10/08/2014

Aprendei a fazer o bem

Quando estiveres com uma pessoa, tens de ver nela uma alma: uma alma que é preciso ajudar, que é preciso compreender, com quem é preciso conviver e que é preciso salvar. (Forja, 573)

Agrada-me citar umas palavras que o Espírito Santo nos comunica pela boca do profeta Isaías: discite benefacere, aprendei a fazer o bem. (...)

A caridade para com o próximo é uma manifestação do amor a Deus. Por isso, ao esforçarmo-nos por melhorar nesta virtude, não podemos fixar nenhum limite. Com o Senhor, a única medida é amar sem medida, pois, por um lado jamais chegaremos a agradecer suficientemente o que Ele tem feito por nós e, por outro, assim se revela o mesmo amor de Deus às suas criaturas: com excesso, sem cálculo, sem fronteiras.


A misericórdia não se limita a uma simples atitude de compaixão; a misericórdia identifica-se com a superabundância da caridade que, ao mesmo tempo, traz consigo a superabundância da justiça. Misericórdia significa manter o coração em carne viva, humana e divinamente repassado por um amor rijo, sacrificado e generoso. (Amigos de Deus, 232)

Temas para meditar 201


Batalha espiritual


Não te esqueças, meu amigo, que necessitas de armas para vencer nesta batalha espiritual (luta contra a tentação). E que as tuas armas hão-de ser estas: oração contínua; sinceridade e franqueza com o teu director espiritual; a Santíssima Eucaristia e o Sacramento da Penitência; um generoso espírito cristão de mortificação que te levará a fugir das ocasiões e evitar o ócio; a humildade do coração, e uma terna e filial devoção à Virgem: Consolatrix afflictorum et Refugium paccatorum. Volta sempre a Ela confiadamente e diz-Lhe: Mater mea, fiducia mea


(s. canalsAscética Meditada, 14ª ed., Madrid 1980, pg. 128, trad ama)

Tratado da lei 80

Questão 106: Da lei do Evangelho, chamada nova, considerada em si mesma.

Art. 2. — Se a lei nova justifica.

O segundo discute-se assim. — Parece que a lei nova não justifica.

1. — Pois, ninguém se justifica sem obedecer à lei de Deus, conforme a Escritura (Heb 5, 9): Cristo veio a fazer-se autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem. Ora, o Evangelho nem sempre consegue que todos lhe obedeçam, consoante a Escritura (Rm 10, 16): Nem todos obedecem ao Evangelho. Logo, a lei nova não justifica.

2. Demais. — O Apóstolo prova que a lei antiga não justificava, pois, na vigência dela, aumentou a prevaricação. Assim, diz (Rm 4, 15): A lei obra ira, porquanto onde não há lei não há transgressão. Ora, a lei nova é causa de muitas outras prevaricações, pois é digno de maior pena quem ainda peca, no regime da lei nova, conforme a Escritura (Heb 10, 28-29): Se alguém quebranta a lei de Moisés, sendo-lhe provado com duas ou três testemunhas, morre sem dele se ter comiseração alguma, pois, quanto maiores tormentos credes vós que merece o que pisar aos pés ao Filho de Deus? etc. Logo, como a antiga, também a lei nova não justifica.

3. Demais. — Justificar é efeito próprio de Deus, conforme a Escritura (Rm 8, 33): Deus é o que justifica. Ora, tanto a lei antiga como a nova foram dadas por Deus. Logo, esta não justifica, mais que aquela.

Mas, em contrário diz o Apóstolo (Rm 1, 16): Eu não me envergonho do Evangelho, porquanto a virtude de Deus é para dar a salvação a todo o que crê. Logo só há salvação para os justificados. Logo, a lei do Evangelho justifica.

