AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS
OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO IX
ESPIRITUALIDADE CONJUGAL E FAMILIAR.
O amor assume matizes diferentes,
segundo o estado de vida a que cada um foi chamado. Várias décadas atrás, o
Concílio Vaticano II, a propósito do apostolado dos leigos, punha em realce a
espiritualidade que brota da vida familiar. Dizia que a espiritualidade dos
leigos «deverá assumir características especiais» próprias, nomeadamente a
partir do «estado do matrimónio e da família», e que os cuidados familiares não
devem ser alheios ao seu estilo de vida espiritual. Por isso, vale a pena
deter-nos brevemente a descrever algumas características fundamentais desta
espiritualidade específica que se desenrola no dinamismo das relações da vida
familiar. Espiritualidade da comunhão sobrenatural. Sempre falamos da
inabitação de Deus no coração da pessoa que vive na sua graça. Hoje podemos dizer
também que a Trindade está presente no templo da comunhão matrimonial. Assim[i] como habita nos louvores do seu povo[ii], assim também vive intimamente no amor conjugal que
Lhe dá glória. A presença do Senhor habita na família real e concreta, com
todos os seus sofrimentos, lutas, alegrias e propósitos diários. Quando se vive
em família, é difícil fingir e mentir, não podemos mostrar uma máscara. Se o
amor anima esta autenticidade, o Senhor reina nela com a sua alegria e a sua
paz. A espiritualidade do amor familiar é feita de milhares de gestos reais e
concretos. Deus tem a sua própria habitação nesta variedade de dons e encontros
que fazem maturar a comunhão. Esta dedicação une «o humano e o divino»,369
porque está cheia do amor de Deus. Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma
espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino.
A comunhão familiar bem
vivida é um verdadeiro caminho de santificação na vida ordinária e de
crescimento místico, um meio para a união íntima com Deus. Com efeito, as
exigências fraternas e comunitárias da vida em família são uma ocasião para
abrir cada vez mais o coração, e isto torna possível um encontro sempre mais
pleno com o Senhor. Lê-se, na Palavra de Deus, que «quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas»[iii], «permanece na
morte»[iv] e «não chegou a
conhecer a Deus»[v]. O meu antecessor, Bento XVI, disse que «o fechar os
olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus» e que, fundamentalmente,
o amor é a única luz que «ilumina incessantemente um mundo às escuras». Somente
«se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à
perfeição em nós»[vi]. Dado que «a pessoa humana tem uma inata e estrutural
dimensão social» e «a primeira e originária expressão da dimensão social da
pessoa é o casal e a família», a espiritualidade encarna-se na comunhão
familiar. Por isso, aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem
sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um
percurso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união mística. Unidos
em oração à luz da Páscoa. Se a família consegue concentrar-se em Cristo, Ele
unifica e ilumina toda a vida familiar. Os sofrimentos e os problemas são
vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar
os piores momentos. Nos dias amargos da família, há uma união com Jesus[vii] abandonado, que pode evitar uma ruptura. As famílias alcançam
pouco a pouco, «com a graça do Espírito Santo, a sua santidade através da vida
matrimonial, participando também no mistério da cruz de Cristo, que transforma
as dificuldades e os sofrimentos em oferta de amor». Por outro lado, os momentos
de alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a sexualidade são sentidos como uma
participação na vida plena da sua Ressurreição. Os cônjuges moldam, com vários
gestos quotidianos, este «espaço teologal, onde se pode experimentar a presença
mística do Senhor ressuscitado». A oração em família é um meio privilegiado
para exprimir e reforçar esta fé pascal. Podem-se encontrar alguns minutos cada
dia para estar unidos na presença do Senhor vivo, dizer-Lhe as coisas que os
preocupam, rezar pelas necessidades familiares, orar por alguém que está a
atravessar um momento difícil, pedir-Lhe ajuda para amar, dar-Lhe graças pela
vida e as coisas boas, suplicar à Virgem que os proteja com o seu manto de Mãe.
Com palavras simples, este momento de oração pode fazer muito bem à família. As
várias expressões da piedade popular são um tesouro de espiritualidade para muitas
famílias. O caminho comunitário de oração atinge [viii] o seu ponto culminante ao participarem juntos na
Eucaristia, sobretudo no contexto do descanso dominical. Jesus bate à porta da
família, para partilhar com ela a Ceia Eucarística[ix]. Aqui, os esposos podem voltar incessantemente a selar
a aliança pascal que os uniu e reflecte a Aliança que Deus selou com a
humanidade na Cruz. A Eucaristia é o sacramento da Nova Aliança, em que se
actualiza a acção redentora de Cristo[x]. Constatamos, assim, os laços íntimos que existem
entre a vida conjugal e a Eucaristia. O alimento da Eucaristia é força e
estímulo para viver cada dia a aliança matrimonial como «igreja doméstica».
