JESUS CRISTO NOSSO SALVADOR
Iniciação à Cristologia
Capítulo I
INTRODUÇÃO:
A CRISTOLOGIA, CIÊNCIA TEOLÓGICA ACERCA DE JESUS CRISTO.
3. A chamada «questão histórica» sobre Jesus Cristo
e a pretendida distinção entre o Jesus da história e o Cristo da fé.
a) A procura do «Jesus da história» com um método
exclusivamente racional.
Nos últimos
séculos colocou-se a questão do «acesso a Jesus», isto é, a investigação do que
se pode conhecer com certeza acerca do «Jesus da história», empregando uma metodologia
puramente histórica ou literária, sem ter presente o dogma nem a Tradição da
Igreja, sem ter em conta «o Cristo da Fé».
A crítica histórica.
Desde
finais do século XVIII, na era da Ilustração,
surge a procura que tenta reconstruir a vida de Jesus utilizando uma
metodologia histórica que só admite como verosímil o que tem uma explicação
racional, e prescinde do demais como irreal. Para estes racionalistas o Senhor
foi um simples homem, desprovido de toda a roupagem divina, e do qual há que desprezar
como mito todo o milagroso. Portanto, para eles os Evangelhos não gozariam de
nenhuma fiabilidade e não se deveriam ter em conta para estabelecer uma
história que quer ser «crítica», puramente racional: esta história terá que
basear-se em fontes externas.
Pouco
depois, ao longo de todo o século XIX, também o protestantismo liberal tentou chegar pela crítica histórica à
verdadeira figura de Jesus, que viam como o homem perfeito, mas só um homem.
Pretendendo fundar a fé na história, seguiu o mesmo caminho de contar
unicamente com a razão e a ciência histórica positiva, prescindido dos
testemunhos do Novo testamento e da Tradição da Igreja.
Depois de
um século de uma procura histórico-crítica à margem dos Evangelhos, tanto por
parte dos ilustrados como pelos protestantes liberais, os resultados não foram
muito satisfatórios: podiam-se conhecer muito poucas coisas do «Jesus
histórico».
A crítica histórico-literária.
Na primeira
metade do século XX, Rudolph Bultmann sustentará que já que a história não nos
leva à fé em Cristo, há que ir directamente à fé nele, ao que os primeiros discípulos
acreditavam. Ora bem, segundo este autor, a fé dos começos, baseada nalguns
elementos históricos, foi crescendo e desenvolvendo-se segundo um processo de
mitificação da figura de Jesus, e foi expressando-se de acordo com a cultura do
seu tempo. Essas crenças reflectir-se-ão posteriormente nos Evangelhos que, por
isso, não poderiam constituir uma base sólida para fazer uma reconstrução
histórica de Jesus, pois – diz – existe um salto e uma descontinuidade entre o
Jesus histórico e o que os primeiros cristãos pensavam d’Ele.
Só
poderemos chegar a conhecer como eras o núcleo histórico original dessa
tradição sobre Jesus estudando as sucessivas formas de expressão que essas
crenças iam tendo até chegar à recensão dos Evangelhos: portanto, haverá que
estudar a história das formas literárias
dos Evangelhos, a história dos diferentes documentos que deram lugar aos
Evangelhos, situando-as no seu marco vital que as explicam. E depois haverá que
desandar, desmistificar, o caminho que essa fé teria supostamente percorrido.
Os resultados dessa «história das formas» têm sido desoladores: tão pouco aí
podemos conhecer com certeza crítica, quase nada da vida de Jesus.
Desde a
metade do século XX, diversos autores corrigiram o método da «história das
formas» empregando novos recursos da linguística, ainda que mantenham os seus
pressupostos fundamentais. Os critérios linguísticos empregados foram vários, e
os resultados têm sido em parte positivos, enquanto conseguem provar que
determinados factos ou palavras que os Evangelhos nos transmitem são com
certeza atribuíveis ao Jesus da história. Mas os resultados são escassos e
divergentes, pois seleccionam e aceitam só determinados ditos e factos de
Jesus, ao mesmo tempo que deixam outros no esquecimento.
