A
PAZ NA FAMÍLIA
AS
CORDAS DO CORAÇÃO
MAIS
CORDAS DESAFINADAS
Existem outras cordas
malsoantes do orgulho. Seria difícil lembrá-las todas. Mas, para ficarmos
prevenidos e tentarmos melhorar, talvez seja útil examinar ainda mais três ou
quatro delas.
Uma corda, um defeito muito
aparentado com a crítica, é a mania de fiscalizar, partindo da base de que
sempre existe “coelho no mato”. O paradigma pitoresco desse espírito de
suspeita é a figura lendária do marido que, todos os dias, ao chegar a casa,
aplica uma homérica surra na mulher e nos filhos, e esclarece depois: “Não sei
o que eles fizeram, mas eles sabem...”
Há pais que parecem estar
sempre a fazer uma auditoria na mulher e nos filhos, com um bloco de multas e o
Código Penal na mão. A alguns deles, costumo chamá-los, brincando, “Catão, o
Censor” [i].
E o mesmo se poderia dizer
de certas mães, que mostram uma eterna desconfiança para com os filhos.
Interrogam policialmente a todos sobre todas as coisas; vasculham gavetas,
papéis e armários à procura de “algo errado”; não acreditam no que eles dizem;
fazem complicadas pesquisas telefónicas para se certificar de que estiveram
mesmo lá onde disseram que iam; perguntam mil vezes a mesma coisa, para ver se
os apanham em contradição. Em consequência, os filhos exasperam-se, ficam fora
de casa o mais que podem e acabam caindo na teia de aranha das mentiras,
provocadas pela desconfiança dos pais.
Quando essa desconfiança se
dá entre marido e mulher, e degenera na doença mortal dos ciúmes, então a paz
familiar está à beira do naufrágio. O lar torna-se uma câmara de gás, cada vez
mais venenoso e asfixiante. O homem ou a mulher que se torturam, e torturam o
cônjuge, com a máquina mortífera dos ciúmes, deveriam compreender que só têm
duas saídas para esse beco letal: ou reconhecem que o ciúme é fruto de um
requintado orgulho (o da pessoa que se sente como uma divindade nunca
suficientemente adorada); ou aceitam o facto de que estão doentes, e vão-se
tratar com um bom especialista.
O que não é possível é dizer
“Eu sou ciumento” e continuar a transformar o lar num inferno.
Também é manifestação clara
de orgulho a mania de ter razão.
Como é desagradável conviver
com uma pessoa que, por princípio, não aceita que a contradigam, ainda que o
façam serenamente e com bons argumentos; que não é capaz de ceder – até mesmo
quando já não tem mais o que retrucar –, mas sente a necessidade de dizer a
última palavra, porque não quer dar o braço a torcer. “Eu tenho razão, e
pronto!”
É tão bom ceder! Só é
preciso ter um pouco de humildade, ungida com um pouco de caridade.
São Josemaria Escrivá
aconselhava sempre aos casais – e a todas as pessoas de boa vontade – a não
discutir. “Da discussão – escrevia – não costuma sair a luz,
porque é apagada pela
paixão” [ii].
E punha um minúsculo exemplo
prático, com palavras semelhantes a estas: – Para que discutir com a mulher,
que afirma que a prima Fulana tem trinta anos, teimando em dizer que “já tem
trinta e dois”? É melhor ceder, e não atear uma discussão por uma
insignificância. Que importância têm dois ou três anos a mais ou a menos?
Às vezes, para ajudar algum
obstinado discutidor a abaixar as armas, costumo dizer-lhe:
“Você já pensou que ninguém
vai para o Céu pelo facto de «ter tido razão» nas discussões? No dia do Juízo,
ninguém vai perguntar-lhe se, na vida, você «teve razão». Pelo contrário, vão
perguntar-lhe se soube compreender os outros, se soube perdoar, aparar arestas
e espinhos no convívio e evitar conflitos por minúcias tolas”.
Por último, para não fazer
uma enumeração interminável de cordas do orgulho, vou lembrar algo que me dizia
recentemente um velho amigo, e que me deixou pensativo e comovido.
Eu vinha meditando sobre o
que agora estou a escrever, e ocorreu-me perguntar a esse amigo (pai de uma
família unida e exemplar, que acabava de celebrar as Bodas de Ouro do seu
felicíssimo casamento): “Fulano, qual acha que é o segredo da paz familiar?”
Confesso que esperava umas
palavras um tanto românticas. Por isso, surpreendeu-me a resposta: “Eu diria
que o segredo da paz na família é a educação”.