Espiritualidade do amor exclusivo e libertador. No matrimónio, vive-se também o
sentido de pertencer completamente a uma única pessoa. Os esposos assumem o
desafio e o anseio de envelhecer e gastar-se juntos, e assim reflectem a
fidelidade de Deus. Esta firme decisão, que marca um estilo de vida, é uma
«exigência interior do pacto de amor conjugal»,380 porque, «quem não[xi]. Não esqueçamos que a Aliança de Deus com o seu povo
se exprime como um desposório[xii], e a nova Aliança é apresentada também como um matrimónio
[xiii] se decide a amar para sempre, é difícil que possa amar
deveras um só dia». Mas isto não teria significado espiritual, se fosse apenas
uma lei vivida com resignação. É uma pertença do coração, lá onde só Deus vê[xiv]. Cada manhã, quando se levanta, o cônjuge renova
diante de Deus esta decisão de fidelidade, suceda o que suceder ao longo do
dia. E cada um, quando vai dormir, espera levantar-se para continuar esta aventura,
confiando na ajuda do Senhor. Assim, cada cônjuge é para o outro sinal e
instrumento da proximidade do Senhor, que não nos deixa sozinhos: «Eu estarei
sempre convosco, até ao fim dos tempos»[xv]. Há um ponto em que o amor do casal alcança a máxima
libertação e se torna um espaço de sã autonomia: quando cada um descobre que o
outro não é seu, mas tem um proprietário muito mais importante, o seu único
Senhor. Ninguém pode pretender possuir a intimidade mais pessoal e secreta da
pessoa amada, e só Ele pode ocupar o centro da sua vida. Ao mesmo tempo, o
princípio do realismo espiritual faz com que o cônjuge não pretenda que o outro
satisfaça completamente as suas exigências. É preciso que o caminho espiritual
de cada um – como justamente indicava Dietrich Bonhoeffer – o ajude a «desiludir-se»[xvi] do outro, a deixar de esperar dessa pessoa aquilo que é
próprio apenas do amor de Deus. Isto exige um despojamento interior. O espaço
exclusivo, que cada um dos cônjuges reserva para a sua relação pessoal com
Deus, não só permite curar as feridas da convivência, mas possibilita também
encontrar no amor de Deus o sentido da própria existência. Temos necessidade de
invocar cada dia a acção do Espírito, para que esta liberdade interior seja possível.
Espiritualidade da solicitude, da consolação e do
estímulo.
«Os esposos cristãos são cooperadores da graça e testemunhas da fé um
para com o outro, para com os filhos e demais familiares». Deus convida-os
a gerar e a cuidar. Por isso mesmo, a família «foi desde sempre o “hospital”
mais próximo».
Prestemo-nos cuidados,
apoiemo-nos e estimulemo-nos mutuamente, e vivamos tudo isto como parte da
nossa espiritualidade familiar. A vida em casal é uma participação na obra
fecunda de Deus, e cada um é para o outro uma permanente provocação do
Espírito. O amor de Deus exprime-se «através das palavras vivas e concretas com
que o homem e a mulher se declaram[xvii] o seu amor
conjugal». Assim, os dois são entre si reflexos do amor divino, que conforta
com a palavra, o olhar, a ajuda, a carícia, o abraço. Por isso, «querer formar
uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de
sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele
nesta história de construir um mundo onde ninguém se sinta só». Toda a vida da
família é um «pastoreio» misericordioso. Cada um, cuidadosamente, desenha e
escreve na vida do outro: «A nossa carta
sois vós, uma carta escrita nos nossos corações (...) não com tinta, mas com o
Espírito do Deus vivo»[xviii].
Cada um é um «pescador de homens»[xix] que, em nome de Jesus, lança as redes [xx] para os outros, ou um lavrador que trabalha nesta
terra fresca que são os seus entes queridos, incentivando o melhor deles. A
fecundidade matrimonial implica promover, porque «amar uma pessoa é esperar
dela algo indefinível e imprevisível; e é, ao mesmo tempo, proporcionar-lhe de
alguma forma os meios para satisfazer tal expectativa». Isto é um culto a Deus,
pois foi Ele que semeou muitas [xxi] coisas boas nos outros, com a esperança de que as
façamos crescer. É uma experiência espiritual profunda contemplar cada ente
querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele. Isto exige uma disponibilidade
gratuita que permita apreciar a sua dignidade. É possível estar plenamente
presente diante do outro, se uma pessoa se entrega gratuitamente, esquecendo
tudo o que existe em redor. Assim a pessoa amada merece toda a atenção. Jesus
era um modelo, porque, quando alguém se aproximava para falar com Ele, fixava
nele o seu olhar, olhava com amor[xxii]. Ninguém se sentia transcurado na sua presença, pois
as suas palavras e gestos eram expressão desta pergunta: «Que queres que te faça?»[xxiii]. Vive-se isto na vida quotidiana da família. Nela,
recordamos que a pessoa que vive connosco merece tudo, pois tem uma dignidade infinita
por ser objecto do amor imenso do Pai. Assim floresce a ternura, capaz de
«suscitar no outro a alegria de sentir-se amado. Exprime-se, de modo
particular, no debruçar-se com delicada atenção sobre os limites do outro,
especialmente quando aparecem de forma evidente».
