A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIII
CAPÍTULO XXIV
Com o se deve entender quer o sopro de Deus pelo qual o primeiro homem foi
feito em alma vivente, quer aquele que o Senhor emitiu ao dizer aos
seus discípulos: Recebei o Espírito Santo.
Têm também procedido sem consideração os que, na passagem em que se lê:
Deus soprou sobre a sua face um espírito de vida e foi feito o
homem numa alma vivente,[i]
são de parecer que não foi dada então ao primeiro homem a alma, mas que foi
vivificada pelo Espírito Santo a que ele já tinha. Impressiona-os o facto de o
Senhor Jesus, depois de ter ressuscitado dos mortos, ter soprado sobre os seus
discípulos, dizendo:
Recebei o Espírito Santo.[ii]
Julgam ter acontecido agora algo semelhante ao que aconteceu então, com o se o
evangelista tivesse acrescentado: «E foram feitos em almas viventes». Se ele
tivesse dito isto, tal significaria, na nossa opinião, que o Espírito de Deus
é, de certa maneira, a vida das almas e que, sem Ele, as almas racionais devem
ser tidas por mortas, mesmo quando a sua presença parece vivificar os corpos.
Mas não foi o que aconteceu quando o homem foi criado. Atestam-no suficientemente
as palavras do livro deste teor:
E formou Deus o homem do pó da terra3,[iii]
— o que alguns, para maior clareza, traduzem assim: «Deus formou o homem do
barro da terra», porque, mais acima, fora dito:
Uma fonte jorrava da terra e regava-lhe toda a superfície,[iv]
— o que podia designar o barro feito duma mistura de terra e de água. De facto,
depois de ter sido dito isto, segue-se logo:
E formou Deus o homem do pó da terra,[v]
como vem nos códices gregos dos quais foi a Escritura traduzida para a língua
latina. Não interessa para o caso que se traduza a palavra grega por criou (formavit)
ou por modelou (finxit), embora «modelou» seja o termo mais
apropriado. Mas para evitar equívocos, houve quem preferisse «criou» (formavit)
porque prevaleceu na língua latina o costume de utilizar fingere (modelar,
fingir) na composição de ficções mentirosas. É, portanto, este homem, formado
do pó da terra ou de barro (isto é, de pó molhado), este homem, digo eu, «pó
tirado da terra», como expressamente relata a Escritura, é que foi feito corpo
animal, como o ensinou o Apóstolo, quando recebeu uma alma:
E foi feito este homem numa alma vivente,[vi]
isto é, este pó assim modelado foi dotado de alma vivente.
Ele já tinha uma alma, dirão, sem o que não se chamaria homem — porque homem
não é corpo só nem alma só, mas o com posto de corpo e alma. Realmente, a
verdade é que a alma não é o homem todo, mas a sua parte melhor; nem o corpo é
o homem todo, mas a sua parte inferior. É ao conjunto de ambos que se dá o nome de homem; mas as partes não
perdem este nome mesmo quando se fala só de cada uma. Quem é que, realmente, se
coíbe de dizer, conforme certa regra da conversação de todos os dias: «Aquele homem
morreu e agora está em repouso ou no sofrimento» — embora isto só da alma se possa
dizer? Ou então: «Este homem foi sepultado em tal ou tal lugar» — embora isto só do corpo se possa entender? Quererão eles dizer
que não é assim que a Sagrada Escritura costuma falar? Bem ao contrário —
também ela nisto está de acordo connosco pois, mesmo quando as duas partes
estão unidas e o homem vive ainda, dá ela a cada uma das partes o nome de
homem: chama à alma «homem interior» e ao corpo «homem exterior», como se fossem dois, embora o homem seja
um a e outra parte ao mesmo tempo. Mas convém compreender em que sentido se diz
que o homem é a «imagem de Deus», e que é «terra e à terra voltará». A primeira
expressão refere-se à alma racional dada ao homem, isto é, ao corpo do homem
pelo sopro de Deus ou, se se prefere expressão mais adequada, pela inspiração
de Deus; a segunda refere-se ao corpo tal qual foi formado por Deus a partir do
pó, ao qual se deu a alma para dele fazer um corpo animado, isto é, um homem
dotado de alma vivente.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)