Como já dissemos (a. 1), a lei do Evangelho encerra duas coisas. — Uma principal, que é a graça do Espírito Santo dada interiormente. E neste respeito, a lei nova justifica. Por isso, Agostinho diz: Lá, i. é, no Antigo Testamento, a lei foi posta extrinsecamente, para que os injustos se aterrorizassem, aqui, i. é, no Novo Testamento, foi dada intrinsecamente, para que se justificassem — Secundariamente, pertencem à lei do Evangelho os ensinamentos da fé e os preceitos, que ordenam os afectos e os actos humanos. E neste respeito, a lei nova não justifica. Por isso o Apóstolo diz (2 Cor 3, 6): A letra mata e o espírito vivifica. E como expõe Agostinho, pela letra entende-se qualquer escritura existente independentemente dos homens, mesmo a dos preceitos morais, tais como estão contidos no Evangelho. Donde, mesmo a letra do Evangelho mataria se não existisse interiormente a graça, que salva.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A objecção colhe, quanto à lei nova, não quanto ao que nela é principal, senão quanto ao secundário. Isto é, quanto aos ensinamentos e preceitos extrinsecamente dados ao homem, por escrito ou verbalmente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A graça do Novo Testamento, embora ajude o homem a não pecar, todavia não o confirma no bem, de modo a não poder mais pecar, pois isto é próprio do estado da glória. Donde, quem pecar, depois de ter recebido a graça do Novo Testamento, é digno de maior pena, como ingrato a maiores benefícios e como não tendo usado do auxílio que lhe foi dado. Mas nem por isso se diz que a lei nova produz a ira, pois em si mesma dá auxílio suficiente para o homem não pecar.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O mesmo Deus deu a lei nova e a antiga, mas diferentemente. Pois, a antiga deu-a escrita em tábuas de pedra, a nova, porém, em tábuas de carne do coração. Donde, diz Agostinho: O Apóstolo denomina essa lei literal, escrita fora do homem, transmissora da morte e da condenação. Ao passo que à lei do Novo Testamento a considera transmissora do espírito e da justiça. Porque, pelo dom do Espírito, praticamos a justiça e nos livramos de ser condenados por prevaricação.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evang.; Coment.; Leit. Esp. (Magistério - Ratzinguer)

Tempo comum XIX Semana

Evangelho: Mt 14, 22-33

22 Imediatamente Jesus obrigou os Seus discípulos a subir para a barca e a passarem antes d'Ele à outra margem do lago, enquanto despedia a multidão. 23 Despedida esta, subiu a um monte para orar a sós. Quando chegou a noite, achava-Se ali só. 24 Entretanto a barca no meio do mar era batida pelas ondas, porque o vento era contrário. 25 Ora, na quarta vigília da noite, Jesus foi ter com eles, andando sobre o mar. 26 Os discípulos, quando O viram andar sobre o mar, assustaram-se e disseram: «É um fantasma». E, com medo, começaram a gritar. 27 Mas Jesus falou-lhes imediatamente dizendo: «Tende confiança: sou Eu, não temais». 28 Pedro, tomando a palavra, disse: «Senhor, se és Tu, manda-me ir até onde estás por sobre as águas». 29 Ele disse: «Vem!». Descendo Pedro da barca, caminhava sobre as águas para ir ter com Jesus. 30 Vendo, porém, que o vento era forte, teve medo e, começando a afundar-se, gritou, dizendo: «Senhor salva-me!». 31 Imediatamente Jesus, estendendo a mão, segurou-o e disse-lhe: «Homem de pouca fé, porque duvidaste?». 32 Depois que subiram para a barca, o vento cessou. 33 Os que estavam na barca prostraram-se diante d'Ele, dizendo: «Verdadeiramente Tu és o Filho de Deus».

Comentário:

Quantas vezes, a nós nos sucede como a Pedro!
Vamos, entusiasmados, ao encontro de Cristo sem olhar a obstáculos ou dificuldades e, de repente, como que se abrem os olhos à realidade que nos cerca e temos medo!

É natural, somos humanos!

Mas, quando olhamos em frente e vemos a figura do Senhor, amável expectante, com os braços estendidos na nossa direcção e nos olhos o convite: Vem!; as nossas dúvidas e receios como que se esfumam e desaparecem, ganhamos confiança e alento e prosseguimos o nosso caminhar em direcção Àquele que nos espera.