Reconheci, depois, que há
nessa resposta uma enorme dose de sabedoria cristã, acrisolada pela
experiência. A grosseria, com efeito, não resulta só da deficiência de formação
de berço. É sempre um acto de orgulho, porque constitui uma falta de respeito
para com a pessoa rudemente tratada, um rebaixamento, uma humilhação.
Na terceira parte desta
obra, ao falar dos bons caminhos que levam à paz, deveremos mencionar o respeito
– feito de humildade, compreensão e grandeza de coração –, como base
indispensável para o amor e, portanto, para a harmonia e a paz. Mas, por ora,
vamos deixar este assunto por aqui.
SEGUNDO
PORÃO: O EGOÍSMO COMODISTA
HISTÓRIA TRISTE DE CHUPIM
Rubem Braga tem uma crónica
deliciosa, intitulada História triste de Tupim.
Vamos começar este novo item
com uma crónica nada deliciosa, que poderíamos chamar História triste de
chupim.
Na casa onde moro, há um
pedacinho de jardim na frente e um quintal nos fundos. O ano inteiro é visitada
por pássaros os mais diversos, que enchem o quintal de cores e alegria.
Na primavera, fervilham: lá
faz ninho o sabiá, cria a corruíra e se multiplica a rolinha. Mas, ano após
ano, uma sombra escura desce sobre esse pequenino paraíso alegre.
Um dia qualquer, observa-se
bicando o chão, com ar distraído e olhar sorrateiro, um casal de chupins,
pretos como o azeviche. Por mais que disfarcem, ninguém se ilude sobre os seus
propósitos. Estão a espiar a ingenuidade com que o tico-tico prepara,
laboriosamente, o seu ninho. Aproveitando um descuido dos inocentes
passarinhos, a fêmea do chupim depositará no ninho deles um ou dois de seus
ovos, e desaparecerá, lavando as mãos – ou o bico – dos trabalhos aborrecidos
de ter que construir um ninho, chocar os ovos e alimentar os filhotes.
Só quer vida livre, e os
tico-ticos que aguentem o tranco!
Mas isso não é o pior.
Correm os dias e nascem as crias. No ninho, começam a conviver pequenos
tico-ticos e o ainda pequenino chupim. A mãe tico-tico, numa azáfama
incansável, vai levando comida para aqueles quatro ou cinco biquinhos abertos.
Passam-se mais uns dias, e o filhote de chupim já cresceu. Logo vai crescendo
mais, ocupa quase todo o ninho, lá mal cabem todos. Até que, numa manhã,
descobre-se com o coração cortado o gordo filhote de chupim refestelado no
ninho e, no chão, mortos ou agonizantes, os filhos legítimos do tico-tico, que
foram sendo empurrados para fora porque o chupim precisava do espaço inteiro do
ninho.
A imagem do chupim não é nada
obscura, parece-me, quando aplicada aos conflitos do lar.
Porque o chupim é um símbolo
claríssimo do egoísmo na vida familiar. Em casa e fora dela, se as pessoas não
dominam a tendência para o egoísmo e o comodismo que todos trazemos dentro,
esses defeitos vão crescendo cada vez mais e, gordos como o chupim, acabam por
repelir ou machucar seriamente os outros.
Convençamo-nos de que não é
só com a agressão, a ofensa, a irritação, a crítica e a prepotência que se
criam conflitos familiares. Muitos, muitíssimos deles, são fruto da hipertrofia
do comodismo egoísta.
Na sua Carta às famílias,
São João Paulo II convida-nos a perguntar-nos se o egoísmo que, como diz, “se
esconde inclusive no amor”, não acaba por ser “mais forte do que este amor” [iii].
Vamos agora fazer-nos essa
pergunta, ao mesmo tempo que procuramos identificar manifestações de egoísmo e
comodismo que não raro grassam na vida familiar.
(cont)
[i]
Marco
Pórcio Catão (234-149 a.C.), personalidade pública de Roma que recebeu o apelido de censorius pelo rigor inflexível com que
criticou o relaxamento de costumes, devido à influência grega.
[ii]
Josemaría
Escrivá, Caminho, 8a. ed., Quadrante, 1995, n. 25.
[iii]
São
João Paulo II, Carta às famílias, n. 7.
[iv] Francisco
Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito
Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote
em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção
espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas
obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas
Cristãos, os títulos:
O
valor das dificuldades; O homem bom;
Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens; A língua; A paciência; A voz da
consciência.