RESUMOS DA FÉ CRISTÃ
TEMA 7 A elevação sobrenatural e o
pecado original
Ao criar o homem, Deus
constituiu-o num estado de santidade e de justiça; além disso, deu-lhe a
possibilidade de participar na Sua vida divina, com o bom uso da sua
liberdade.
1.
A elevação sobrenatural
Ao criar o homem, Deus
constituiu-o num estado de santidade e de justiça, oferecendo-lhe a graça de
uma autêntica participação na vida divina [i].
Assim interpretaram a
Tradição e o Magistério ao longo dos séculos a descrição do Paraíso contida no
Génesis.
Este estado denomina-se
teologicamente elevação sobrenatural, pois indica um dom gratuito, inalcançável
somente com as forças naturais, não exigido, embora congruente, com a criação
do homem à imagem e semelhança de Deus.
Para a recta compreensão
deste ponto há que ter em conta alguns aspectos:
a) Não convém separar a
criação da elevação à ordem sobrenatural. A criação não é “neutra” a respeito
da comunhão com Deus, mas está orientada para ela. A Igreja sempre ensinou que
o fim do homem é sobrenatural [ii],
pois fomos «eleitos em Cristo antes da
criação do mundo para sermos santos» [iii].
Quer dizer, nunca existiu um
estado de “natureza pura”, pois Deus desde o princípio oferece ao homem a Sua
aliança de amor.
b) Embora o facto do fim do
homem ser a amizade com Deus, a Revelação ensina-nos que, no princípio da
história, o homem se rebelou e recusou a comunhão com o seu Criador: é o pecado
original, também chamado queda, precisamente porque antes tinha sido elevado à
proximidade divina.
Não obstante, ao perder a
amizade com Deus, o homem não fica reduzido ao nada, mas continua a ser homem,
criatura.
c) Isto ensina-nos que,
embora não convenha conceber o desígnio divino em compartimentos estanques
(como se Deus criasse primeiro um homem “completo” e depois “a seguir” o
elevasse), hão-de distinguir-se, dentro do único projecto divino, diversas
ordens [iv].
Baseada no facto de que o
homem com o pecado perdeu alguns dons, mas conservou outros, a tradição cristã
distinguiu a ordem sobrenatural (a chamada à amizade divina, cujos dons se
perdem com o pecado) da ordem natural (o que Deus concedeu ao homem ao criá-lo
e que permanece também, apesar do seu pecado).
Não são duas ordens
justapostas ou independentes, pois de facto o natural está, desde o princípio,
enxertado e orientado para o sobrenatural; e o sobrenatural aperfeiçoa o
natural sem o anular.
Ao mesmo tempo
distinguem-se, pois a história da salvação mostra que a gratuidade do dom
divino da graça e da redenção é distinta da gratuidade do dom divino da
criação, sendo aquela uma manifestação imensamente superior da misericórdia e
do amor de Deus [v].
d) É difícil descrever o
estado de inocência perdida de Adão e Eva [vi],
sobre o qual há poucas afirmações no Génesis [vii].
Por isso, a tradição costuma
caracterizar tal estado indirectamente, inferindo, a partir das consequências
do pecado narrado em Gn 3, os dons de que gozavam os nossos primeiros pais, que
deviam transmitir aos seus descendentes.
Assim, afirma-se que
receberam os dons naturais, que correspondem à sua condição normal de criaturas
e formam o seu ser criatural.
Receberam também os dons
sobrenaturais, quer dizer, a graça santificante, a divinização que essa graça
comporta e a chamada última à visão de Deus.
Com estes, a tradição cristã
reconhece a existência no Paraíso dos “dons preternaturais”, ou seja, dons que
não eram exigidos pela natureza humana, mas congruentes com ela, a
aperfeiçoavam na linha natural, e constituíam, afinal, uma manifestação da
graça.
Tais dons eram a imortalidade,
a isenção de dor (impassibilidade) e o domínio da concupiscência (integridade) [viii], [ix].
2.
O pecado original
Com o relato da transgressão
humana do mandato divino de não comer do fruto da árvore proibida, por
instigação da serpente [x], a Sagrada
Escritura ensina que no início da história os nossos primeiros pais se
rebelaram contra Deus desobedecendo-Lhe, sucumbindo à tentação de quererem ser
como deuses.
Como consequência, receberam
o castigo divino, perdendo grande parte dos dons que lhes tinham sido
concedidos [xi] e
foram expulsos do paraíso [xii].
Isto foi interpretado pela
tradição cristã como a perda dos dons sobrenaturais e preternaturais, bem como
um dano na própria natureza humana, se bem que não ficasse essencialmente
corrompida.
Fruto da desobediência, de
se preferirem antes si próprios em vez de Deus, o homem perde a graça [xiii] e
também a harmonia com a criação e consigo mesmo: o sofrimento e a morte fazem a
sua entrada na história [xiv].
O primeiro pecado teve o
carácter de uma tentação aceite, pois por detrás da desobediência humana está a
voz da serpente, que representa Satanás, o anjo caído.
A Revelação fala de um
pecado anterior, seu e de outros anjos, os quais – tendo sido criados bons –
recusaram irrevogavelmente Deus.
Após o pecado humano, a
criação e a história ficam sob o influxo maléfico do «pai da mentira e homicida
desde o princípio» [xv].
