São Josemaria Escrivá
Cristo que passa 166 a 168
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Levar aos outros o amor de
Cristo
Mas reparai: Deus não nos
declara: em vez do coração, dar-vos-ei uma vontade própria de puro espírito.
Não, dá-nos um coração, e
um coração de carne, como o de Cristo. Não tenho um coração para amar a Deus e
outro para amar as pessoas da Terra.
Com o mesmo coração com
que amo os meus pais e estimo os meus amigos, com esse mesmo coração amo
Cristo, e o Pai, e o Espírito Santo, e Santa Maria.
Não me cansarei de vos
repetir: temos de ser muito humanos, porque, se não, também não podemos ser
divinos.
O amor humano, o amor cá
deste mundo, quando é verdadeiro, ajuda-nos a saborear o amor divino.
E assim entrevemos o amor
com que havemos de gozar de Deus e aquele que lá no Céu nos há-de unir uns aos
outros, quando o Senhor for tudo em todas as coisas.
E, começando a entender o
que é o amor divino, havemos de nos mostrar habitualmente mais compassivos,
mais generosos, mais entregados.
Havemos de dar o que
recebemos, ensinar o que aprendemos; levar os outros a participar - sem
soberba, com simplicidade - desse conhecimento do amor de Cristo.
Quando cada um de vós
realiza o seu trabalho, exerce a sua profissão na sociedade, pode e deve
converter essa tarefa num serviço.
O trabalho bem acabado,
que progride e faz progredir e tem em conta o avanço da cultura e da técnica,
realiza uma grande função, que será sempre útil à humanidade inteira, se nos
mover a generosidade, não o egoísmo; o amor por todos, não o proveito próprio;
se estiver cheio de sentido cristão da vida.
É a partir desse trabalho
e na própria rede das relações humanas, que haveis de mostrar a caridade de
Cristo e os seus resultados concretos de amizade, de compreensão, de ternura
humana, de paz. Assim como Cristo passou fazendo o bem, por todos os caminhos
da Palestina, assim vós ireis por todos os caminhos humanos - da família, da
sociedade civil, das relações profissionais de cada dia - semeando paz.
E será esta a melhor prova
de que o Reino de Deus chegou aos vossos corações.
Nós sabemos que fomos
trasladados da morte para a vida, - escreve o apóstolo S. João - porque amamos
os nossos Irmãos.
Mas ninguém pode viver
esse amor se não se formar na escola do Coração de Jesus.
Só se olharmos e
contemplarmos o Coração de Cristo, conseguiremos que o nosso se liberte do ódio
e da indiferença.
Só assim saberemos reagir
cristãmente diante dos sofrimentos alheios, diante da dor.
Recordai a cena que nos
conta S. Lucas, quando Cristo andava nos arredores da cidade de Naim.
Jesus vê a angústia
daquelas pessoas, com quem Se cruzou ocasionalmente.
Podia ter passado de lado,
ou ter esperado que O chamassem e Lhe fizessem um pedido.
Mas não Se afasta, nem
fica na expectativa.
Toma ele próprio a
iniciativa, movido pela aflição de uma viúva que perdera a única coisa que lhe
restava - o filho.
Explica o evangelista que
Jesus Se compadeceu; talvez a sua comoção tivesse também sinais externos, como
pela morte de Lázaro. Jesus não era, nem é, insensível ao padecimento que nasce
do amor, nem sente prazer em separar os filhos dos pais.
Supera a morte, para dar a
vida, para que aqueles que se amam convivam, exigindo antes e ao mesmo tempo a
preeminência do Amor divino que deve informar a autêntica existência cristã.
Cristo sabe que O rodeia
uma grande multidão, a quem o milagre encherá de pasmo e que há-de ir
apregoando o sucedido por toda aquela região.
Mas o Senhor não actua com
artificialismo, só para praticar um "feito": sente-Se singelamente
afectado pelo sofrimento daquela mulher; não pode deixar de a consolar.
