LEGENDA MAIOR
Vida de São Francisco de Assis
CAPITULO 6
Humildade
e obediência, favores com que Deus o cumulava
1. A humildade, defesa e
ornamento de todas as virtudes, havia cumulado o homem de Deus de bens
superabundantes. Aos próprios olhos, era apenas um pobre pecador. Na realidade,
porém, era o espelho resplendente de toda santidade.
Como um arquitecto
prudente (cf. 1Cor 3,10), que começa pelas fundações, ele se
empenhou. de corpo e alma a construir unicamente sobre a humildade, conforme aprendera de
Cristo. “O Filho de Deus, dizia ele, deixando o seio do Pai, desceu das alturas
do céu até a nossa miséria para nos ensinar a humildade, Ele, que é o Senhor e
o Mestre, tanto pelo exemplo quanto pela palavra”.
Por isso, como verdadeiro
discípulo de Cristo, procurava diminuir-se aos próprios olhos e dos demais,
recordando as palavras do Mestre: “O que
para os homens é estimável, é abominável perante Deus” (Lc 16,15).
E gostava de repetir esta
máxima: “O homem é o que é diante de Deus, nem mais nem menos”.
Por isso considerava
insensatez consumada envaidecer-se alguém com os favores do mundo, o conforme
essa doutrina, se alegrava particularmente com as ofensas que recebia e se
entristecia quando alguém o louvava. Pois preferia ouvir a seu respeito
vitupérios e não louvores, sabendo que aqueles contribuíam eficazmente para sua
própria emenda, enquanto os louvores poderiam causar-lhe algum dano à alma.
Segundo esse princípio,
quando as pessoas exaltavam a sua elevada santidade, costumava ordenar a um dos
irmãos que, sem receio, lhe dirigisse palavras de desprezo e humilhação. E
quando o religioso, forçado pela obediência, o chamava de rústico, grosseiro,
homem iletrado ou inútil para tudo, cheio de santa alegria, que se reflectia em
seu semblante, Francisco lhe respondia: “Bendiga-te o Senhor, meu filho, pois
és o único que dizes a verdade, e são estas as palavras que sempre deveria ouvir
o filho de Pedro Bernardone”.
2. E para fazer-se
desprezível aos outros, não hesitava, nas viagens de pregação que fazia, de
revelar a todo o povo os seus próprios defeitos.
Um dia, doente e sem mais
energias, viu-se obrigado a suavizar um pouco os rigores de seu jejum a fim de
recuperar a saúde. Assim que recobrou as forças, não perdeu tempo em se expor
ao desprezo dos outros, tanto ele mesmo se desprezava:
“Não é justo que as
pessoas me tomem por um homem mortificado, enquanto ocultamente cuido de mim com
demasiadas regalias”.
Levantou-se então
imediatamente, impelido pelo espírito de santa humildade, e tendo convocado o
povo para a praça da cidade de Assis, entrou na catedral com grande solenidade,
acompanhado de muitos irmãos que trouxera consigo. Atou uma corda ao pescoço e
nu, sem outras roupas que as necessárias para o decoro, apresentou-se diante de
todos e em seguida ordenou que o conduzissem ao pelourinho onde era costume
manter os criminosos que deveriam ser executados.
Subiu ao pelourinho, e no
maior rigor do inverno e apesar de estar ardendo em febre e extremamente fraco,
pregou com grande fervor de espírito, falando a seus ouvintes que não deveriam
honrá-lo como se fosse um homem espiritual, mas desprezá-lo como um glutão e
carnal.
Todos os assistentes,
cheios de admiração diante desse espectáculo extraordinário e profundamente
edificados, pois conheciam muito bem a sua austeridade, proclamaram que semelhante
humildade era mais admirável do que imitável.
Suponhamos que se trate de
uma dessas acções simbólicas habituais entre os profetas (cf. Is 20,3),
e não propriamente um exemplo; assim mesmo, temos aí uma bela lição de humildade
perfeita em que o discípulo de Cristo ensina que ele deve desprezar todos os
testemunhos do louvor passageiro, reprimir toda vaidade e pretensão e depor a
máscara da simulação hipócrita.
3. Muitas vezes praticava
acções dessa espécie a fim de parecer externamente como um desses vasos de
perdição e dessa forma ter em si o espírito de santificação. Quando as
multidões o aclamavam, dizia: “Ainda poderei ter filhos e filhas: não me
louveis como se já estivesse a salvo. Não se deve louvar a ninguém quando não
se sabe como há de terminar”.
Falava assim aos seus
admiradores. Mas a si mesmo dizia: “Francisco, se o Senhor houvesse conferido
ao mais desalmado ladrão os dons que recebeste, saberia agradecê-los e
corresponderia muito mais do que tu”.