(ama, comentário sobre Mt 14, 22-33, 2014.05.26)

Leitura espiritual




Magistério

cardeal joseph ratzinger

Algumas perguntas pessoais

…/2

Jesus Cristo


Cristo presente na História. Pergunto-me se um homem moderno pode crer, crer verdadeiramente, que Jesus de Nazaré é Deus feito homem. Isso é experimentado como um absurdo.

Certo; para um homem moderno, é uma coisa quase impensável, quase absurda, que facilmente se atribui ao pensamento mitológico de um tempo passado que já não seria aceitável. A distância histórica torna mais difícil pensar que um indivíduo que viveu num tempo distante possa estar presente agora, para mim, e que seja a resposta às minhas perguntas.

Parece-me importante observar que Cristo não é um indivíduo do passado, distante de mim, mas criou um caminho de luz que invade a História. Esse caminho começou com os primeiros mártires, com essas testemunhas que transformaram o pensamento humano, que compreenderam a dignidade humana do escravo, que se ocuparam dos pobres, dos que sofrem, e assim trouxeram uma novidade ao mundo, também pelo seu sofrimento; depois, com os grandes doutores que transformaram a sabedoria dos gregos, dos latinos, numa nova visão do mundo que, inspirada precisamente em Cristo, encontrou em Cristo a luz para interpretar o mundo; enfim, com figuras como São Francisco de Assis, que criou o novo humanismo, ou ainda com figuras do nosso tempo: pensemos na Madre Teresa [de Calcutá], em Maximiliano Kolbe...

É um caminho de luz ininterrupto que abre passagem na História, e uma ininterrupta presença de Cristo. Parece-me que este facto - de que Cristo não ficou no passado, mas foi sempre contemporâneo de todas as gerações e criou uma nova História, uma nova luz na História, na qual está presente e é sempre contemporâneo - leva a entender que não se trata de uma grande personalidade histórica qualquer, mas de uma realidade verdadeiramente Outra, que sempre traz luz. Assim, associando-nos a esta História, [...] não entramos em relação com uma pessoa distante, mas com uma realidade presente[i].

Jesus Cristo, o infinito no finito.

Por que é que, na sua opinião, um homem de 2003 precisaria de Cristo?

É fácil perceber que as coisas proporcionadas por um mundo meramente material – ou mesmo intelectual - não atendem à necessidade mais profunda, mais radical, que existe em todo o homem: porque - como dizem os Padres da Igreja - o homem anseia pelo infinito. Parece-me que precisamente o nosso tempo, com as suas contradições, os seus desesperos, o seu massivo empenho em refugiar-se em becos sem saída como a droga, manifesta visivelmente essa sede do infinito, e apenas um amor infinito que, apesar de tudo, penetrasse na finitude, convertendo-se directamente num homem como eu [ou seja: Cristo], poderia ser a resposta.

É certamente um paradoxo que Deus, o Imenso, tenha entrado no mundo finito como uma pessoa humana. Mas é precisamente a resposta de que necessitamos: uma resposta infinita que, mesmo assim, se torna aceitável e acessível para mim, "acabando" numa pessoa humana que, no entanto, é o Infinito [ii].

Advento.

O Advento significa a presença iniciada do próprio Deus. Por isso, recorda- nos duas coisas: primeiro, que a presença de Deus no mundo já começou, e que Ele já está presente de uma maneira oculta; em segundo lugar, que essa presença de Deus acaba de começar, ainda não é total, mas está em processo de crescimento e maturação.

A sua presença já começou, e somos nós, os seus fiéis, que, por sua vontade, devemos torná-lo presente no mundo. É por meio da nossa fé, esperança e amor que Ele quer fazer brilhar a luz de forma contínua na noite do mundo. Assim, as luzes que acendermos nas noites escuras do inverno serão ao mesmo tempo consolo e advertência: certeza consoladora de que "a luz do mundo" já se acendeu na noite escura de Belém e transformou a noite do pecado humano na noite santa do perdão divino; e, por outro lado, a consciência de que essa luz só pode - e só quer - continuar a brilhar se for sustentada por aqueles que, por serem cristãos, continuam através dos tempos a obra de Cristo.

