Tempo comum XI Semana
Evangelho: Mt 5, 38-42
38 «Ouvistes que foi dito: “Olho por olho e dente por dente”. 39
Eu, porém, digo-vos que não resistais ao homem mau; mas, se alguém te ferir na
tua face direita, apresenta-lhe também a outra; 40 e ao que quer
chamar-te a juízo para te tirar a túnica, cede-lhe também a capa. 41
Se alguém te forçar a dar mil passos, vai com ele mais dois mil. 42
Dá a quem te pede e não voltes as costas a quem deseja que lhe emprestes.
Comentário:
“Faz o bem sem
olhares a quem”, é um dito popular que bem pode ter a sua origem nestes
ensinamentos de Cristo.
Podemos acrescentar, as palavras de São Josemaria Escrivá: ‘Afogar o mal em abundância de bem.’ (Cristo
que passa, n. 72)
Será difícil
por vezes não responder no mesmo tom,
não devolver o insulto, conservar a calma e tranquilidade deixando o outro desarmado e sem
razão.
Talvez
pensemos que não merecemos a forma como nos trata mas depressa se desvanecerá
esse sentimento se nos inteirar-mos do seguinte; 'se realmente me conhecesse
bem, tratar-me-ia muito pior’.
(ama, comentário sobre Mt 5, 48-42,
2013.06.17)
Temas
…/5
TUDO CABE NUM SORRISO POR
AMOR A DEUS
Por isso, a todos nos
surpreendeu, como um choque inesperado, a notícia de que tivemos conhecimento
na primavera de 1954. O Padre, no dia 27 de abril, estivera a ponto de morrer.
Uma crise de saúde muito forte só não o levara por um triz.
Perguntávamo-nos, no
primeiro momento, que tipo de achaque podia tê-lo acometido. Nem nos passava
pela mente a ideia de que poderia ter sido – como de fato foi – uma crise
devida à própria diabete. Para nós, “diabete” era uma palavra ouvida alguma
vez, mas já arquivada no esquecimento. Nada notávamos, o Padre de nada se
queixava nem com a palavra nem com a expressão do rosto e, por isso, nada nos
preocupava. Não sabíamos que, na verdade, durante todos aqueles meses felizes,
vividos junto de um Padre que irradiava dinamismo e felicidade, Mons. Escrivá
estivera atravessando uma das piores fases da sua doença.
Assim descreve Vázquez de
Prada o que na realidade se estava passando naquele período:
“Trabalhava e mexia-se
como se estivesse bem de saúde: sem o cansaço que o medo produz, livre da
psicose de febre que amiúde excita os enfermos ou os deprime. Para o caso de
que chegasse em qualquer momento a sua hora, tinha tomado precauções. Fez
colocar uma campainha junto da cabeceira da sua cama, para pedir os sacramentos.
Deitava-se com a mente posta em Deus:
Senhor – dizia –, não sei
se me levantarei amanhã; dou-te graças pela vida que me deres e estou contente
de morrer em teus braços. Espero na tua misericórdia.
“Custava-lhe sorrir; mas
os seus filhos recordam-no sempre com o sorriso nos lábios. A doença
deparava-lhe surpresas variadas: um dia, não se tinha em pé; outro,
sobrevinha-lhe uma infecção furibunda; na semana seguinte, falhava-lhe o olho
direito...
“Tomava com alegria e
paciência as peças que lhe pregavam as suas indisposições [...]. Nas viagens,
não tinha outro remédio senão carregar com o seu pequeno arsenal de botica.
Assim andaram as coisas, até que o Dr. Faelli resolveu tentar uma variante no
tipo de medicação, prescrevendo-lhe insulina retardada. O pe. Álvaro, que
conhecia perfeitamente o tratamento, as quantidades e o seu efeito, acertou a
nova dose. Tudo andou bem por dois ou três dias, embora seja possível que o
enfermo se tivesse sensibilizado com a mudança”
O que nós, afinal, ficamos
sabendo foi que no dia 27 de abril, festa de Nossa Senhora de Montserrat, após
receber a dose diária de insulina, o Padre se sentou à mesa com o pe. Álvaro
del Portillo. De repente, o seu rosto ficou rubro, depois violáceo e,
finalmente, invadido por uma palidez cadavérica. A custo, antes de ficar
desacordado, tinha pedido ao pe. Álvaro a absolvição.
Ele próprio nos relatava
depois (só no-lo contou quando já estava bom e não podia causar-nos preocupação),
que naquela hora teve a nítida sensação de que ia morrer. Acrescentava, com o
seu indelével bom humor, que, quando conseguira ver-se no espelho, após umas
horas de cegueira, tinha comentado ao pe. Álvaro: “Já sei que aspecto terei
quando morrer...”
