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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO X
CAPÍTULO XXIII
Erro de que está inquinada a doutrina de Orígenes.
Mas o que é muito mais de admirar é que — mesmo crendo, como nós, num princípio
único de todas as coisas e na impossibilidade, para toda a natureza que não
seja Deus, de ter outro criador que não seja Ele — alguns, todavia, não se têm
conformado em crer recta e simplesmente nesta causa da criação do Mundo tão boa
e tão simples, ou seja: que um Deus bom criou as coisas boas e que, fora de Deus,
as coisas, que não são o que Deus é, mas são boas, só um Deus bom as poderia
fazer. Dizem que as almas, que não são parte de Deus mas feitas por Deus, pecaram, separando-se do criador; e que, descendo por etapas diversas, conforme a diversidade dos pecados, desde os Céus até à Terra mereceram diversos corpos como prisões. Isto é que é o Mundo, e a causa da sua criação não é a produção de bens, mas a repressão de males.
Disto é acusado justificadamente Orígenes. Nos livros a que deu o nome de Acerca dos Princípios, é assim que pensa e escreve.
E admiro-me, mais do que poderia dizê-lo, que um homem tão sábio, tão versado
nas letras eclesiásticas, não tenha notado, primeiro que tudo, quanto isso é contrário ao pensamento tão autorizado da Escritura
que, a seguir a cada obra de Deus, repete:
E Deus viu que era bom,[i]
e, acabado tudo, conclui:
E Deus viu que tudo o que fez era muito bom,[ii]
querendo mostrar que não há outra
causa da criação senão um Deus bom que fez seres bons. Se ninguém tivesse pecado, o Mundo estaria ornado e cheio só de naturezas boas; e, lá porque se pecou, nem por isso tudo ficou cheio de pecado — pois, entre os celestiais, um número muito maior de bons conservou a ordem da sua natureza. Nem a própria vontade má, pelo facto de não querer observar a ordem da natureza, pôde evitar as leis de Deus justo que ordena convenientemente todas as coisas. Porque, tal como um quadro de cores sombrias distribuídas nos seus devidos lugares, assim também o conjunto das coisas, se alguém o puder abarcar com um só olhar, se mantém belo, mesmo com os pecadores, embora estes, encarados separadamente, apareçam desfeados devido à sua deformidade.
Orígenes e os que assim pensam deveriam ver que, se tal opinião fosse verdadeira, o Mundo teria sido feito para dar às almas, conforme a gravidade dos seus pecados, corpos onde seriam
encerradas para seu castigo com o numa
prisão: às menos culpadas — corpos mais leves e mais elevados; às mais culpadas
— corpos mais pesados e mais baixos; e os demónios — porque nada há de mais
detestável do que eles — teriam que receber, por mais razão que os
homens bons, corpos de terra, que são os mais baixos e os mais pesados de todos. Mas, na realidade, para que compreendamos que não se
devem avaliar os méritos da alma pelas qualidades do corpo, o demónio, o pior dos seres, recebeu um corpo aéreo; ao passo que o homem, que agora é, sem dúvida, culpado, mas de malícia de bem menor importância, e em todo o caso antes de pecar, o homem recebeu, todavia, um corpo de barro.
Haverá alguma coisa mais insensata do que dizer que só há um Sol no Mundo, não porque o artífice Deus o fez na intenção de embelezar o Mundo ou ainda na de prover ao bem estar dos seres corporais, mas antes que isto aconteceu por uma alma ter
pecado de forma a merecer ser encerrada num tal corpo? Mas, se tivesse acontecido diferentemente, não que um
a só, mas duas, não duas mas dez ou cem, tivessem cometido o mesmo pecado, este Mundo teria cem sóis? Não foi, então, a admirável providência do artífice que promoveu o bom estado e a beleza dos seres corporais: foi antes o grau de pecado de uma só alma que
lhe valeu merecer tal corpo. Não é, com certeza, a progressão das almas (acerca
das quais eles não sabem o que dizem) no afastamento da verdade e do mérito que tem que ser reprimida, mas antes o desvario desses que tais coisas chegam a pensar.
