Tempo Comum
Evangelho:
Lc 7, 11-17
11 No dia seguinte foi
para uma cidade, chamada Naim. Iam com Ele os Seus discípulos e muito povo. 12
Quando chegou perto da porta da cidade, eis que era levado a sepultar um
defunto, filho único de uma viúva; e ia com ela muita gente da cidade. 13
Tendo-a visto, o Senhor, movido de compaixão para com ela, disse-lhe: «Não
chores». 14 Aproximou-Se, tocou no caixão, e os que o levavam
pararam. Então disse: «Jovem, Eu te ordeno, levanta-te». 15 E o que
tinha estado morto sentou-se, e começou a falar. Depois, Jesus, entregou-o à
sua mãe. 16 Todos ficaram possuídos de temor e glorificavam a Deus,
dizendo: «Um grande profeta apareceu entre nós, e Deus visitou o Seu povo». 17
Esta opinião a respeito d'Ele espalhou-se por toda a Judeia e por toda a região
circunvizinha.
Comentário:
Também a nós o Senhor nos diz constantemente:
‘Levanta-te; estás aí na vera do caminho à espera
que venham ter contigo quando deverias ser tu a procurar os teus irmãos para
lhes prestares a assistência que possam precisar´.
Quantas pessoas esperam por nós?
Talvez para algo sem grande importância: uma
palavra amiga, um gesto de solidariedade, um sorriso de compreensão.
Como podemos saber – e fazer o que o Senhor espera
de nós – se não nos movemos – levantamos – saímos do nosso torpor e comodismo e
nos “fazemos ao caminho” da vida como seres humanos solidários e atentos ao
nosso próximo?
(ama, comentário sobre Lc 7, 11-17,
2016.04.11)
Leitura espiritual
INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO
PRIMEIRO
"Creio
em Jesus Cristo seu Filho Unigénito, Nosso Senhor".
IV. Caminhos da Cristologia
2. Cristologia e Soteriologia
Do ponto assim alcançado torna-se visível o
entrelaçamento de uma antítese criada pela história, antítese aliás bastante
aparentada com a que acabamos de analisar. No correr da evolução histórica da
fé em Cristo destacou-se sempre mais o que se costumou chamar
"cristologia" e "soteriologia". Cristologia seria a
doutrina do ser de Jesus, que foi isolada sempre mais como uma excepção
teológica, transformando-se em objecto de especulacção sobre algo estranho,
incompreensível e limitado exclusivamente a Jesus. Soteriologia seria o estudo
da salvação: tendo tratado da charada ontológica, isto é como homem e Deus
poderiam ser um só em Jesus, perguntaram-se, completamente separados do
problema, o que Jesus fez e de que maneira o efeito de sua acção nos alcança. A
separação de ambas as questões, a colocação de pessoa e obra como objeto de
considerações e tratados separados, teve como consequência tornarem-se ambos
incompreensíveis e irrealizáveis. Basta examinar um pouco os tratados de
dogmática para constatar quão complicadas se tornaram as teorias sobre ambos,
por ter-se olvidado que só poderiam ser compreendidos quando juntos. Lembro
apenas a forma sob a qual a doutrina da salvação geralmente se apresenta na
consciência cristã. Baseia-se na chamada teoria da satisfação desenvolvida por
Anselmo de Cantuária no limiar da Idade Média, e que determinou com
exclusividade crescente a consciência ocidental. Vista na sua forma clássica,
não apresenta aspecto unilateral, mas considerada na forma grosseira criada
posteriormente pela consciência geral, ela assume feição de um mecanismo cruel
que se nos afigura mais e mais irrealizável.