Embora o seu poder não seja
infinito, mas muito inferior ao divino, causa realmente danos muito graves em
cada pessoa e na sociedade, e o facto da permissão divina da actividade
diabólica não deixa de constituir um mistério [xvi].
O relato contém também a
promessa divina dum Redentor [xvii].
A Redenção ilumina assim o
alcance e a gravidade da queda humana, mostrando a maravilha do amor de um Deus
que não abandona a sua criatura, mas que vem ao seu encontro com a obra
salvadora de Jesus.
«É preciso conhecer Cristo
como fonte da graça para conhecer Adão como fonte do pecado» [xviii].
«”O mistério da iniquidade” [xix] só
se esclarece à luz do “Mistério da piedade” [xx]» [xxi].
A Igreja entendeu sempre
este episódio como um facto histórico – mesmo que nos tenha sido transmitido em
linguagem certamente simbólica [xxii] –,
que foi denominado tradicionalmente (a partir de Santo Agostinho) como “pecado
original”, por ter ocorrido nas origens.
O pecado não é “originário”
– mesmo que “originante” dos pecados pessoais realizados na história –, mas
entrou no mundo como fruto do mau uso da liberdade exercida pelas criaturas
(primeiro os anjos, depois o homem).
O mal moral não pertence,
pois, à estrutura humana, não provém nem da natureza social do homem, nem da
sua materialidade, nem, obviamente, sequer de Deus, ou de um destino
inamovível.
O realismo cristão põe o
homem diante da sua própria responsabilidade: pode fazer o mal como fruto da
sua liberdade, e o responsável por isso não é outro, mas ele próprio [xxiii].
Ao longo da história, a Igreja formulou o
dogma do pecado original em contraste com o optimismo exagerado e o pessimismo
existencial [xxiv].
Face a Pelágio, que afirmava
que o homem pode realizar o bem usando apenas as suas forças naturais, e que a
graça é uma mera ajuda externa, minimizando, assim, quer o alcance do pecado de
Adão, quer a redenção de Cristo – reduzidos a um mero mau ou bom exemplo,
respectivamente –, o Concilio de Cartago (418), seguindo Santo Agostinho,
ensinou a prioridade absoluta da graça, pois o homem depois do pecado ficou
debilitado [xxv].
Contra Lutero, que defendia
que depois do pecado o homem está essencialmente corrompido na sua natureza,
que a sua liberdade fica anulada e que em tudo o que faz há pecado, o Concílio
de Trento (1546) afirmou a relevância ontológica do baptismo, que apaga o
pecado original; embora permaneçam as suas sequelas – entre elas, a
concupiscência, que não se há-de identificar, como fazia Lutero, com o próprio
pecado – o homem é livre nos seus actos e pode merecer com obras boas, apoiadas
pela graça [xxvi].
Santiago Sanz
Bibliografia básica:
Catecismo da Igreja
Católica, 374-421. Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 72-78. João Paulo II, Creo en Dios Padre. Catequesis sobre
el Credo (I), Palabra, Madrid 1996, 219 seg. DS, n. 222-231;
370-395; 1510-1516; 4313. Leituras recomendadas João Paulo II, Memória e
Identidad e, Bertrand Editora, Lisboa 2005. Bento XVI, Homilia, 8-XII-2005. Joseph Ratzinger,
Creación y pecado, Eunsa, Pamplona 1992.
Notas:
[i] cf. Catecismo, 374, 375
[iv] O Concílio de Trento não diz que o
homem foi criado na graça, mas constituído, precisamente para evitar a confusão
de natureza e graça (cf. DS 1511).
[v] Precisamente por isto se aventou a
hipótese teológica da “natureza pura”, para sublinhar a ulterior gratuidade do
dom da graça a respeito da criação. Não porque tal estado se tenha verificado
historicamente, mas porque em teoria podia ter-se dado, embora de facto assim
não seja. Esta doutrina foi estabelecida contra Bayo, uma das suas teses
condenadas dizia: «a integridade da primeira criação não foi exaltação indevida
da natureza humana, mas a sua condição natural» (DS 1926).
[vi] Esta dificuldade aumenta actualmente
devido à influência de uma visão de tipo evolucionista da totalidade do ser
humano. Numa visão desse tipo, a realidade evolui sempre de menos para mais,
enquanto que a Revelação nos ensina que houve no começo da história uma queda
de um estado superior para outro inferior. Isto não quer dizer que não tenha
existido um processo de “hominização”, que há que distinguir da “humanização”.
[vii] cf. Gn 1,26-31; 2,7-8.15-25
[ix] Sobre a imortalidade, que se há-de
entender com Santo Agostinho como um não poder morrer (non posse mori), mas um
poder não morrer (posse non mori ), é lícito interpretá-la como uma situação na
qual o trânsito para um estado definitivo não fosse experimentado com o
dramatismo próprio da morte que o homem padece depois do pecado. O sofrimento é
sinal e antecipação da morte e por isso a imortalidade trazia com ela, de
alguma maneira, a ausência de dor. Isto implicava, também, um estado de
integridade no qual o homem dominava sem dificuldade as suas paixões.
Tradicionalmente, costuma acrescentar-se um quarto dom, o da ciência,
proporcionada ao estado em que se encontravam.
[xiv] cf. Catecismo, 399-400
[xvi] cf. Catecismo, 391-395
[xxv] cf. DS 223.227; cf. também o Concilio
II de Orange, no ano 529: DS 371-372