A luz de Cristo quer iluminar a noite do mundo através da luz que somos nós; a sua presença já iniciada deve continuar a crescer por nosso intermédio. Quando, na Noite Santa, ressoar uma e outra vez o hino Hodie Christus natus est, devemos lembrar-nos de que o começo que se deu em Belém há-de ser em nós um começo permanente, que aquela noite santa volta a ser um "hoje" cada vez que um homem permite que a luz do bem faça desaparecer nele as trevas do egoísmo [...]. O Menino-Deus nasce onde se actua por inspiração do amor do Senhor, onde se faz algo mais do que trocar presentes.

Advento significa presença de Deus já começada, mas também apenas começada. Isto implica que o cristão não olha somente para o que já foi e já passou, mas também para o que está por vir. No meio de todas as desgraças do mundo, tem a certeza de que a semente da luz continua a crescer oculta, até que um dia o bem triunfará definitivamente e tudo lhe estará submetido: no dia em que Cristo voltar. O cristão sabe que a presença de Deus, que acaba de começar, um dia será presença total. E essa certeza torna-o livre, presta-lhe um apoio definitivo [iii].

Amizade com Cristo.

O Senhor dirige-nos estas palavras maravilhosas: Já não vos chamo servos... mas chamei-vos amigos (Jo 15, 15). Quantas vezes não sentimos que somos - e é verdade - apenas servos inúteis! (cfr. Lc 17, 10). E, apesar disso, o Senhor chama-nos amigos, faz-nos seus amigos, dá-nos a sua amizade. O Senhor define a amizade de uma dupla maneira.

[A primeira é que] não existem segredos entre amigos: Cristo diz-nos tudo quanto escuta do Pai; dá-nos toda a sua confiança e, com a confiança, também o conhecimento.

Revela-nos o seu rosto, o seu coração. Mostra-nos a sua ternura por nós, o seu amor apaixonado que vai até à loucura da Cruz. Confia-se a nós, dá-nos o poder de falar com o seu Eu: Isto é o meu Corpo..., Eu te absolvo... Confia-nos o seu Corpo místico, a Igreja. Confia às nossas fracas mentes, às nossas fracas mãos, a sua Verdade - o mistério de Deus Pai, Filho e Espírito Santo; o mistério de Deus que tanto amou o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito (Jo 3, 16). Fez de nós seus amigos [...].

O segundo elemento com que Jesus define a amizade é a comunhão das vontades. Idem velle - idem nolle [querer o mesmo, não querer o mesmo, isto é, ter os mesmos gostos e repulsas], era também para os romanos a definição da amizade. Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que vos mando (Jo 15, 14). A amizade com Cristo coincide com aquilo que o terceiro pedido do Pai-Nosso exprime: Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu. Na hora do Getsémani, Jesus transformou a nossa vontade humana rebelde em vontade conforme e unida à vontade divina. Sofreu todo o drama da nossa autonomia - e é exatamente pondo a nossa vontade nas mãos de Deus, que nos dá a verdadeira liberdade: Não se faça como eu quero, mas como Tu queres (Mt 26, 39).

Nessa comunhão das vontades, realiza-se a nossa Redenção: sermos amigos de Jesus, tornar-mo-nos amigos de Deus. Quanto mais amamos Jesus, tanto mais o conhecemos, tanto mais cresce a nossa verdadeira liberdade, cresce a alegria de sermos redimidos.

Obrigado, Jesus, pela tua amizade! [iv]


Sentido moral da vida


Cristianismo e moralismo. O cristianismo não é moralismo. O cristianismo é a realidade da história comum a Deus e ao homem. Nessa história, em que predomina o dom de Deus, nós aprendemos a agir como homens. [...] Deste modo, [a moral] converte-se em algo muito simples: é amizade com o Senhor, é viver e caminhar com Ele. Tudo isso se resume no duplo amor de Deus e do homem: essa é a síntese de toda a moral. O resto é interpretação e explicação [v].

Sentido da vida.