Deus, em sua bondade, não
só o livrou da morte nessa hora de grave crise, como o presenteou com uma
rápida recuperação e, o que é mais, com o inexplicável desaparecimento da diabete
que, simplesmente, deixou de manifestar-se a partir daquele dia. Ficou curado.
Neste episódio todo, algo
se nos revelou com absoluta nitidez, com inequívoca evidência: tínhamos vivido,
dia após dia, com um Mons. Escrivá doente, afetado por forte mal-estar físico, muitas
vezes cansado, esgotado, e nada disso tinha transparecido no seu porte, no seu
rosto, no seu gesto, na sua conversação.
As nossas impressões
daqueles dias, expressou-as muito bem um dos que lá estavam em 1954, o
português Hugo de Azevedo, na biografia que dedicou bastantes anos mais tarde
ao Beato Josemaría, com o título de Uma luz no mundo. Devo dizer que as suas
impressões pessoais coincidem, ao pé da letra, com as minhas e as dos outros
que estávamos lá:
“O que é admirável para
quem, como eu, conviveu com ele nessa época, é não nos termos dado conta de
nada, é não recordarmos qualquer diferença de disposição, de vitalidade, de
alegria.
Dera-nos dias antes duas
meditações diárias durante um retiro, na Semana Santa, e com que vibração nos
impulsionava à luta interior e ao apostolado!”
TER A CRUZ É TER A ALEGRIA
Tudo isto é, certamente,
admirável, e o foi para nós na época. Agora, com o conhecimento mais
aprofundado da vida do Bem-aventurado Josemaría Escrivá, é preciso dizer que,
embora seja muito admirável, não é surpreendente, pois na vida santa do
Fundador do Opus Dei a paciência heróica, no meio de muitos padecimentos
físicos e sobretudo morais, foi uma constante, uma santa “rotina”.
Referindo-se a alguns
momentos da década de 1940, em que as dolorosas investidas – sobretudo as
calúnias – recrudesciam, ele próprio confidenciaria anos mais tarde:
“Para nos tornar mais
eficazes, Deus Nosso Senhor abençoou-nos com a Cruz [...]. Foram anos duros,
porque faziam chegar essas calúnias até o mais alto da Igreja, semeando
desconfianças e receios para com a Obra. Eu calava-me e rezava [...]. Chegou um
momento em que tive de ir uma noite ao sacrário, a dizer: Senhor – e
custava-me, custava-me... e me caíam umas lágrimas!... –, se Tu não precisas da
minha honra, eu para que a quero?”
Paciência é isso! Um
grande amor que sabe sofrer e que, justamente por ser amor, sofre com generosidade,
com grandeza, com desprendimento total de si mesmo e aceitação plena da Vontade
de Deus, com abandono nas mãos do Pai e com alegria. Que bem no-lo ensinava
Mons. Escrivá! É por isso que os textos que contêm a sua mensagem, para os que
pudemos conhecê-lo de perto, são verdadeiros latejos da sua própria alma,
sangue das suas veias. Passava para o papel o que vivia ardentemente. Daí que
nos seja impossível ler com frieza, como se fossem apenas exortações piedosas
ou exposições doutrinais, textos como os seguintes:
“Ter a Cruz é ter a
alegria: é ter-te a Ti, Senhor!” “Quando se caminha por onde Cristo caminha;
quando já não há resignação, mas a alma se conforma com a Cruz – se amolda à
forma da Cruz –; quando se ama a Vontade de Deus; quando se quer a Cruz...,
então, mas só então, é Ele quem a leva”.
“Sinais inequívocos da
verdadeira Cruz de Cristo: a serenidade, um profundo sentimento de paz, um amor
disposto a qualquer sacrifício [...], e sempre – de modo evidente – a alegria:
uma alegria que procede de saber que, quem se entrega de verdade, está junto da
Cruz e, por conseguinte, junto de Nosso Senhor”.
Ou ainda expansões como a
desta confidência pessoal: “Quando vos falo de dor, não vos
falo apenas de teorias
[...]. A doutrina cristã sobre a dor não é um programa de consolos fáceis. É, em
primeiro lugar, uma doutrina de aceitação do sofrimento, que é de facto
inseparável de toda a vida humana. Não vos posso ocultar – com alegria, porque
sempre preguei, e procurei viver, que onde está a Cruz está Cristo, o Amor –
que a dor tem aparecido frequentemente na minha vida...”
A arte de sofrer sorrindo,
de que foi exímio mestre o Fundador do Opus Dei, é uma arte contagiosa. É o que
vamos ver na nossa segunda história de amor paciente.