Então, aproximou-Se e
disse-lhe: não chores.
Que é como se lhe
dissesse: não te quero ver desfeita em lágrimas, pois Eu vim trazer à Terra a
alegria e a paz.
E imediatamente se dá o
milagre, manifestação do poder de Cristo, Deus.
Mas antes já se dera a
comoção da sua alma, manifestação evidente da ternura do coração de Cristo,
Homem.
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Se não aprendermos com
Jesus, nunca amaremos.
Se pensássemos, como
alguns pensam, que conservar um coração limpo, digno de Deus, significa não o
misturar, não o contaminar com afectos humanos, o resultado lógico seria
tomarmo-nos insensíveis à dor dos outros.
Só seríamos capazes de uma
caridade oficial, seca e sem alma; não da verdadeira caridade de Jesus Cristo,
que é ternura, amor humano. Mas com isto não estou a justificar certas teorias
com que se pretende desculpar o desvio dos corações, afastando-os de Deus e
levando-os a más ocasiões e à perdição.
Na festa de hoje, havemos
de pedir ao Senhor que nos dê um coração bom, capaz de se compadecer das penas
das criaturas, capaz de compreender que, para remediar os tormentos que
acompanham e tanto angustiam as almas neste mundo, o verdadeiro bálsamo é o
amor, a caridade; todas as outras consolações só servem para nos distrair por
um momento e deixar depois amargura e desespero.
Se queremos ajudar os
outros, temos de os amar - deixai-me insistir - com um amor que seja
compreensão e entrega, afecto e humildade voluntária.
Assim compreenderemos por
que quis o Senhor resumir toda a Lei nesse duplo mandamento, que é afinal um
mandamento só: o amor de Deus e o amor do próximo, com todo o coração.
Talvez estejais a pensar
que, por vezes, nós, cristãos - não os outros: tu e eu - nos esquecemos das
aplicações mais elementares deste dever.
Talvez penseis em tantas
injustiças a que se não dá remédio, em abusos que não se corrigem, em situações
de discriminação que se transmitem de geração em geração, sem se procurar uma
solução de raiz.
Não posso, nem isso me
compete, propor-vos a forma concreta de resolver esses problemas.
Mas, como sacerdote de
Cristo, é meu dever recordar-vos o que a Sagrada Escritura diz.
Meditai na cena do Juízo,
que o próprio Jesus descreveu: afastai-vos de Mim, malditos, e ide para o fogo
eterno, que foi preparado para o Diabo e os seus anjos.
Porque tive fome e não Me
destes de comer; tive sede e não Me destes de beber; fui peregrino e não Me
recebestes; nu, e não Me cobristes; enfermo e encarcerado, e não Me visitastes.
Um homem ou uma sociedade
que não reaja diante das tribulações ou das injustiças e se não esforce por as
aliviar, não é um homem ou uma sociedade à medida do amor do Coração de Cristo.
Os cristãos - conservando
sempre a mais ampla liberdade quando se trata de estudar e de pôr em prática as
diversas soluções, segundo um pluralismo bem natural - terão de convergir no
mesmo anseio de servir a humanidade.
Se não, o seu cristianismo
não será a Palavra e a Vida de Jesus: será um disfarce, um embuste feito a Deus
e aos homens.
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A paz de Cristo
Tenho ainda a propor-vos
uma outra consideração: devemos lutar sem descanso por fazer o bem,
precisamente por sabermos que nos é difícil, a nós, homens, decidirmo-nos a
sério a exercer a justiça, e é muito o que falta para que a convivência terrena
esteja inspirada pelo amor e não pelo ódio ou pela indiferença.
Não esqueçamos também que,
mesmo que consigamos atingir um estado razoável de distribuição dos bens e uma
harmoniosa organização da sociedade, não há-de desaparecer a dor da doença, da
incompreensão ou da solidão, a dor da experiência dos nossas próprias
limitações.