As
conclusões de todas estas tentativas críticas foram diversas reconstruções da
figura de Jesus, do qual apresentaram diferentes «imagens» segundo os
diferentes pontos de vista prévios: uns imaginam um Jesus judeu de grande religiosidade (no seu pensamento e cultura); outros,
um Jesus taumaturgo (curandeiro, mago
ou exorcista); outros, um Jesus mestre
(rabi ou sábio; humanista ou mestre de moral); outros apresentam um Jesus revolucionário (promotor de uma
revolução social não violenta, ou vítima romântica da conflitualidade
política); outros, um Jesus profeta
escatológico; etc.
b) Crítica dos pressupostos racionalistas da
distinção entre o Jesus da história e o Cristo da fé.
O
preconceito racionalista restringe, por princípio, o carácter real e histórico
só aos acontecimentos que têm uma explicação racional, e de entrada excluem
como impossíveis que Jesus Cristo seja Deus ou a realidade dos milagres. Esta
atitude não só é antidogmática como se torna também incompatível com a sincera
procura da verdade que deve caracterizar todo o científico.
Com o mesmo
a priori racionalista tampouco se
admite a inspiração divina da Escritura, nem a veracidade dos Evangelhos.
Qualquer forma Estes preconceitos de não só negam a fé da Igreja sobre esses
pontos, como ainda esbarram contra a índole evidentemente histórica e
testemunhal que mostra os escritos do Novo Testamento. [i]
Os
critérios de selecção que utilizam para aceitar a historicidade das palavras ou
acontecimentos evangélicos são em grande parte subjectivos, como o demonstra a
multiplicidade de «imagens de Cristo que se propõem».
Segundo
esta postura, a fé e a história seriam dois caminhos diferentes e separados; o
pregado pelos apóstolos e transmitido nos Evangelhos não teria correspondência
com a realidade de Jesus; a nossa fé não teria um apoio firme real e histórico,
mas seria fundamentalmente subjectiva: o que Cristo é para mim, não tanto o que
realmente é. Por isso a distinção entre o «Jesus histórico» e o «Cristo da fé»
é uma distinção de graves consequências, e com toda a razão o Magistério da
Igreja a reprovou.
Concretamente,
já a Igreja primitiva defendeu abertamente a unidade existente entre o que hoje
chamamos o Jesus da história e o Cristo da fé: o mesmo nome de «Jesus Cristo»,
com que o denominaram desde os começos, confessa que «Jesus», o histórico, é o
«Cristo», o da fé. E mais, principal atitude da primeira tradição cristã foi a
de conservar fielmente a recordação das palavras e obras de Jesus.
4. O método teológico
a) O ponto de partida e fontes da cristologia
A teologia
é a ciência acerca de Deus, enquanto o conhecemos pela fé mediante a luz da
revelação. É um conhecimento que se baseia na fé e que, ao mesmo tempo, é uma
ciência, um esforço racional para entender mais profundamente os mistérios revelados.
É «a fé que procura entender, como dizia Santo Anselmo: é o conhecimento que
surge da fé que procura uma maior compreensão dos mistérios revelados.
Por isso, o ponto de partida da cristologia é a fé
e não pode ser o que nos proporciona uma investigação histórica sobre Jesus. Só
a fé pode franquear o mistério da imagem humana de Cristo e dar-nos a realidade
do Salvador.