Quando, pois, a propósito de cada criatura, se põem as três questões acima referidas: quem a fez?, por que meio? e porque a fez? — haverá que responder: Fê-la Deus, pelo Seu Verbo, porque ela é boa. Mas estas respostas não insinuarão elas, nas suas
misteriosas profundezas, a própria Trindade, isto é, o Pai, o Filho, o Espírito
Santo? Verifica-se nesta passagem das Escrituras algum a coisa que impeça esta
interpretação? E esta um a questão que demoraria muito a expor e não se pode
exigir que tudo se expliquenum só livro.
CAPÍTULO XXIV
Acerca da Trindade divina que, em todas as suas obras, deixou sinais que a
revelam.
Nós cremos, mantemos e pregamos com fidelidade que o Pai gerou o Verbo, isto é, a Sabedoria pela qual tudo foi feito, seu Filho único: que Ele, o Uno, gerou o Único, o Eterno, o Coeterno, o soberanamente bom, o igualmente bom; e que o Espírito Santo é simultaneamente o Espírito do Pai e do
Filho, Ele mesmo consubstanciai e coeterno a ambos; que tudo isto é Trindade
por causa da propriedade de pessoas e Deus único por causa da sua inseparável
divindade, assim com o é único O omnipotente por causa da sua inseparável
omnipotência. De tal maneira, porém, que, se alguém se interrogar acerca de cada um, deve contentar-se em saber que cada um é omnipotente; e se se interrogar acerca dos três conjuntam ente, a resposta
será que não há três deuses ou três omnipotentes, mas um só Deus omnipotente,
tão grande é na sua Trindade a
inseparável unidade que desta maneira se quis manifestar.
Se o Espírito Santo do Pai bom e do Filho bom, porque é com um a ambos, se
poderá chamar com correcção bondade de ambos — é questão acerca da qual não me
atrevo a emitir uma opinião temerária. Mas o que não tenho medo de dizer é que
o Espírito Santo é a santidade das duas outras Pessoas, não como qualidade de
uma e de outra, mas como sendo ele também substância e na Trindade. O que mais
provavelmente me leva a esta opinião é o seguinte: o Pai é espírito e o Filho é
espírito, o Pai é santo e o Filho é santo — todavia, o Espírito Santo é que é
propriamente assim chamado como sendo a Santidade substancial e consubstanciai
de ambos. Mas se a bondade divina se identifica com a santidade, já não será
uma audaciosa presunção, mas exercício atento da razão, ver nas obras de Deus,
sob uma forma misteriosa de falar destinada a despertar a nossa atenção, esta
mesma Trindade insinuada pela tríplice questão acerca de cada criatura: Quem
a fez?, Por que meios a fez? E Porque é que a fez?. Realmente, foi o
Pai do Verbo quem disse Faça-se! E o que à sua palavra se fez, foi, sem
dúvida,pelo Verbo que se fez. Finalmente, a frase Deus viu que era bom exprime bem que Deus sem necessidade alguma, sem a menor busca de proveito pessoal, mas apenas por suabondade fez o que fez, isto é — porque é bom! E se a obra é declarada boa depois da sua criação, é para mostrar que ela está de harmonia com a bondade, razão da sua criação. Mas se esta Bondade designa precisam ente o Espírito Santo, é a Trindade toda que se nos revela nas suas obras. E é dela que a Cidade Santa, a cidade constituída nas alturas pelos santos anjos, tira a sua origem, a sua forma e a sua beatitude. Na verdade, se se perguntar donde vem
— diremos: foi Deus que a fundou; donde provém a sua sabedoria
— diremos: é Deus que a ilumina; donde provém a sua felicidade
— diremos: é de Deus que ela goza!
Subsistindo n ’Ele, tem a sua forma; contemplando-o, tem a sua luz; unindo-se a Ele, tem a sua alegria. Ela é, vive, ama; na eternidade de Deus ela prospera, brilha na verdade de Deus, regozija-se na sua bondade!
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)