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A Cidade Deus |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XI
CAPÍTULO
VIII
Com o compreender a existência e a natureza do repouso de Deus no sétimo
dia, depois de seis de trabalho.
Que Deus descansou de todos os seus trabalhos ao sétimo dia e que o santificou
— é facto que não deve ser compreendido puerilmente no sentido de que Deus se fatigou
com o trabalho. A palavra
falou e as coisas se fizeram. [i]
deve ser entendida com o um a palavra inteligível e eterna, não sonora nem
temporal. Mas o repouso de Deus significa o repouso dos que nele descansam, com
o a alegria de uma casa significa a alegria dos que nela se alegram, mesmo que
não seja a casa, mas um outro objecto que torne alegres. Quanto mais se a
própria casa pela sua beleza torna felizes os que nela habitam! Neste caso chama-se
alegre, não por essa figura de linguagem em que o continente é tom ado pelo
conteúdo (como se diz: o teatro aplaudiu, os prados mugem, quando num os
espectadores aplaudem e nos outros mugem os bois), — mas pela figura em que se
toma o efeito pela causa (como se diz: uma carta alegre, para significar a
alegria que ela comunica aos leitores). É por isso que com muita propriedade,
quando a autoridade profética nos conta que Deus descansou, se quer significar
o repouso dos que descansam n’Ele, a quem Ele próprio faz descansar. Refere-se
também aos homens a quem se dirige e para quem foi escrita a profecia: esta promete-lhes,
a eles também, o repouso eterno em Deus depois das boas obras que Deus opera
neles e por eles, se antes, nesta vida, se aproximaram, por assim dizer, d’Ele pela
fé. Este repouso é ainda figurado pelo do sabbat prescrito pela lei ao
antigo Povo de Deus. Mas disto é minha intenção tratar mais pormenorizadamente
no seu lugar
próprio.
CAPÍTULO
IX
Segundo os testemunhos divinos, que pensar da criação dos anjos?
E agora — já que empreendi falar da origem da Cidade Santa, e, em primeiro
lugar, do que toca aos santos anjos que dela formam uma parte considerável e
tanto mais feliz quanto ela jam ais foi peregrina — vou, com a ajuda de Deus e
na medida em que me parecer necessário, explicar os testemunhos divinos
referentes ao assunto.
Quando falam da criação do Mundo as Sagradas Escrituras não referem claramente
se os anjos foram criados, nem por que ordem. Mas, se não foram esquecidos, é a
palavra Céu, na passagem em que está escrito
no princípio fez Deus o Céu e a
Terra,[ii]
ou antes a luz, de que acabo de falar, que os designa. Aliás, eu não
creio que eles tenham sido omitidos porque, está escrito, no sétimo dia Deus
descansou de todos os seus trabalhos. Mas o livro começa assim:
No princípio fez Deus o Céu e a
Terra
de maneira que, parece, Deus mais nada fez antes do Céu e da Terra. Se, então,
começou pelo Céu e pela Terra; se a Terra, a primeira coisa- que fez, era, com
o a seguir refere a Escritura, invisível e desorganizada; se, por falta de luz,
as trevas se estendiam sobre o abismo, isto é, sobre a confusão da massa
indistinta de terra e água (porque sem luz não pode haver senão trevas); se,
finalmente, foram criadas e organizadas todas as coisas que se descrevem como
acabadas em seis dias — como é que os anjos iam ser omitidos entre as obras de
Deus que descansou ao sétimo dia?
Não há dúvida de que os anjos são obra de Deus. Embora isso não esteja
claramente expresso, não foi, porém, omitido. Testemunha-o com toda a clareza,
noutro lugar, a Escritura Sagrada. No hino dos três homens na fornalha, depois
de ter dito:
Todas as obras do Senhor bendizei ao
Senhor,[iii]
nomeia também os anjos entre as suas obras — e canta-se no Salmo:
Louvai ao Senhor no alto dos céus — louvai-o nas alturas;
Louvai-os, vós, todos os seus anjos — louvai-o todas as
suas Virtudes;
Louvai-o, Sol e Lua — louvai-o, luz e todas as estrelas;
Louvai-o, vós, céus dos céus, e as
águas que estão
acima dos céus — louvem o nome do Senhor;
Porque ele falou — e as coisas se fizeram;
Ele ordenou — e as coisas foram criadas.[iv]
Ainda aqui o declara abertamente a palavra divina: os anjos foram feitos por
Deus pois que, depois de os ter nomeado entre as outras realidades celestes, a
todos encerra nestas palavras:
Ele falou — e as coisas se fizeram.[v]
Quem ousará, então, sustentar que os anjos foram feitos depois de todas as
obras enumeradas no decurso dos seis dias? Mas se alguém chegar a este ponto de
insensatez, tão vã opinião ficará refutada pela autoridade da mesma Escritura
onde Deus diz:
Quando os astros foram feitos, todos
os meus anjos me louvaram com a sua poderosa voz.[vi]
Portanto, os anjos já existiam quando foram criados os astros. Ora estes foram-no
ao quarto dia. Diremos, então, que foram criados ao terceiro? Claro que não.
Sabemos muito bem o que nesse dia foi feito: a terra foi separada das águas,
cada um destes elementos recebeu as espécies que lhes convinham e a terra
produziu tudo o que nela cria raízes. Seria, porventura, no segundo? Também
não. Nesse dia foi feito o firmam ente entre as águas do alto e de baixo,
dando-se-lhe o nome de Céu; e no firmamento foram criados os astros ao quarto
dia. É, pois, claro que se eles se encontram entre as obras que Deus fez em
seis
dias, os anjos são essa luz que recebeu o nome de dia; e foi para marcar
a unidade que se não disse o primeiro dia, mas sim um dia. Porque
o segundo, o terceiro e os seguintes não são outros, mas o mesmo dia único
repetido para constituir o número seis ou sete, em vista de um conhecimento
senário ou septenário — o senário relativo às obras que Deus fez e o septenário
relativo ao repouso de Deus.
Quando, relam ente, Deus disse:
Faça-se a luz — e a luz fez-se.[vii]
— se é justo ver nesta luz a criação dos anjos, é porque certamente eles foram feitos participantes da luz eterna que é a sabedoria imutável do próprio Deus por quem tudo foi feito e a quem
chamam os o Filho único de Deus. Assim, eles foram iluminados por esta luz que
os criou e desde então eles tornaram -se luz e chamaram-se dia por causa
da sua participação na luz e dia imutável que é o Verbo de Deus por quem eles e
todas as coisas foram criadas. Porque
a verdadeira luz que ilumina todo o
homem que vem a este mundo [viii]
ilumina também todo o anjo puro para
que seja luz não em si próprio, mas em Deus. E se o anjo se afasta de Deus, torna-se
impuro, com o são todos os espíritos chamados impuros que já não são luz no
Senhor, mas eles próprios trevas, privados da participação da eterna luz. O
mal, com efeito, não é um a natureza: a perda do bem é que recebe o nome do mal.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)