JESUS CRISTO NOSSO SALVADOR
Iniciação à Cristologia
SEGUNDA PARTE
A OBRA REDENTORA DE JESUS CRISTO
Capítulo X
A PAIXÃO E MORTE DE CRISTO E A NOSSA REDENÇÃO
1. O desígnio de Deus Pai sobre a paixão e Morte de
Cristo
a) O desígnio divino e a Morte de Cristo
A Morte de Jesus pertence ao misterioso
desígnio de Deus, como explica São Pedro: «foi entregue segundo determinado
desígnio e presciência de Deus» (Act 2,23). E assim também o dizem os primeiros
cristãos cheios do Espírito Santo: «Aliaram-se nesta cidade contra o teu santo
servo Jesus, que tu ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos com as nações gentias e
os povos de Israel (cf. Sal 2,1-2), para levar a cabo quanto o teu poder e a
tua sabedoria tinham previsto que ocorresse» (Act 4,27-28).
Na Morte de Jesus, acima das causas
históricas imediatas – o Sinédrio, Pilatos, os soldados – há uma causa de nível
mais alto que só pode ser conhecida pela revelação: o plano e a disposição de
Deus que permitiram os actos nascidos da cegueira dos homens para realizar o
desígnio da nossa salvação (cf. Act 3,17-18)[i].
b) Porquê a cruz, nos planos divinos?
Já dissemos que a salvação é uma
intervenção do amor misericordioso de Deus na situação humana de pecado, que
enviou o seu Filho para nos salvar por meio da sua Paixão e Morte. E porque
quis Deus a cruz de Cristo? Ainda que nos seja difícil responder essa pergunta,
tentemos ver algum ponto de luz neste mistério.
Deus
quer o homem se arrependa do seu pecado e expresse o seu arrependimento
interior com obras externas de penitência (como é próprio da condição
humana, composta de corpo e alma). Só assim pode tomar parte na Nova Aliança e
receber o perdão.
Para
demonstrar o amor a Deus e o arrependimento devemos renunciar ao «homem velho»,
ao desonrado amor por nós mesmos que nos levou a desobedecer a Deus. O homem
tem que manifestar este amor penitente com obras de entrega rendida à vontade
divina, e em primeiro lugar com a aceitação voluntária das penalidades que Deus
permite.
As
penas derivadas do pecado ordenam-se à reparação do mesmo. Deus não faz nem
quer o mal, nem a morte: «Acaso me comprazo eu na morte do malvado – palavra do
Senhor – e não antes que se converta da sua conduta e viva?» (Ez 18,23; cf. Sab
1,13). Deus ama tudo o que criou, e ama o pecador (cf. Rom 5,8; Jo 3,16).
Portanto, se Deus permite que o homem
experimente as penalidades derivadas do pecado, estas são remédios e ordenam-se
a um bem maior: a vida sobrenatural que é muito mais valiosa que a vida natural[ii].
Essas penas não constituem propriamente um castigo, nem são uma retribuição
directa pelo pecado de cada um (cf. Jo 9,2-3; Lc 13,1-5). No plano divino a dor
tem lugar para purificar a alma, para tirar o obstáculo da vontade própria que
nos afastou de Deus; serve, com a Judá da graça divina, para reparar a desordem
do pecado no homem: e isto é o que, em teologia, chama-se «satisfazer»[iii].
Mas nem todas as penas derivadas do pecado
servem para a restauração do homem, mas só as que afectam bens temporais e
corporais[iv].
E a principal pena satisfatória devida ao pecado comum da humanidade é a morte,
á qual se ordenam e em que se consumam todas as penas físicas: «o salário do
pecado é a morte» (Rom 6,23)[v].
A
reparação plena dos pecados do género humano dá-se pela Paixão e Morte de
Cristo. Deus dispôs que a satisfação pelo pecado do género humano fosse
completa, enquanto devia tirar o pecado e todas as suas consequências, e
enquanto devia afectar todos os homens. Já vimos no capítulo VII que ninguém
pode reparar o pecado por si mesmo sem a graça, e ainda que com ela, nenhum
homem podia reparar o pecado de toda a humanidade.
Assim
pois, Cristo, como novo Adão e Cabeça do género humano, livremente e por amor
assumiu o sofrimento derivado do pecado comum até à sua culminação na morte:
Ele emendou e substituiu a desobediência de Adão com o seu amor e a sua
obediência, e sofreu a morte para reparar a desordem introduzida em todos os
homens pelo pecado original.
c) Deus Pai não é causa directa da Morte do seu
Filho; somente a permite
Poderia parecer que Deus Pai fora a causa
ou o autor da Paixão e Morte de Cristo, já que na revelação divina se afirma
que «não pedrou o seu próprio Filho, antes o entregou por nós» (Rom 8,32). Mas
realmente o Pai é só a sua causa indirecta ou permissiva: não quer a sua mote,
nem muito menos a causa, antes a tolera.
Se a permitiu, ainda que não a causasse, é
porque daí proviria um bem maior. Mas é imaginável algo melhor que a vida
corporal do seu Filho? A resposta é um mistério que de todo não podemos
compreender, sobretudo se o olhamos com uma visão simplesmente humana. Todavia,
com a cruz da fé podemos entrever que a glória e a exaltação de Cristo que se
seguiu á sua morte são muito mais valiosas que os sofrimentos que padeceu (cf.
Lc 24,26; Flp 2,8-11). E também podemos admirar neste mistério o valor imenso
que a salvação das almas tem para Deus.
