A
CIDADE DE DEUS
Vol. 1
LIVRO
VI
Até
aqui, Agostinho escreveu contra os que julgam que aos deuses deve ser prestado
culto no interesse desta vida temporal. Agora enfrenta os que pretendem que se
lhes preste culto tendo em vista a vida eterna. A estes, refutará Agostinho nos
cinco livros que se seguem; e, em primeiro lugar, põe em evidência o baixo
conceito em que tinha os deuses um escritor tão apreciado na teologia gentílica
como foi Varrão. Alega que, segundo Varrão, existem três categorias de
teologia: a fabulosa, a natural e a civil; e, tratando da fabulosa, da natural e
da civil, demonstra que em nada podem estas categorias contribuir para a
felicidade da vida futura.
PREFÁCIO
Parece-me
que nos precedentes cinco livros já discuti suficientemente contra os que, em
relação ao interesse desta vida mortal e dos bens terrenos, julgam que é
necessário honrar e adorar a multidão dos falsos deuses com os ritos e serviços
chamados em grego λατρεία e devidos, de facto, ao único Deus verdadeiro. A
verdade cristã demonstra que esses deuses são inúteis simulacros, espíritos
imundos, perniciosos demónios ou, pelo menos, criaturas — e nunca, certamente,
o Criador.
Todavia,
quem ignora que nem esses cinco livros nem quaisquer outros, por numerosos que
sejam, bastam para vencer os excessos da estupidez e da contumácia? E que a
vaidade se vangloria de jamais ceder perante as forças da verdade, com
prejuízo, certamente, do homem em quem domina tão monstruoso vício. É uma
enfermidade que desafia todos os recursos da medicina, não porque falte médico
mas porque o doente é incurável.
Quanto
aos que compreendem, examinam e pesam cuidadosamente o que lêem sem obstinação
alguma ou, pelo menos, sem apego culpável ou excessivo a seu velho erro, verão
que, nos cinco livros já acabados, demos mais que satisfação às necessidades da
questão e a discutimos talvez de mais que de menos.
Assim,
os ignorantes, que tentem levantar toda esta animosidade contra a religião
cristã a propósito das calamidades desta vida e dos flagelos que recaem sobre
as coisas deste mundo, de acordo com as pessoas instruídas que não só se calam
mas até os incitam contra a sua consciência, possuídas que estão pela sua
raivosa impiedade — esses mesmos ignorantes já não poderão duvidar de que toda
esta animosidade é totalmente falha de reflexão e de sensatez e é antes plena
de frívola temeridade e de perniciosa teimosia.
CAPÍTULO I
Dos que dizem que adoram os
deuses tendo em vista, não a vida presente, mas sim a vida eterna.
Agora,
conforme a ordem anunciada, há, portanto, que refutar e instruir aqueles que
pretendem que se devem adorar os deuses gentílicos derribados pela religião
cristã, não por causa da vida presente, mas antes pela que há-de vir depois da
morte.
Apraz-me
tomar como exórdio à minha discussão o verídico oráculo do santo salmo:
Feliz
aquele que depositou no Senhor a sua esperança e não se detém a olhar para
vaidades ou loucas mentiras [i].
Todavia,
acerca de todas essas «vaidades» e «loucas mentiras», devemos ouvir com mais
tolerância os filósofos que reprovaram as opiniões erróneas dos povos, desses
povos que ergueram ídolos aos deuses, imaginando, à conta desses deuses
chamados imortais, um grande número de indignas e mentirosas ficções, ou, pelo
menos, acreditando em tais ficções, para depois as misturarem no culto deles e
nos seus ritos sagrados. Com estes homens que, embora sem francamente o
divulgarem, mas antes, de certo modo, cochichando-o nas suas discussões,
testemunharam a sua reprovação de tais erros não há qualquer inconveniente em
tratar da seguinte questão: será necessário, tendo em vista a vida que há-de
vir depois da morte, adorar, não o Deus único, criador de todo o ser corporal e
espiritual, mas antes uma multidão de deuses que aquele Deus único teria criado
e elevado à categoria suprema, como pensaram alguns desses filósofos, célebres
e, entre todos, eminentes?
Além
disso, quem poderá suportar a pretensão de que tais deuses — a alguns dos quais
já me referi no livro quarto e a cada um dos quais é distribuída a mais
insignificante tarefa — podem conceder a vida eterna a alguém? Há homens dos
mais sapientes e perspicazes, que se gabam, como de um grande serviço, de terem
precisado nos seus escritos o motivo por que é necessário suplicar a cada deus
o favor que a cada um deles se deve pedir, se não se quiser incorrer no
vergonhoso absurdo (como costuma jocosamente acontecer na comédia) de se pedir
água a Libero e vinho às Ninfas: Que é que estes autores aconselhariam a um
qualquer que invocasse os deuses imortais e que, depois de ter pedido vinho às
Ninfas, tivesse recebido esta resposta: «nós o que temos é água; para o vinho,
dirige-te a Libero»? Poderiam esses autores, na verdade, aconselhar esse
qualquer a responder: «se não tendes vinho, ao menos concedei-me a vida
eterna»? Será que essas deusas, ordinariamente de riso fácil, não rirão às
gargalhadas? E — supondo que elas não procuram enganar esse suplicante, como
verdadeiros demónios que são — não responderiam: «ó homem, julgas que está na nossa
mão dar a vida quando, tu bem o sabes, nem sequer a própria vida está na nossa
mão»?