Sob o impulso do Espírito,
o núcleo familiar não só acolhe a vida gerando-a no próprio seio, mas abre-se também,
sai de si para derramar [xxiv] o seu bem nos outros, para cuidar deles e procurar a
sua felicidade. Esta abertura exprime-se particularmente na hospitalidade, que
a Palavra de Deus encoraja de forma sugestiva: «Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o
saberem, hospedaram anjos»[xxv]. Quando a família acolhe e sai ao encontro dos outros,
especialmente dos pobres e abandonados, é «símbolo, testemunho, participação da
maternidade da Igreja». Na realidade, o amor social, reflexo da Trindade, é o
que unifica o sentido espiritual da família e a sua missão fora de si mesma,
porque torna presente o querigma com todas as suas exigências comunitárias. A
família vive a sua espiritualidade própria, sendo ao mesmo tempo uma igreja
doméstica e uma célula viva para transformar o mundo. As palavras do Mestre [xxvi] e as
de São Paulo[xxvii] sobre o matrimónio estão inseridas – não por acaso –
na dimensão última e definitiva da nossa existência, que precisamos de
recuperar. Assim, os esposos poderão reconhecer o sentido do caminho que estão
a percorrer. Com efeito, como recordamos [xxviii] [xxix]. [xxx] Sobre
os aspectos sociais da família, várias vezes nesta Exortação, nenhuma família é
uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo
amadurecimento da sua capacidade de amar. Há um apelo constante que provém da
comunhão plena da Trindade, da união estupenda entre Cristo e a sua Igreja, daquela
comunidade tão bela que é a família de Nazaré e da fraternidade sem mácula que
existe entre os Santos do céu. Mas contemplar a plenitude que ainda não
alcançámos permite-nos também relativizar o percurso histórico que estamos a
fazer como família, para deixar de pretender das relações interpessoais uma
perfeição, uma pureza de intenções e uma coerência que só poderemos encontrar
no Reino definitivo. Além disso, impede-nos de julgar com dureza aqueles que
vivem em condições de grande fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a
tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família
deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar!
Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos
nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e
comunhão que nos foi prometida. Oração à Sagrada Família Jesus, Maria e José,
em Vós contemplamos o esplendor do verdadeiro amor, confiantes, a Vós nos
consagramos. Sagrada Família de Nazaré, tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração, autênticas escolas do Evangelho e
pequenas igrejas domésticas. Sagrada Família de Nazaré, que nunca mais haja nas
famílias episódios de violência, de fechamento e divisão; e quem tiver sido
ferido ou escandalizado seja rapidamente consolado e curado. Sagrada Família de
Nazaré, fazei que todos nos tornemos conscientes do carácter sagrado e
inviolável da família, da sua beleza no projecto de Deus. Jesus, Maria e José,
ouvi-nos e acolhei a nossa súplica. Ámen.
Dado em Roma, junto de São
Pedro, no Jubileu Extraordinário da Misericórdia, a 19 de Março – solenidade de
São José – do ano 2016, quarto do meu Pontificado.
TIPOGRAFIA VATICANA
(Revisão da versão
portuguesa or AMA)
[i] Decr. sobre o
apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, 4. 368 Cf. ibidem. 254
[iv]
(1 Jo 369
Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 49. 255 3, 14)
[vii]
370 Carta enc.
Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 16: AAS 98 (2006), 230. 371 Ibid.,
39: o. c., 250. 372 João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici
(30 de Dezembro de 1988), 40: AAS 81 (1989), 468. 373 Ibidem. 256
[viii]
374 Relatio
Finalis 2015, 87. 375 João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25
de Marco de 1996), 42: AAS 88 (1996), 416. 376 Cf. Relatio Finalis 2015, 87.
257
[xiii]
(cf. Ap 19, 7;
21, 2; Ef 5, 25). 379 Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen
gentium, 11. 380 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 11: AAS 74 (1982), 93. 258
[xvi]
381 Idem,
Homilia na Eucaristia celebrada para as famílias, em Córdova/Argentina (8 de
Abril de 1987), 4: Insegnamenti 10/1 (1987), 1161-1162; L´Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 08/V/1987), 6. 259
[xvii] 382 Cf. Gemeinsames
Leben (Munique 1973), 18. 383 Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos
leigos Apostolicam actuositatem, 11. 384 Francisco, Catequese (10 de Junho de
2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 11/VI/2015), 16. 26
[xxi]
385 João Paulo
II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 12: AAS 74
(1982), 93. 386 Francisco, Discurso na Festa das Famílias e Vigília de Ora-
ção, em Filadélfia (26 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 08/X/2015), 2. 387 Gabriel Marcel,
Homo viator: prolégomènes à une métaphysique de l´espérance (Paris 1944), 63. 261
[xxviii]
Cf. João Paulo
II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 44: AAS 74
(1982), 136. 49: o. c., 141
[xxix]
Ibd