Anselmo de Cantuária (mais ou menos de 1033 a 1109)
tinha em mente deduzir a obra de Cristo através de razões necessárias (rationibus
necessariis), mostrando de maneira irrefutável que essa obra se devia realizar
exactamente como se realizou. O seu pensamento poderia ser reduzido às
seguintes grandes linhas: pelo pecado do homem, cometido contra Deus, foi
infinitamente ferida a ordem da justiça e Deus ofendido infinitamente. Por detrás
disso esconde-se a ideia de que a medida da ofensa deve ser avaliada pelo
ofendido; outras são as consequências da ofensa a um mendigo e outras a um
chefe de estado. O peso da ofensa varia de acordo com o que foi atingido. Sendo
Deus o infinito, também a ofensa a ele infligida pelo pecado tem um peso
infinito. O direito assim violado deve ser restaurado, porque Deus é o Deus da
ordem e da justiça, é aliás a própria justiça. Ora, de acordo com o tamanho da
ofensa, impõe-se uma reparação infinita. Para tanto o homem não é capaz. Tem
capacidade de ofender infinitamente (para o que a sua força é bastante), mas
não é capaz de oferecer uma reparação infinita: o que ele, o finito, oferecer,
será sempre apenas finito. A sua capacidade destruidora ultrapassa o seu poder
criativo. Portanto, permanecerá uma distância infinita entre todas as
reparações que o homem tentar e a grandeza de sua culpa, distância que ele
jamais conseguirá vencer: qualquer gesto de reparação somente lhe revelará a
impossibilidade de fechar o abismo que ele mesmo rasgou.
Então, a ordem deverá ficar para sempre destruída,
o homem eternamente encerrado no abismo de sua culpa? Neste ponto Anselmo
avança para a figura de Cristo. Eis a sua resposta: o próprio Deus apaga a
injustiça, não (como ele poderia fazer) por meio de uma simples anistia incapaz
de sobrepujar por dentro o crime cometido, mas fazendo com que o infinito se
torne homem e, como homem, pertencente à raça dos pecadores e, no entanto,
possuidor da infinita capacidade de reparação, que está ausente no simples
homem, preste ele a necessária reparação. Assim a redenção dá-se totalmente por
graça e, simultaneamente, como restauração do direito. Anselmo acreditava assim
ter respondido à difícil questão "cur Deus homo?", questão sobre o
"por que" da encarnação e da cruz. O seu ponto de vista imprimiu um
cunho decisivo ao segundo milénio da cristandade ocidental a qual se tornou
convencida de que Cristo devia morrer na cruz para reparar a infinita ofensa do
pecado e restaurar assim a ordem abalada.
Não se deve negar que a teoria anselmiana reúne
decisivos pontos de vista bíblicos e humanos; quem a examinar com certa
paciência, se convencerá disto mais facilmente. Neste sentido, enquanto
tentativa de reunir todos os elementos da revelação bíblica numa grande
síntese, profunda e sistemática, continuará merecendo respeito. Será difícil
perceber que, apesar de todos os recursos filosóficos e jurídicos postos aqui
em acção, permanece como linha mestra aquela verdade expressa na Bíblia pela
palavrinha "para", com a qual o livro sagrado manifesta que, como
homens, não só vivemos imediatamente de Deus, mas uns dos outros e, finalmente,
daquele único que viveu para todos? E quem não veria que, no esquema da teoria
da satisfação, continua clara a linha do pensamento bíblico da eleição, para a
qual a escolha não representa um privilégio do eleito, mas a vocação para
existir para os outros? E o chamamento para aquele "para", ao qual o
homem serenamente se deixa levar, cessando de agarrar-se, e ousando o salto
para fora de si mesmo, rumo ao infinito, pelo qual, e só por ele, conseguirá
encontrar-se. Mas, mesmo concedendo tudo isto, não se poderá negar que o
sistema jurídico construído por Anselmo, perfeitamente lógico em seu aspecto
divino-humano, distorce as perspectivas e pode mergulhar a imagem de Deus numa
luz sinistra, graças à sua lógica de ferro. Ainda teremos de voltar a este
ponto, quando tratarmos do sentido da cruz. Por ora, basta lembrar que a situação
se apresentará de modo todo diverso, se, em vez da separação na obra e pessoa
de Jesus, se tornar visível que em Jesus Cristo não se trata de uma acção separada
dele, de um acto que Deus deve exigir por estar pessoalmente comprometido com a
ordem; que não se trata – para falar com Gabriel Marcel – do ter da
humanidade, mas do seu ser. E como se tornará outro o panorama, se
apelarmos para expressão paulina que nos ensina a compreender a Cristo como o
"último homem" (eschatos Adam: 1Cor 15,45) – como o homem
definitivo a conduzir a humanidade ao seu futuro, que consiste em ser, não
homem apenas, mas um com Deus.
