Tempo Comum
Semana I
Evangelho:
Mc 2, 13-17
13
Foi outra vez para a beira-mar. Todo o povo ia ter com Ele e Ele ensinava-os.14
Ao passar viu Levi, filho de Alfeu, sentado no banco dos cobradores de
impostos, e disse-lhe: «Segue-Me». Ele, levantando-se, seguiu-O. 15
Aconteceu que, estando Jesus sentado à mesa em casa dele, estavam também à
mesma mesa com Jesus e os Seus discípulos muitos publicanos e pecadores; porque
eram muitos que também O seguiam. 16 Os escribas e fariseus, vendo
que Jesus comia com os pecadores e publicanos, diziam aos discípulos: «Porque
come e bebe o vosso Mestre com os publicanos e pecadores?». 17
Ouvindo isto, Jesus disse-lhes: «Não têm necessidade de médico os sãos, mas os
doentes; Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores».
Comentário:
Jesus está uma
vez mais à beira-mar; é muito forte esta ligação do Senhor com o mar talvez
porque, se por um lado representa a imensidão de horizonte, de destinos, de
rumos, por outro tem aquele quê de misterioso e aventureiro para o homem comum.
Só os pescadores se sentem ali à vontade e do mar tiram o seu sustento num
trabalho árduo e não isento de perigos.
Sobretudo é um trabalho que exige perseverança, determinação e coragem.
Afinal o que
se espera de um verdadeiro discípulo de Cristo.
(ama, comentário sobre MC 2
13-17, Malta 2015.01.16)
Leitura espiritual
CARTA
ENCÍCLICA
LAUDATO SI’
DO
SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE
O CUIDADO DA CASA COMUM
CAPÍTULO VI
EDUCAÇÃO
E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS
3.
A conversão ecológica
216. A grande riqueza da espiritualidade
cristã, proveniente de vinte séculos de experiências pessoais e comunitárias,
constitui uma magnífica contribuição para o esforço de renovar a humanidade.
Desejo propor aos cristãos algumas linhas
de espiritualidade ecológica que nascem das convicções da nossa fé, pois aquilo
que o Evangelho nos ensina tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e
viver.
Não se trata tanto de propor ideias, como
sobretudo falar das motivações que derivam da espiritualidade para alimentar
uma paixão pelo cuidado do mundo.
Com efeito, não é possível empenhar-se em
coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma mística que nos anima, sem «uma
moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à acção pessoal e
comunitária».[i]
Temos de reconhecer que nós, cristãos, nem
sempre recolhemos e fizemos frutificar as riquezas dadas por Deus à Igreja, nas
quais a espiritualidade não está desligada do próprio corpo nem da natureza ou
das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em comunhão com tudo o
que nos rodeia.
217. Se «os desertos exteriores se
multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos»,[ii]
a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior.
Entretanto temos de reconhecer também que
alguns cristãos, até comprometidos e piedosos, com o pretexto do realismo
pragmático frequentemente se burlam das preocupações pelo meio ambiente. Outros
são passivos, não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se incoerentes.
Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica,
que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as
consequências do encontro com Jesus.
Viver a vocação de guardiões da obra de
Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã,
mas parte essencial duma existência virtuosa.
218. Recordemos o modelo de São Francisco
de Assis, para propor uma sã relação com a criação como dimensão da conversão
integral da pessoa.
Isto exige também reconhecer os próprios
erros, pecados, vícios ou negligências, e arrepender-se de coração, mudar a
partir de dentro.
A Igreja na Austrália soube expressar a
conversão em termos de reconciliação com a criação:
«Para realizar esta reconciliação, devemos
examinar as nossas vidas e reconhecer de que modo ofendemos a criação de Deus
com as nossas acções e com a nossa incapacidade de agir. Devemos fazer a
experiência duma conversão, duma mudança do coração».[iii]
219. Todavia, para se resolver uma situação
tão complexa como esta que enfrenta o mundo actual, não basta que cada um seja
melhor.
Os indivíduos isolados podem perder a
capacidade e a liberdade de vencer a lógica da razão instrumental e acabam por
sucumbir a um consumismo sem ética nem sentido social e ambiental.
Aos problemas sociais responde-se, não com
a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias:
«As exigências desta obra serão tão
grandes, que as possibilidades das iniciativas individuais e a cooperação dos
particulares, formados de maneira individualista, não serão capazes de lhes dar
resposta. Será necessária uma união de forças e uma unidade de contribuições».[iv]
A conversão ecológica, que se requer para
criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária.
220. Esta conversão comporta várias
atitudes que se conjugam para activar um cuidado generoso e cheio de ternura.
Em primeiro lugar, implica gratidão e
gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como dom recebido do amor do
Pai, que consequentemente provoca disposições gratuitas de renúncia e gestos
generosos, mesmo que ninguém os veja nem agradeça.
«Que
a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita (...); e teu Pai, que vê o oculto, há-de
premiar-te» [v].
Implica ainda a consciência amorosa de não
estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do
universo uma estupenda comunhão universal.
O crente contempla o mundo, não como
alguém que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos
uniu a todos os seres.
Além disso a conversão ecológica, fazendo
crescer as peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o a
desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do mundo,
oferecendo-se a Deus «como sacrifício vivo, santo e agradável» ([vi].
Não vê a sua superioridade como motivo de glória pessoal nem de domínio
irresponsável, mas como uma capacidade diferente que, por sua vez, lhe impõe
uma grave responsabilidade derivada da sua fé.