As fontes da cristologia são as
mesmas que têm a fé e todo o tratado teológico: a palavra escrita de Deus e a
sagrada Tradição. E estas fontes estão garantidas pelo magistério da Igreja:
sabemos que «o ofício de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita
ou transmitida foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja
autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo. [ii]
No fundo, a
Igreja viva é o lugar da fé em Cristo. Por isso a teologia há-de tomar o seu
conteúdo da revelação, interpretada à luz dos ensinamentos dos Padres e
Doutores da Igreja, da Liturgia, da fé e piedade popular; numa palavra, da
Tradição viva da Igreja sustentada pelo Espírito Santo que nos «guia para a
verdade completa» [iii].
Verdade que encontramos expressa e sintetizada especialmente nos símbolos da fé
e no magistério da Igreja.
b) O recto uso dos métodos histórico-críticos ou
literários.
As ciências
humanas – a história, a arqueologia, a filosofia, etc. – são proveitosas para
aproximar-nos da realidade histórica de Jesus e da composição dos Evangelhos;
para conhecer melhor as condições históricas da cultura do seu ambiente, os
«géneros literários» que se empregavam ao escrever, as formas de falar naquela
época, etc.
Estas
ciências aplicadas à pessoa e obra de Jesus são legítimas e têm o seu valor,
sempre que se apliquem de modo científico e com rectidão, e não estejam
viciadas por determinadas ideias filosóficas. Para que estas investigações
sejam rectas, ainda que diferentes da fé, não se devem separar nunca dela; como
a humanidade de Jesus Cristo é diferente da sua divindade mas inseparável dela.
Com efeito, esse Jesus que a história investiga não é um simples homem, mas sim
o filho de Deus.
5. Estrutura deste manual
Este manual
sobre o mistério de Cristo estrutura-se em duas partes: o estudo da pessoa de
Jesus Cristo e da sua obra salvífica; já que «não possível separar em Cristo o
seu ser de Deus-Homem e a sua função de Redentor. O Verbo fez-se carne e veio à
terra ut omnes homines salvi fiant [iv],
para salvar a todos os homens». [v]
Na primeira
parte estudaremos a pessoa do redentor. Para tal, começaremos vendo a vinda do
Filho de Deus ao mundo dentro da economia divina da salvação. Consideraremos
depois a realidade da Encarnação: o Verbo, sendo Deus, faz-se verdadeiramente
homem. Em seguida tentaremos explicar, no possível, o mistério da unidade de
Cristo. E, por último, estudaremos diferentes aspectos da autêntica humanidade
que assumiu.
Na segunda
parte trataremos da obra do redentor. Para tal, começaremos por declarar o que
é a redenção. Consideraremos depois porquê a obra de Cristo pode alcançar-nos a
nós: porque Ele é o novo Adão, a Cabeça da linhagem humana e Mediador entre
Deus e os homens. Seguidamente estudaremos os mistérios – os actos – da vida de
Cristo com os quais nos salva: primeiro, os mistérios da sua vida terrena,
particularmente a sua Paixão e Morte, e depois os mistérios da sua vida
gloriosa. E terminaremos vendo os frutos da obra redentora de Cristo nos
homens.
(cont)
Vicente
Ferrer Barriendos
(Tradução do castelhano por ama)
[i] Cf. 2 Pd 1,
16; 1 Jo 1,1-3. Ainda que os hagiógrafos tenham um papel importante na redacção
desses livros (escolhendo algumas das coisas que já se transmitiam por palavra
ou por escrito, resumindo outras, ordenando-as segundo diferentes critérios, ou
explicando o seu sentido), se preocuparam sobretudo em transmitir fielmente o
que eles próprios (Mateus e João) tinham visto e ouvido, ou o que ensinaram
outras testemunhas oculares (cf. Lc 1,1-4). De modo que os Evangelhos nos
«comunicam fielmente o que Jesus, Filho de Deus, vivendo entre os homens, fez e
ensinou realmente para a salvação deles, até ao dia em que foi levantado ao céu
(…) Comunicam-nos a verdade sincera acerca de Jesus». DV, 19.
[v] S. JOSEMARÍA
ESCRIVÁ, Cristo que Passa, 106.