Então, em que sentido se pode dizer que o
Pai entregou o seu Filho por nós? Podemos dizer que o Pai entregou Cristo à
Paixão e Morte porque segundo a sua eterna vontade dispôs a Paixão para reparar
os pecados do género humano; também, enchendo Jesus de caridade, o inspirou a
vontade de padecer por nós; e, em terceiro lugar, porque na Paixão não o
protegeu, podendo, dos perseguidores.
2. Os autores da Paixão e Morte de Cristo
Os autores da paixão de Cristo – sua causa
eficiente – são os que tinham a intenção de o matar e o fizeram sofrer os
tormentos que produziram a sua morte[vi].
E estes foram Judas, o Sinédrio, Pilatos, etc. E a Escritura acrescenta que por
detrás de todos eles actua Satanás, príncipe das trevas, que é homicida desde o
princípio (cf. Jo 8,44).
Os
falsos motivos que os judeus aduziam para o rejeitar foram principalmente,
como assinala muito bem o Catecismo da Igreja Católica: o valor da Lei de
Moisés, o sentido do templo de Jerusalém, e a declaração de Jesus de ser Filho
de Deus[vii].
A
responsabilidade subjectiva de cada um dos autores da Paixão só Deus a
conhece, e, além disso, temos de ter presente que Jesus pediu perdão para eles.
Todavia, podemos assinalar algumas situações objectivamente diferentes:
- Judas,
o traidor, um dos Doze, um dos amigos íntimos do Mestre, que conhecia bem a sua
vida e doutrina e o entregou aos judeus: a sua culpa é gravíssima.
- As
autoridades judias, o Sinédrio, tiveram a informação suficiente para saber que
Jesus era o Messias prometido e rejeitaram-no[viii].
Certamente alguns deles acreditaram em Cristo (como Nicodemos e José de
Arimateia), mas a maioria, por ódio e inveja (cf. Jo 15,24; Mt 27,18), não
acreditou n’Ele, declaram-no réu de morte, e forçaram Pilatos para que o
crucificasse. Na Escritura reconhece-se que tiveram alguma ignorância, mas
também se diz que não tiveram desculpa do seu pecado[ix]:
Deus saberá calibrar a sua culpa.
- Pilatos
pecou condenando o justo por temor mundano a César (Jo 19,12-16), ainda que
como disse Jesus: «Os que me entregaram a ti têm maior pecado» (Jo 19,11). A
culpa do Procurador foi menor, pois não conhecia que Jesus era o Messias o
Filho de Deus.
-A
multidão dos judeus, que pediu a gritos a crucifixão do Senhor (cf. 15,11) e
ratificou e aprovou a sua condenação por Pilatos (cf. Mt 27,25), tinha um
conhecimento menor que os seus chefes e, além do mais, foi guiada e manipulada
pelas autoridades legítimas do seu povo: por isso, a sua culpa, foi menor.
-
Todavia, como o Concílio Vaticano II assinala: «Ainda que as autoridades dos
judeus com os seus seguidores reclamassem a morte de Cristo o que se perpetuou
na sua Paixão não pode ser imputado indistintamente a todos os judeus que
viviam então nem aos judeus de hoje (…) Não se há-de assinalar os judeus como
reprovados por Deus e malditos como se tal coisa se deduzisse da Sagrada
Escritura»[x].
(cont)
Vicente
Ferrer Barriendos
(Tradução do castelhano por ama)
[ii] Torna-se sempre
difícil encontrar uma resposta para a dor, mas é impossível a quem considera
como valores supremos os bens materiais (por exemplo, a saúde e o bem-estar
material). Sem uma visão de fé o homem não pode entender que a possessão da
vida eterna vale muito mais que ganhar todo o mundo.
[iii] CF. CONC. DE
TRENTO, DS, 1690; CCE, 1472, 1459.
[iv] Os defeitos morais,
que também drivam do pecado (a privação da graça, a ignorância, a desordem
moral, etc.), não servem para reparar ao homem caído mas antes são
impedimentos; mais, são parte da desordem que há que eliminar (cf. S. TOMÁS DE
AQUINO, S. Th. III,14,1; III,46,4, ad 2; Compendium theologiae, cap 226, nn. 471-474).
[v] Cf. 1 Cor 15,56; CCE, 602; S. TOMÁS DE AQUINO, S. Th. III,14,1; III,46,4, ad 2; Compendium theologiae, cap 227, n. 475).
[vi] Convém ter em conta
que quando a Sagrada Escritura diz que Jesus morreu «por nós» ou «por todos»
(cf. Rom 5,8; 2 Cor 5,15) ou «pelos nossos pecados» (cf. 1 Cor 15,3; Gal 1,4),
expressa o motivo que teve a morte de Cristo, ou seja, a «causa final» da sua
Paixão, que é a salvação dos homens e a libertação do pecado, como vimos no
capítulo II. E quando diz que padeceu e foi reprovado «pelos judeus» (cf. Lc
9,22; 17,25), expressa quem foram os autores desses padecimentos, quer dizer, a
«causa eficiente» da sua Paixão, constituída pelos que o crucificaram, seus
executores.
[viii] Cf. A parábola dos
vinhateiros infiéis de Lc 20,9-19, ou a proposta de Caifás de Jo 11,49-50.
[ix] Por um lado tiveram
ignorância, pois o próprio Jesus disse: «Pai, perdoai-lhes porque não sabem o
que fazem» (Lc 23,34; cf. Act 3,17). Mas por outro lado foram culpados, como
também o Senhor assinala: «Não têm desculpa do seu pecado (…) Se não tivesse
feito entre eles obras que nenhum outro fez, não teriam pecado; mas agora não
só viram, como me aborreceram a mim e a meu Pai» (Jo 15,22-24).
[x] CONC. VATICANOII, Nostra aetate,