UMA CURTA BIOGRAFIA
Mons. Escrivá esteve à
beira da morte no dia de Nossa Senhora de Montserrat, 27 de Abril de 1954. A
nossa segunda história focaliza uma moça, nascida em Barcelona no dia 10 de Julho
de 1941, que havia recebido no Batismo esse nome, Montserrat, em honra da
Padroeira da sua terra.
Familiarmente, os pais,
irmãos e amigos a chamávamos Montse, e digo “chamávamos”, porque me unia, e
ainda me une, à distância de um oceano, uma entranhada amizade com seus pais,
Manuel e Manolita Grases.
Montse foi também filha do
Bem-aventurado Josemaría Escrivá, pois pediu a admissão no Opus Dei, entregando
a sua vida inteira a Deus, no dia 24 de dezembro, véspera do Natal de 1957.
Pouco depois, uma leve e
persistente dor na perna esquerda deu o primeiro sinal do que viria a diagnosticar-se
como um câncer incurável, sarcoma de Ewing, que – após meses de intensas dores –
veio a causar a morte daquela menina de 17 anos, no dia 26 de Março de 1959,
Quinta-feira Santa.
Resumida assim, em
pouquíssimas linhas, essa biografia tão curta, tão cedo truncada, parece muito
triste. Parece, mas não é.
Diga-se, já de começo, que
Montse, a segunda de uma família de nove irmãos – profundamente católica e
unidíssima –, foi sempre uma moça direita e pura, bonita, simpática, esportiva,
divertida, religiosa sem beatice e absolutamente normal. E como faz parte da normalidade
ter, ao lado de belas virtudes, alguns defeitos, Montse também os tinha – não
nasceu com auréola de santa –, e é muito importante ter isso presente ao ler o
que vem a seguir.
Montse, que era prestativa
e sacrificada, de coração sensível, generoso e bom, era também voluntariosa e
geniosa. Ai de quem a contradissesse ou pretendesse fazer-lhe uma desfeita! Sem
grosserias nem violências – que não eram do seu feitio –, reagia desde muito
menina como pessoa que não leva desaforo para o seu cantinho nem tem um braço
fácil de torcer. Por outras palavras, em uma porção de coisas, era “insofrida”,
ou seja, era impaciente. Sabendo disso, as pinceladas que se dão a seguir
ganham um sentido maior.
UM PROCESSO ACELERADO
Quando se leem os
depoimentos e testemunhos dos que estiveram mais perto dela desde o início das
dores (Dezembro de 1957) até a morte (Março de 1959), observa-se um denominador
comum. Todos eles salientam que, naqueles quinze meses, houve, não uma mudança
instantânea – lampejo de um dia –, mas um processo assombroso, contínuo,
crescente, de amadurecimento no amor e nas virtudes, que transformou
profundamente Montserrat. Um crescimento interior tão espantoso, que todos os
que a conheceram encararam como algo natural que se iniciasse o seu Processo de
Beatificação e Canonização em Dezembro de 1962.
Ao longo de toda a
evolução da doença, Montse esforçou-se por levar, até o limite das suas forças,
uma vida normal. Queria ser fiel ao que a sua vocação para o Opus Dei lhe
pedia: a santificação pessoal e o apostolado no meio do mundo, dentro da
normalidade da vida diária, no cumprimento amoroso e acabado dos deveres cotidianos.
Viver assim – com alegre
simplicidade, sem chamar a atenção – representava um esforço que conseguiu
praticar rezando muito e lutando muito por corresponder à graça de Deus.
Até os últimos dias,
quando, já imóvel na cama, mal podia falar, fez um esforço heroicamente fiel
para cumprir os propósitos espirituais a que se tinha comprometido livremente com
Deus: duas meias horas de oração mental diária, terço, leitura do Evangelho e
de algum livro espiritual (só ouvindo ler, já no final), exame de consciência
noturno, que jamais desleixou, etc.
Morreu acompanhando o
segundo mistério do terço do dia, que a sua mãe e um grupo de amigas rezavam ao
pé da sua cama.
(cont.)
andrés vázquez de prada, O Fundador do Opus Dei, Quadrante, São
Paulo, 1989, págs. 325-326.
Prumo-Rei dos Livros, Lisboa, 1988, pág. 256.
salvador bernal, Perfil do Fundador do Opus Dei, Quadrante, São Paulo, 1978, págs.
333, 334 e 371
Cf. Forja, Quadrante, São Paulo,
1987, ns. 766, 770, 772; e vázquez de
prada, obra citada, pág. 269.