Muitas vezes dizia assim
aos irmãos:
“Ninguém deve iludir-se
exaltando-se injustamente por coisas que também um pecador pode realizar. Pois
um pecador pode jejuar, orar, chorar e disciplinar a própria carne. E só isto
não pode fazer: ser fiel ao seu Senhor. Por isso devemos gloriar-nos somente
nestes casos: rendendo a Deus a glória que lhe é devida; servindo-o com
fidelidade; atribuindo-lhe tudo o que lhe pertence”.
4. Como o comerciante de
que fala o Evangelho, querendo Francisco ganhar sempre mais e tornar produtivo
cada um dos seus instantes, procurou ser súbdito e não superior, obedecer e não
mandar; por essa razão, renunciou ao cargo de superior geral, pedindo um
guardião a cuja vontade se submeteu em todas as circunstâncias.
Com efeito, dizia ele, o
fruto da santa obediência é tão abundante, que nenhuma fracção de tempo
transcorre sem vantagem para aqueles que submetem a cerviz ao jugo da
obediência. Por isso tinha o hábito de prometer sempre obediência ao irmão com
quem viajava e de observá-la.
Certa vez disse aos
companheiros: “Entre os benefícios que Deus me concedeu em sua bondade, obtive
a graça de estar pronto a obedecer com igual solicitude a um noviço de uma hora
que me fosse dado como guardião como ao irmão mais antigo e mais experimentado.
Um súbdito não deve considerar em seu superior o homem, mas aquele por amor do
qual ele aceitou obedecer. Quanto menos digno o superior, tanto mais agrada a
Deus a humildade daquele que obedece”.
Aos irmãos que lhe
perguntavam um dia como reconhecer o religioso verdadeiramente obediente,
propôs ele em parábola o exemplo do cadáver: “Tomai, disse ele, um corpo que a
alma abandonou e colocai-o em qualquer lugar. Vereis que se o moverdes, não se
há de opor; se o deixardes cair, não protestará; se o colocardes numa cátedra,
não dirigirá seus olhos para o alto, mas para o mais baixo da terra; se o
adornardes com vestido de púrpura, só aumentareis sua palidez cadavérica. Tal o
verdadeiro obediente: não julga por que o movem de um lado para outro, não se
preocupa com o lugar onde o coloquem, não insiste para que o removam de um
convento para outro; se é elevado a um ofício honroso, conserva sua costumeira
humildade, e quanto mais honrado se vê, tanto mais indigno se julga de toda
honra”.
5. Um dia disse a um
companheiro seu: “Não me julgarei nunca um verdadeiro irmão menor, enquanto não
chegar ao estado de espírito que te vou descrever. Imagina que eu sou o
superior de meus irmãos, vou ao capítulo, faço um sermão, dou meus conselhos e
quando termino, alguém me diz: ‘Não tens o que é necessário para ficar
connosco; não tens estudos, não és eloquente, não tens cultura, e és idiota e
simples!’ E sou expulso vergonhosamente, desprezado de todos. Pois bem, se não ouvisse
todos esses impropérios com igual serenidade de semblante, com a mesma alegria
da alma e com igual tranquilidade de espírito como se fossem louvores, não
seria certamente irmão menor”.
E não contente com isso
acrescentava: “Uma dignidade é uma ocasião de queda; o louvor é um precipício
escancarado; mas o lugar de súbdito é fonte de méritos para a alma. Por que
desejar os riscos e não as vantagens, uma vez que é para nos enriquecer que o
tempo nos foi dado?”
Compreende-se pois por que
Francisco, modelo de humildade, quis que seus irmãos fossem chamados “frades
menores”, e os superiores da Ordem “servos”, para assim empregar os próprios
termos do Evangelho (cf. Mt 25,45) que ele aceitou seguir e ensinar
a seus discípulos, recordando-lhes que haviam entrado na escola de Cristo de
coração humilde precisamente para dele aprenderem a humildade. Jesus Cristo
efectivamente, para ensinar a seus discípulos a santa humildade, havia dito:
“Aquele dentre vós que quiser ser o maior deve fazer-se servidor de
todos, e aquele de vós que quiser ser o primeiro, seja vosso servo” (Mt
20,26-27).
Certo dia, falava o servo
de Deus com o cardeal bispo de Óstia, protector e principal propagador da Ordem
dos Frades Menores, que mais tarde, segundo a profecia do santo, chegou a ser
Pontífice Romano, com o nome de Gregório IX.
Este perguntou-lhe se
desejava que seus irmãos fossem promovidos às dignidades eclesiásticas, e
Francisco respondeu-lhe: “Senhor, meus irmãos se chamam precisamente ‘menores’
para que nunca presumam elevar-se a coisas maiores. Se quereis, pois, que dêem
fruto abundante na Igreja de Deus, deixai-os e conservai-os no estado de sua
própria vocação e não permitais de modo algum que sejam promovidos aos honrosos
cargos da Igreja”.
São Boaventura
(cont)
(Revisão da versão
portuguesa por AMA)