Se contemplarmos à distância a vida do ser humano, que é? Será que o transcurso da vida de todos nós está traçado há muito tempo?

Em primeiro lugar, a vida é uma realidade biológica. No ser humano, é preciso acrescentar um novo nível: o do espírito que vive e vivifica. O espírito funde-se com a existência biológica, conferindo à vida outra dimensão. Além disso, a fé cristã está convencida da existência de outro nível ainda, concretamente o do encontro com Cristo. Podemos, pressenti-lo já no processo do amor humano: sempre que sou amado, penetro espiritualmente, através do tu do outro, num novo nível. Algo semelhante acontece quando, através de Cristo, o próprio Deus se volta para mim, convertendo a minha vida numa convivência com a vida primigênia criadora.

Quer dizer que a vida tem múltiplas etapas...

E alcança-se a mais alta quando se converte em convivência com Deus. É precisamente aqui que radica a audácia da aventura humana. A pessoa pode e deve ser a síntese de todas essas etapas da criação. Pode e deve chegar até o Deus vivo e devolver-lhe o que recebeu dEle. [...]

É importante que a vida percorra essas distintas etapas. Nas superiores, alcança-se finalmente a eternidade através da morte, pois a morte é o destino necessário de toda a vida meramente orgânica [vi].

Liberdade e destino.

Para os muçulmanos, o destino está predeterminado por Deus e o homem vive numa espécie de rede que limita em grande medida os seus movimentos. A fé cristã, pelo contrário, conta com o factor liberdade. Isto significa que, para o cristão. Deus, por um lado, abarca tudo, sabe tudo, guia o curso da História, mas, por outro lado, dispôs as coisas de tal modo que a liberdade encontra o seu lugar. Em resumo, para mim, cristão, Deus tem a História nas suas mãos, mas dá-me a liberdade de entregar-me completamente ao seu amor, ou de rejeitá-lo [vii].

Liberdade e predestinação. O factor liberdade entra na dinâmica de cada existência, e esse factor opõe-se à predestinação absoluta. Na concepção cristã de Deus, não existe uma fixação rígida para a vida. Porque esse Deus é tão grande e tão dono de tudo, e é por natureza tão amante da liberdade, que pode introduzir a autodeterminação na vida do ser humano. Embora sempre mantenha nas suas mãos a vida dessa pessoa, e a abarque e sustente, a liberdade não é pura ficção. Chega tão longe que o ser humano pode arruinar até o projeto divino [viii].


Liberdade e providência.

O senhor usa muitas vezes a palavra Providência. Que significado tem para o senhor?

Creio firmemente que Deus de facto nos vê e nos deixa a liberdade e que, contudo, também nos conduz. Muitas vezes podemos ver que certas coisas, que a princípio nos pareciam aborrecidas, perigosas, desagradáveis, vêm depois a fazer sentido. De repente, verifica-se que foi bom assim, que foi um caminho certo. Para mim, na prática, isto significa que a minha vida não é composta de acasos, mas que Alguém prevê e anda por assim dizer, na minha frente, antecipa-se aos meus pensamentos e prepara a minha vida.

Posso recusar, mas também posso aceitar, e então percebo que realmente sou conduzido por uma luz "providencial".

No entanto, isto não significa que o homem seja completamente determinado, mas sim que o seu destino é precisamente um desafio à sua liberdade. Como se diz na parábola dos talentos, quem os recebe tem uma tarefa determinada, mas pode executá-la de um modo ou de outro. Em todo o caso, cada um tem a sua missão, o seu dom especial, ninguém é supérfluo, ninguém existe em vão. Cada um tem de procurar perceber qual é a sua vocação, e como responder melhor ao apelo que lhe é feito [ix].

Verdade e bem.

O papa João Paulo II insistiu diversas vezes na validade desta advertência de Pio XII: "O grande pecado do mundo contemporâneo é ter perdido a noção de pecado". Com efeito, parece que o sentido da liberdade, tão aguçado no homem contemporâneo, o compele a conhecer e a experimentar tudo indiscriminadamente. À luz disso, que se poderia comentar sobre este pensamento de Simone Weil: "Só fazemos a experiência do bem quando o praticamos. Quando fazemos
o mal, não o conhecemos, porque o mal detesta a luz"?