221. Ajudam a enriquecer o sentido de tal
conversão várias convicções da nossa fé, desenvolvidas ao início desta
encíclica, como, por exemplo, a consciência de que cada criatura reflecte algo
de Deus e tem uma mensagem para nos transmitir, ou a certeza de que Cristo assumiu
em Si mesmo este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo de cada
ser, envolvendo-o com o seu carinho e penetrando-o com a sua luz; e ainda o
reconhecimento de que Deus criou o mundo, inscrevendo nele uma ordem e um
dinamismo que o ser humano não tem o direito de ignorar.
Porventura uma pessoa, ouvindo no
Evangelho Jesus dizer – a propósito dos pássaros – que «nenhum deles passa
despercebido diante de Deus» [vii],
será capaz de os maltratar ou causar-lhes dano?
Convido todos os cristãos a explicitar
esta dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça
recebida se estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que
os rodeia, e suscite aquela sublime fraternidade com a criação inteira que
viveu, de maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis.
4.
Alegria e paz
222. A espiritualidade cristã propõe uma
forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de
vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar
obcecado pelo consumo.
É importante adoptar um antigo
ensinamento, presente em distintas tradições religiosas e também na Bíblia.
Trata-se da convicção de que «quanto
menos, tanto mais».
Com efeito, a acumulação constante de
possibilidades para consumir distrai o coração e impede de dar o devido apreço
a cada coisa e a cada momento.
Pelo contrário, tornar-se serenamente
presente diante de cada realidade, por mais pequena que seja, abre-nos muitas
mais possibilidades de compreensão e realização pessoal. A espiritualidade
cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com
pouco.
É um regresso à simplicidade que nos
permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a
vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que
não possuímos. Isto exige evitar a dinâmica do domínio e da mera acumulação de
prazeres.
223. A sobriedade, vivida livre e
conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de baixa
intensidade; é precisamente o contrário.
Com efeito, as pessoas que saboreiam mais
e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali,
sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a
cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples
e sabem alegrar-se com elas.
Deste modo conseguem reduzir o número das
necessidades insatisfeitas e diminuem o cansaço e a ansiedade.
É possível necessitar de pouco e viver
muito, sobretudo quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres, encontrando
satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos próprios
carismas, na música e na arte, no contacto com a natureza, na oração.
A felicidade exige saber limitar algumas
necessidades que nos entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as
múltiplas possibilidades que a vida oferece.
224. A sobriedade e a humildade não gozaram
de positiva consideração no século passado.
Mas, quando se debilita de forma
generalizada o exercício dalguma virtude na vida pessoal e social, isso acaba
por provocar variados desequilíbrios, mesmo ambientais.
Por isso, não basta falar apenas da
integridade dos ecossistemas; é preciso ter a coragem de falar da integridade
da vida humana, da necessidade de incentivar e conjugar todos os grandes
valores.
O desaparecimento da humildade, num ser
humano excessivamente entusiasmado com a possibilidade de dominar tudo sem
limite algum, só pode acabar por prejudicar a sociedade e o meio ambiente.
Não é fácil desenvolver esta humildade
sadia e uma sobriedade feliz, se nos tornamos autónomos, se excluímos Deus da
nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos ser a nossa
subjectividade que determina o que é bem e o que é mal.
225. Por outro lado, ninguém pode
amadurecer numa sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo.
E parte duma adequada compreensão da
espiritualidade consiste em alargar a nossa compreensão da paz, que é muito
mais do que a ausência de guerra.
A paz interior das pessoas tem muito a ver
com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida,
reflecte-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração
que leva à profundidade da vida.
A natureza está cheia de palavras de amor;
mas, como poderemos ouvi-las no meio do ruído constante, da distracção
permanente e ansiosa, ou do culto da notoriedade?
Muitas pessoas experimentam um
desequilíbrio profundo, que as impele a fazer as coisas a toda a velocidade
para se sentirem ocupadas, numa pressa constante que, por sua vez, as leva a
atropelar tudo o que têm ao seu redor.
Isto tem incidência no modo como se trata
o ambiente.
Uma ecologia integral exige que se dedique
algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação, reflectir sobre o
nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive entre
nós e naquilo que nos rodeia e cuja presença «não precisa de ser criada, mas
descoberta, desvendada».[viii]
226. Falamos aqui duma atitude do coração,
que vive tudo com serena atenção, que sabe manter-se plenamente presente diante
duma pessoa sem estar a pensar no que virá depois, que se entrega a cada
momento como um dom divino que se deve viver em plenitude.
Jesus ensinou-nos esta atitude, quando nos
convidava a olhar os lírios do campo e as aves do céu, ou quando, na presença
dum homem inquieto, «fitando nele o
olhar, sentiu afeição por ele» [ix].
De certeza que Ele estava plenamente presente diante de cada ser humano e de
cada criatura, mostrando-nos assim um caminho para superar a ansiedade doentia
que nos torna superficiais, agressivos e consumistas desenfreados.
(cont)
[i] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 261: AAS105 (2013), 1124.
[ii] Bento XVI, Homilia no início solene do Ministério
Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 30/IV/2005), 5.
[iii] Conferência dos Bispos Católicos da Austrália, A New
Earth - The Environmental Challenge (2002).
[iv]
Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit
(Würzburg9 1965), 72.
[viii] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de
Novembro de 2013), 71: AAS 105 (2013), 1050.