A Cidade de Deus
Vol. 1
LIVRO
II
CAPÍTULO XVII
O rapto das Sabinas e outras
iniquidades que, noutros tempos, vigoravam e até eram louvadas na cidade
romana.
Porque
é que não foram ditadas leis ao Povo Romano pelos deuses? Terá sido, por acaso,
porque, como diz Salústio,
entre
eles o direito, tal como o bem, tirava o seu valor mais da natureza do que das
leis.
Creio
que as Sabinas foram raptadas em virtude desse «direito» e dessa «bondade».
Efectivamente, que é que há de mais justo e melhor do que, pela força, cada um
raptar como pode, aos pais que não as cedem, as jovens forasteiras levadas por
engano a um espectáculo? Se os sabinos procederam mal em negar as filhas
pedidas — não foi muito mais iníquo roubá-las, lá porque lhas recusaram? Seria
mais justo declarar a guerra a um povo que se negara a dar suas filhas em casamento
a conterrâneos e vizinhos seus, do que lutar com um povo que reclamava suas
filhas raptadas. Preferiu-se porém aquilo. Até Marte ajudaria seu filho a
combater para vingar pelas armas a injúria de umas núpcias recusadas. E assim
conseguiriam as mulheres que pretendiam. Efectivamente, talvez em virtude de
algum direito de guerra, o vencedor poderia justificadamente levar as raparigas
que injustamente lhes tinham sido negadas. Mas raptar em tempo de paz as que
não lhes tinham sido concedidas é contra todo o direito, gerando assim uma
guerra injusta contra seus pais justamente indignados. Isto teve resultados
mais úteis e mais felizes: embora se tenha mantido, sob a forma de espectáculo
de circo, a recordação desta fraude o exemplo desta má acção não conseguiu o
agrado naquela cidade imperial. O erro dos Romanos está mais em terem consagrado
Rómulo como deus depois daquela iniquidade, do que permitirem, por qualquer
costume ou lei, à sua imitação, o rapto de mulheres. Foi em virtude deste
sentido de direito e do bem que, depois de, com seus filhos, ter sido expulso o
rei Tarquínio, cujo filho violentara Lucrécia, o cônsul Júnio Bruno obrigou
Lúcio Tarquínio Colatino, marido da referida Lucrécia e seu colega, varão bom e
inocente, a abandonar a magistratura por causa do nome e do parentesco dos
Tarquínios, e nem sequer lhe permitiu que continuasse a viver na cidade.
Colatino como também o próprio Bruto, tinha recebido o consulado do povo que
favoreceu ou permitiu essa iniquidade.
Foi
em virtude ainda desse «sentido do direito e do bem», que Marco Camilo, (varão
ilustre daquele tempo, que com toda a facilidade derrotou os Veientes,
perigosíssimos inimigos do Povo Romano, depois de uma guerra de dez anos em que
o exército romano, combatendo mal, sofreu várias vezes sérios revezes a ponto
de a própria Roma tremer e duvidar da sua salvação) tomou a opulentíssima urbe
deles — mas a inveja dos caluniadores do seu valor e a insolência dos tribunos
da plebe, declararam-no réu. Sentiu que aquela cidade que libertara era tão
ingrata que, certíssimo da condenação, espontaneamente se retirou para o exílio.
Já ausente, foi condenado ainda em dez mil moedas de cobre, ele que, em breve,
de novo salvaria dos Gauleses a sua ingrata pátria. Já me repugna relembrar
tantos factos vergonhosos e injustos por que era sacudida aquela cidade, quando
os poderosos procuravam sujeitar a plebe e esta se recusava a sujeitar-se-lhes,
trabalhando os defensores de uma e outra facção, mais pelo desejo de vencer do
que por algo de honrado e bom.
CAPÍTULO XVIII
O que a História de Salústio
comprova acerca dos costumes dos Romanos refreados pelo medo ou relaxados pela
confiança.