Penso que essa palavra de Simone Weil é fundamental. O bem e a verdade são inseparáveis entre si. É um facto que só fazemos o bem quando estamos em harmonia com a lógica interna da realidade e do nosso próprio ser. Agimos bem quando o sentido da nossa ação é congruente com o sentido do nosso ser, isto é, quando encontramos a verdade e a realizamos. Em consequência, fazer o bem conduz necessariamente ao conhecimento da verdade. Quem não faz o bem, cega-se também para a verdade.

Inversamente, o mal é gerado pelo enfrentamento do meu eu com a exigência do ser, da realidade; isto é, pelo abandono da verdade. É por isso que fazer o mal não conduz ao conhecimento, mas à ofuscação. Já não posso - nem quero - ver o que é mau; o sentido do bem e do mal fica embotado. Por isso o Senhor diz que o Espírito Santo admoestará o mundo quanto ao pecado (Jo 16, 8): na sua qualidade de Espírito de Deus, deixa claro o que é o pecado; somente Ele, que é todo luz, pode reconhecer o que o pecado significa e conduzir assim os homens à verdade. Falando disto mesmo, São Paulo diz: O homem
espiritual - aquele que vive no Espírito Santo - tudo compreende (1 Cor 2, 15). A comunhão com o bem, com o Espírito Santo, é a mais profunda de todas as experiências possíveis e, em consequência, proporciona-nos a pauta para uma compreensão que chega ao núcleo da realidade [x].

Dignidade e natureza humanas. A Encíclica [Veritatis Splendor] insiste muito decididamente em que a moral não é questão de acordos, pois nesse caso estaria submetida ao jogo das maiorias. A moral baseia-se antes na ordem interna da própria realidade: a criação a traz em si. Estamos voltando a enxergar esta verdade nos urgentes problemas ecológicos. Tornamos a perceber que não devemos fazer tudo o que podemos fazer. Comprovamos que devemos respeitar a dignidade das criaturas. E, com mais razão, devemos voltar a compreender também que justamente o ser humano traz em si uma dignidade e uma missão interiores que são permanentes, apesar de todas as mudanças históricas. O homem é sempre homem. A sua dignidade essencial é sempre a mesma. Por isso, há comportamentos que nunca poderão chegar a ser bons, mas sempre serão incompatíveis com o respeito pelo homem e com a dignidade que lhe vem de Deus, e que ele traz dentro de si.

O Papa [João Paulo II] mostrou com grande poder de persuasão que o problema fundamental do nosso tempo é um problema moral. Os problemas económicos, sociais e políticos continuarão a ser insolúveis se não se encarar esta realidade central. E o Papa demonstra que o problema moral não pode ser separado da questão da verdade. Esta, por sua vez, está indissoluvelmente unida ao problema da busca de Deus [xi].

(cont.)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Entrevista a António Socci, em Il Giornale, 26.11.2003
[ii] Ibid
[iii] Licht, das uns leuchtet. Besinnungen zu Advent und Weihnachten, 5a- ed., Herder, Friburgo, 1978; trad. cast. Sentido del Adviento, Ediciones Encuentro, Madrid, 2003; Encuentra.com, 17.12.2003
[iv] Homilia da Missa Pro Eligendo Pontífice, Vaticano, 18.04.2005
[v] Sobre algunos aspectos de Ia teologia moral, entrevista publicada em Ser cristiano en Ia era neopagana,
[vi] La fe, de tejas abajo, entrevista ao diário ABC, 31.03.2002
[vii] 19 Cristianismo e Islame, entrevista a La Repubblica, 01.10.2001
[viii] 20 La fe, de tejas abajo, Editorial Encuentro, Madrid, 1995
[ix] O sal da terra, págs. 35-36.
[x] Entrevista a Jaime Antúnez Aldunate, em revista Humanitas, Santiago de Chile, 2005, www.humanitas.cl
[xi] Ibid