É,
portanto, o cúmulo da estupidez impudente pedir a tais deuses e deles esperar a
vida eterna, pois que, para o que respeita a esta vida tão curta e miserável,
em que, na hipótese de que deles pudesse vir algum auxílio e sustento, o
domínio assinalado à sua tutela é tão dividido que, ao pedir a um os favores
que pertencem à função e ao poder de um outro, comete-se tal inépcia, tal
absurdo, que parece mesmo uma chacota de cómicos. Está certo que estas
parvoíces façam rir as pessoas no teatro, quando são propositadamente recitadas
pelos pantomimos; mais certo porém será que, quando inconscientemente
proferidas pelos tolos, deles se riam no mundo.
A
que deus ou deusa e por que motivo convém dirigir preces, no que respeita aos
deuses que as cidades instituíram, — é assunto habilmente fixado e transmitido
à posteridade pelos sábios: o que, por exemplo, se pode pedir a Libero, ou às
Ninfas ou a Vulcano ou aos outros que, em parte, já referi no livro quarto e em
parte deixei em silêncio. É evidente que, se pedir vinho a Ceres, pão a Libero,
água a Vulcano, fogo às Ninfas, é um erro, muito maior loucura será suplicar a
qualquer deles a vida eterna!
Por
isso, quando, a propósito do domínio terrestre, procurámos quais desses deuses
ou deusas podíamos julgar capazes de o conferir aos homens, demonstrámos,
depois de tudo bem ponderado, que admitir o estabelecimento, mesmo só dos
reinos da Terra, por qualquer destas numerosas e falsas divindades, era uma
opinião totalmente errada. Sendo assim, não constituirá uma suprema loucura e
impiedade (pois sem hesitação e sem comparação, se deve colocar a vida eterna
acima dos reinos terrestres) pensar que tal vida pode ser concedida a qualquer
homem por qualquer desses falsos deuses? O que nos leva a concluir que tais
deuses nem sequer poderão dar o reino da Terra tão baixo e abjecto que não se
dignam ocupar-se dele na sua tão elevada sublimidade; mas, bem ao contrário,
por muito que se desprezem justificadamente os cumes perecíveis do reino
terrestre, tão indignos se apresentam esses deuses que nem se lhes pode
solicitar a dávida ou a conservação desses reinos.
Por
tal razão, se (como se tratou e estabeleceu nos dois livros precedentes) nenhum
de entre essa turbamulta de deuses, sejam eles, passe a palavra, plebeus ou
nobres, é capaz de dar aos mortais os reinos mortais — muito menos será capaz
de tomar imortais os mortais!
A
isto acresce o seguinte: se atendermos à opinião daqueles que defendem que é
necessário honrar os deuses, não por causa da vida presente, mas por causa da
vida que há-de vir depois da morte — também não é por causa desses bens
(atribuídos a tais deuses não por razões sérias mas por vã opinião, como um
domínio que eles receberam em partilha) que se lhes deve prestar culto. É,
aliás, a opinião dos que julgam este culto indispensável aos interesses desta
vida mortal; quanto me foi possível, já os refutei nos cinco livros
precedentes. Mesmo que assim fosse — se os adoradores da deusa Juventas
gozassem de uma juventude mais florescente e se, pelo contrário, os seus
desdenhadores morressem nos anos da sua juventude ou languescessem como se
estivessem sujeitos ao frio da velhice; se a Fortuna barbada ornasse a cara dos
seus devotos de uma forma mais graciosa e alegre e se víssemos os que a
desprezam privados de barba ou mal barbados — mesmo em tal caso teríamos o
direito de afirmar que o poder de cada uma destas deusas se limita de certo
modo às suas funções e que, por isso, não se deve pedir a vida eterna a
Juventas, incapaz mesmo de fazer despontar a barba nem, depois desta vida,
esperar qualquer bem da Fortuna barbada, absolutamente incapaz de conceder,
nesta vida, ao menos a idade em que a barba floresce.
Na
verdade, o culto destas deusas não é necessário para se obterem estes favores
que se atribuem à sua alçada. Muitos adoradores de Juventas tiveram uma
juventude enfermiça, ao passo que outros que nunca se lhe devotaram gozam de
vigorosa juventude. Semelhantemente, muitos que veneram a Fortuna barbada não
lograram barba alguma ou têm-na disforme; e os que a veneram para a obter são
objecto de galhofa por parte dos que a têm. Será então o coração humano tão
insensato que chegue a acreditar que lhe poderá ser proveitoso para a vida
eterna um culto que sabemos ser inútil e ilusório mesmo na ordem dos tão
efémeros bens temporais, à distribuição dos quais se julga que presidem os
deuses, cada um no seu domínio? Não ousaram afirmar que esses deuses podem
conceder a vida eterna nem sequer os que, para recomendarem o seu culto aos
povos ignorantes e, pensando que eram deuses de mais, distribuíram
minuciosamente mesmo as tarefas temporais para que nenhum deles ficasse ocioso.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)