Serei
comedido e, como testemunha, apresentarei antes o próprio Salústio que, quando
falava em louvor dos Romanos, dizia isto com que iniciámos esta exposição:
Entre
eles o direito, tal como o bem, tirava o seu valor mais da natureza do que das
leis
Exaltava
assim aquela época em que depois da expulsão dos reis, a cidade se estendeu de
forma incrível em brevíssimo espaço de tempo. O mesmo, porém, no primeiro livro
da sua História e logo desde o princípio dela, confessa que, já então, pouco
depois de o governo ter passado dos reis para os cônsules, as injustiças dos
mais poderosos provocaram uma cisão entre a plebe e os patrí cios, além de
outras dissensões na Urbe. Conta ele que, entre a segunda e a última guerra
cartaginesa, o Povo Romano viveu nos melhores costumes e na maior concórdia e
que a causa deste bom comportamento não foi o amor da justiça mas o medo de uma
paz insegura enquanto Cartago se manteve de pé. Por isso é que o dito Nasica, para
reprimir a corrupção e conservar aqueles óptimos costumes e para que os vícios
fossem contidos pelo medo, não queria que Cartago fosse destruída. Logo abaixo
expõe o mesmo Salústio:
Mas
a discórdia, a avareza, a ambição e demais males que costumam nascer da
prosperidade, aumentaram extraordinariamente depois da destruição de Cartago ,
para
que compreendessemos que já antes costumavam surgir e avolumar-se. Por isso
explica porque é que tal dissera:
As
injustiças dos poderosos, provocando a separação da plebe e dos patrícios e
outras dissenções internas, existiram entre eles desde o princípio, porque a
observância de um direito justo e moderado não durou mais que o tempo em que se
teve medo de Tarquínio e da pesada guerra com a Etrúria .
Vês
de que modo, naquele breve espaço de tempo que se seguiu à suspensão dos reis,
isto é à sua expulsão, se viveu com leis justas e moderadas — sendo o medo a
causa disso. Temia-se efectivamente a guerra que o rei Tarquínio, expulso do
reino e de Roma, aliado dos Etruscos, sustentava contra os Romanos.
Repara
no que ele, em seguida, escreve:
Mais
tarde os patrícios submeteram a plebe a um jugo de escravos, dispuseram à
maneira dos reis da sua vida e da sua pele, expulsaram-nos dos seus campos e
apoderaram-se sozinhos do poder depois de dele excluírem os demais. Oprimida
por estas sevícias e principalmente por dívidas, quando suportava, devido a
contínuas guerras, o duplo peso dos impostos e do serviço militar, a plebe
instalou-se com armas no Monte Sagrado e no Aventino — o que desde logo lhes
valeu passarem a ter tribunos da plebe e outros direitos. Mas a segunda guerra
Púnica pôs termo, de parte a parte, a estas discórdias e lutas .
Aperceber-te-ás desde quando, isto é, desde
pouco depois da expulsão dos reis, eram desta qualidade os Romanos. Foi deles
que diria:
Entre
eles o direito, tal como o bem, tirava o seu valor mais da natureza do que das
leis.
Mas
se se consideram assim aqueles tempos, dos quais se diz terem sido os melhores
e os mais belos da República Romana, — que é que se dirá do período seguinte ou
que é que se há-de pensar, para usar das próprias palavras do historiador,
quando
pouco a pouco se foi transformando da mais bela e da mais virtuosa (República)
na pior e na mais corrompida ,
depois da destruição de Cartago, como ele já notara? O que o próprio Salústio
um tanto resumidamente recorda e escreve desses tempos pode ler-se na sua
História: quão grave decadência dos costumes nasceu da prosperidade e acabou na
guerra civil.
Como
ele diz:
Desde
essa época os costumes dos antepassados foram-se precipitando, não pouco a
pouco, como outrora, mas como uma torrente. A juventude estava de tal forma
corrompida pelo fausto e pela cobiça que com razão se podia dizer: surgiu uma
geração que não é capaz de possuir património próprio nem permite que outros o
possuam .
Muito
mais diz Salústio em seguida acerca dos vícios de Sula e das outras imundícias
da República. Outros escritores são nisto concordes, embora muito inferiores no
estilo.
Apercebes-te
talvez, julgo eu, — e qualquer um que esteja atento facilmente notará — em que
lodaçal de imundícias morais tinha caído aquela cidade antes da vinda do nosso
Rei Supremo.
Realmente,
estas coisas aconteceram não apenas antes que Cristo, presente em carne,
começasse a ensinar, mas até antes de ter nascido da Virgem.
Não
se atrevem a imputar aos deuses tantos e tão grandes males daqueles tempos quer
os, a princípio, toleráveis, quer os que, depois da destruição de Cartago, se
tornaram intoleráveis e horríveis. Foram eles porém que, com astúcia maligna
inculcaram nas mentes humanas as opiniões donde tais vícios surgiriam como uma
floresta. Então, porque é que imputam os males presentes a Cristo que com a
sua doutrina salvadora proíbe o culto dos deuses falsos e falazes, detesta e
condena, com divina autoridade, estas nocivas e escandalosas paixões dos
homens, subtrai pouco a pouco em toda a parte, deste mundo que cambaleia e cai
nesses males, a família com que fundará uma cidade eterna, a mais gloriosa, não
pelos aplausos de vãs superficialidades, mas pelo autêntico valor da verdade?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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