3. Cristo, "o último Homem”.
Atingimos aqui o ponto em que podemos tentar uma
síntese do que temos em mente com a confissão: "Creio em Jesus Cristo,
Filho unigénito de Deus, nosso Senhor". Após tudo o que se disse até aqui,
eis o que se poderia dizer em primeiro lugar: Fé cristã crê em Jesus de Nazaré
enquanto o homem exemplar – assim poderia reproduzir-se objectivamente a
expressão paulina "o último homem" há pouco citada. Mas, justamente
como o exemplar, como o protótipo, Cristo ultrapassa o limite do
"ser-homem", assim e só deste modo ele realmente é o homem exemplar.
Pois o homem está dentro de si tanto menos, quanto mais está no outro. Volta a
si somente afastando-se de si. Só pelo outro e pelo existir no outro
ele chega a si.
O que vale, finalmente, em último e mais profundo
sentido. Se o outro for apenas alguém, pode transformar-se em auto-perdição do
homem. Em última análise, o homem está sintonizado para o outro, para o
realmente outro, para Deus; está em si tanto mais, quanto mais estiver no
completamente outro, em Deus. Portanto, ele é todo ele mesmo, se cessar de
estar em si, de fechar-se em si, de afirmar-se a si, se tornar a pura abertura
para Deus. Dito ainda de outro modo: o homem chega a si, ultrapassando-se a si.
Ora Jesus Cristo é o homem que se ultrapassou a si e que assim chegou
completamente a si.
O Rubicão da encarnação é transposto primeiramente
pela passagem do animal para o Logos, da mera vida para o espírito. Da
"argila" formou-se o homem no momento em que um ser não somente
"estava ali", mas estava aberto para o todo, superando a mera
presença e a satisfação de suas necessidades. Ora, este passo pelo qual, pela
primeira vez, Logos, razão, espírito penetrou neste mundo, somente alcança a
sua plena realizacção, quando o próprio Logos, a razão criadora total, e o
homem se entrelaçam. A completa hominização do homem supõe a hominização de
Deus; somente por meio dela foi transposto definitivamente o Rubicão do
"animalesco" para o "lógico", sendo levado à sua máxima
possibilidade aquele começo que irrompeu quando, pela primeira vez, um ser de
pó e argila, olhando para além de si e do seu mundo ambiente, foi capaz de
dizer "tu" a Deus. A abertura para o todo, para o ilimitado, perfaz o
homem. O homem é homem pelo facto de chegar infinitamente para além de si, e,
por conseguinte, é tanto mais homem quanto menos for fechado, limitado em si.
Portanto – repitamo-lo – é homem ao máximo, e mais, o verdadeiro homem, aquele
que for o mais "ilimitado", que não somente toque o infinito – o
Infinito! – mas que seja um com ele: Jesus Cristo. Nele a meta da hominização
foi verdadeiramente alcançada.
Há, porém, ainda um segundo elemento a considerar.
Até agora tentamos compreender, a partir da ideia do "homem
exemplar", aquela primeira ultrapassagem fundamental do que é próprio, a
qual a fé conhece como determinativa para a figura de Jesus, a saber, a que
reúne, nele, o ser-homem com o ser-Deus, em uma unidade. Contudo, já aí
ressoava uma ulterior ultrapassagem. Sendo Jesus o homem exemplar, no qual se
revela plenamente a verdadeira figura do homem, e com ele a ideia de Deus, não
pode, em tal caso, estar destinado a figurar como excepção absoluta, como uma
curiosidade, em que Deus nos demonstra o que é possível. Em tal caso, a sua
existência interessa à humanidade inteira. O Novo Testamento torna-o
reconhecível, chamando-o de "Adão"; na Bíblia o termo exprime a
unidade da natureza inteira do homem, de forma que se fala do conceito bíblico
de uma "personalidade corporativa". Ora, Jesus ser chamado
"Adão" denota que está destinado a concentrar em si a natureza
inteira de Adão. O que significa: aquela realidade, hoje em grande parte
inconcebível para nós, que Paulo denomina de "Corpo de Cristo",
representa um postulado interno dessa existência que não pode permanecer como
excepção, mas deve atrair e "concentrar em si" a humanidade inteira
(cfr. Jo 12,32).
(cont)
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)