gozando já na mansão eterna.
Esse facto não pôde ele ocultar
aos mais familiares dos seus religiosos, os quais conheciam frequentemente por
certos indícios que o Senhor confortava o santo com grandes e extraordinárias
consolações de modo que nem ele mesmo as podia ocultar.
12. Uma outra ocasião,
indo pregar com um irmão entre a Lombardia e a Marca de Treviso, sobreveio a
noite e ainda se encontravam às margens do rio Pó. Era muito perigoso continuar
naquela escuridão sem enxergar e no meio de terras alagadas. O companheiro
disse ao santo:
“Pai, reza a Deus que nos
livre dos perigos que nos ameaçam!” Com a sua imensa confiança, disse o santo:
“Deus pode, se agrada à
sua bondade, dissipar as trevas e nos dar a luz benéfica”.
Mal acabara de falar, uma
luz miraculosa os envolveu e embora mais além fosse noite total eles viam
claramente e num grande raio a estrada e suas redondezas.
Essa luz foi guia do corpo
e conforto para a alma deles, e após uma longa caminhada, chegaram à hospedaria,
sem dificuldade, cantando hinos e cânticos de louvor.
Considerai, pois, quanta e
quão admirável foi a virtude deste santo, a cujo império e vontade o fogo apaga
o seu ardor, a água se converte em vinho generoso, os anjos o recreiam com as suas
celestiais harmonias e a luz divina lhe indica o caminho, demonstrando-se dessa
forma que todas as criaturas do mundo contribuíam sensivelmente para manifestar
a santidade do nosso grande patriarca.
São Boaventura
(cont)
(Revisão da versão
portuguesa por AMA)