Parece que a instituição deste sacramento não foi como convém:
1. Com efeito, segundo o Filósofo, “somos nutridos dos mesmos elementos que nos fazem existir”. Ora, pelo baptismo que é o novo nascimento espiritual, recebemos o ser espiritual, como diz Dionísio. Portanto, somos nutridos também pelo baptismo. Logo, não era necessário instituir este sacramento como alimento espiritual.
2. Além disso, por este sacramento os homens se unem a Cristo como membros à cabeça. Ora, Cristo é a cabeça de todos os homens, também dos que existiram desde o início do mundo. Logo, a instituição deste sacramento não devia ter sido diferida (adiada, retardada) até à última ceia.
3. Ademais, este sacramento se denomina memorial da paixão do Senhor. Diz o Senhor: “Fazei isto em memória de mim”. Ora, a “memória diz respeito aos acontecimentos passados”. Logo, este sacramento não devia ter sido instituído antes da paixão de Cristo.
4. Ademais, pelo baptismo a pessoa é orientada à eucaristia que só se deve dar aos baptizados. Ora, o baptismo foi instituído depois da paixão e ressurreição de Cristo, como está no Evangelho de Mateus (28, 19). Logo, não se justifica que este sacramento tenha sido instituído antes da paixão de Cristo.
Por outro lado, está o fato de este sacramento ter sido instituído por Cristo, do qual vale o que diz o Evangelho: “Ele fez bem todas as coisas”.
Convinha que este sacramento fosse instituído na ceia em que Cristo tratou com os discípulos pela última vez. 1º. Em razão do que ele contém: o próprio Cristo está contido sacramentalmente na eucaristia. Por isso, havendo de afastar-se dos discípulos em sua manifestação exterior, Cristo quis ficar numa manifestação sacramental, como na ausência do imperador se mostra sua imagem para veneração. Eis porque Eusébio diz: “Havendo de tirar de nossa visão o corpo que assumira, e levá-lo aos astros, era necessário que no dia da ceia Cristo consagrasse para nós o sacramento de seu corpo e sangue, para que fosse cultuado permanentemente pelo mistério o que ele oferecia uma única vez como penhor”.
2º. Porque jamais foi possível a salvação sem a fé na paixão de Cristo. Diz Paulo: “Foi a ele que Deus destinou para servir de expiação por seu sangue, por meio da fé” (Rm 3, 25). Por isso convinha que em todo tempo houvesse entre os homens algo que representasse a paixão do Senhor. No Antigo Testamento, o sacramento principal era o cordeiro pascal, o que leva o Apóstolo a dizer: “O Cristo, nossa páscoa, foi imolado” (I Cor 5, 7). A ele sucede no Novo Testamento o sacramento da eucaristia que rememora a paixão passada, como o cordeiro pascal prefigurou a paixão futura. Assim era conveniente que, aproximando-se a paixão, depois de celebrar o primeiro sacramento, fosse instituído um novo, como diz o Papa Leão.
3º. Porque o que é dito por último, especialmente por amigos que se vão, fica mais gravado na memória, especialmente por então inflamar-se mais o afecto para com os amigos. Ora, o que mais nos afecta se imprime mais profundamente no espírito. Portanto, como “entre os sacrifícios”, diz o Papa Santo Alexandre, “nenhum pode ser maior que o corpo e o sangue de Cristo; nenhuma oblação lhe pode ser superior”, por isso o Senhor instituiu este sacramento em sua última separação dos discípulos, para que seja tido em maior veneração. É o que Agostinho enfatiza: “Para recomendar mais veementemente a grandeza deste mistério, o Salvador quis gravá-lo por último nos corações e na memória dos discípulos, dos quais se separava para ir à paixão”.
Suma Teológica, III, 73, 5.
Quanto aos argumentos iniciais, portanto, deve-se dizer que:
1. “Somos nutridos dos mesmos elementos que nos fazem existir”, mas eles não nos são fornecidos da mesma maneira. Pois os elementos que nos fazem existir vêm-nos por geração, mas os mesmos elementos, enquanto deles nos nutrimos, vêm-nos pelo ato de comer. Assim, como pelo baptismo nascemos de novo em Cristo, pela eucaristia nos alimentamos de Cristo.
2. A eucaristia é o sacramento perfeito da paixão do Senhor, por conter o próprio Cristo sofredor. Por isso não pôde ser instituído antes da encarnação. Seu lugar era então ocupado por sacramentos que se limitavam a prefigurar a paixão do Senhor.
3. Este sacramento foi instituído na ceia para ser no futuro o memorial da paixão do Senhor, uma vez realizada. Por isso, diz significativamente: “Todas as vezes que fizerdes isto”, falando no futuro.
4. A instituição corresponde à ordem da intenção. O sacramento da eucaristia, embora seja recebido posteriormente ao baptismo, é anterior a ele na intenção. Por isso devia ser instituído antes. Também se pode dizer que o baptismo já tinha sido instituído no próprio baptismo de Cristo. Por isso, alguns já eram baptizados com o baptismo de Cristo, como se lê no Evangelho de João (3, 22).