Em face dessas penas, o
cristão só tem uma resposta autêntica, uma resposta definitiva: Cristo na Cruz,
Deus que sofre e que morre, Deus que nos entrega o seu Coração, aberto por uma
lança, por amor a todos.
Nosso Senhor abomina as
injustiças e condena quem as comete.
Mas, como respeita a
liberdade das pessoas, permite que existam. Deus Nosso Senhor não causa a dor
das criaturas, mas tolera-a como parte que é - depois do pecado original - da
condição humana.
E, no entanto, o seu
Coração, cheio de amor pelos homens, levou-O a tomar sobre os seus ombros,
juntamente com a Cruz, todas essas torturas: o nosso sofrimento, a nossa
tristeza, a nossa angústia, a nossa fome e sede de justiça.
A doutrina cristã sobre a
dor não é um programa de fáceis consolações.
Começa logo por ser uma
doutrina de aceitação do sofrimento, inseparável de toda a vida humana.
Não vos posso esconder - e
com alegria pois sempre preguei e procurei viver a verdade de que, onde está a
Cruz está Cristo, o Amor - que a dor apareceu muitas vezes na minha vida; e
mais de uma vez tive vontade de chorar.
Noutras ocasiões, senti
crescer em mim o desgosto pela injustiça e pelo mal.
E soube o que era a mágoa
de ver que nada podia fazer, que, apesar dos meus desejos e dos meus esforços,
não conseguia melhorar aquelas situações iníquas.
Quando vos falo de dor,
não vos falo apenas de teorias.
Nem me limito a recolher
uma experiência de outros, quando vos confirmo que, se sentis, diante da
realidade do sofrimento, que a vossa alma vacila algumas vezes, o remédio que
tendes é olhar para Cristo.
A cena do Calvário
proclama a todos que as aflições hão-de ser santificadas, se vivermos unidos à
Cruz.
Porque as nossas
tribulações, cristãmente vividas, se convertem em reparação, em desagravo, em
participação no destino e na vida de Jesus, que voluntariamente experimentou,
por amor aos homens, toda a espécie de dores, todo o género de tormentos.
Nasceu, viveu e morreu
pobre; foi atacado, insultado, difamado, caluniado e condenado injustamente;
conheceu a traição e o abandono dos discípulos; experimentou a solidão e as
amarguras do suplício e da morte.
Ainda agora, Cristo
continua a sofrer nos seus membros, na Humanidade inteira que povoa a Terra e
da qual Ele é Cabeça e Primogénito e Redentor.
A dor entra nos planos de
Deus.
Ainda que nos entendê-la,
é esta a realidade.
Também Jesus, como homem,
teve dificuldade em admiti-la: Pai, se é possível, afasta de Mim este cálice!
Não se faça, porém, a minha vontade, mas a tua!
Nesta tensão entre o
sofrimento e a aceitação da vontade do Pai, Jesus vai serenamente para a morte,
perdoando aos que O crucificaram.
Ora, esta aceitação
sobrenatural da dor pressupõe, por outro lado, a maior conquista.
Jesus, morrendo na Cruz,
venceu a morte. Deus tira da morte a vida. A atitude de um filho de Deus não é
a de quem se resigna à sua trágica desventura; é, sim, a satisfação de quem já
antegoza a vitória. Em nome desse amor vitorioso de Cristo, nós, os cristãos, devemos
lançar-nos por todos os caminhos da Terra, para sermos semeadores de paz e de
alegria, com a nossa palavra e nossas obras.
Temos de lutar - é uma
luta de paz - contra o mal, contra a injustiça, contra o pecado, para
proclamarmos assim que a actual condição humana não é a definitiva; o amor de
Deus, manifestado no Coração de Cristo, conseguirá o glorioso triunfo
espiritual dos homens.
(cont)