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A Cidade Deus |
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CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XI
Começa a segunda parte desta obra que trata da origem das duas Cidades — da
Celeste e da Terrestre —, do seu desenvolvimento e dos seus fins.
Neste primeiro livro começa Agostinho por demonstrar que os primórdios das duas
cidades tiveram um precedente na distinção entre anjos bons e anjos maus.
Por tal motivo trata da criação do Mundo de que as Sagradas Escrituras nos
oferecem a descrição no principio do livro do Génesis.
CAPÍTULO I
Nesta parte da obra começa-se por se mostrar as origens e os fins das duas
Cidades — da Celeste e da Terrestre.
Chamamos Cidade de Deus àquela de que dá testemunho a Escritura que, não devido
a movimentos fortuitos dos ânimos, mas antes devido a uma disposição da Suma Providência,
ultrapassando pela sua divina autoridade todas as literaturas de todos os
povos, acabou por subjugar toda a espécie de humanos engenhos. É, realmente,
nela que está escrito:
Disseram de ti coisas gloriosas, ó
cidade de Deus.[i]
num outro salmo lê-se:
O Senhor é grande e digno dos maiores
louvores na cidade do nosso Deus, na sua montanha santa, ele que aumenta o
júbilo de toda a terra;[ii]
e um pouco mais à frente no mesmo salmo:
Como ouvimos assim vimos na Cidade
do Senhor das virtudes, na cidade do nosso Deus; Deus fundou-a para a eternidade;[iii]
e da mesma forma noutro salmo:
Uma torrente de alegria inunda a
cidade de Deus; o Altíssimo santificou o seu tabernáculo; Deus está no meio
dela: ela não será abalada.[iv]
Com estes testemunhos e outros que tais, que seria longo citar, sabemos que há
uma Cidade de Deus da qual aspiramos ser cidadãos movidos pelo amor que o seu
fundador infundiu em nós. A este fundador da cidade santa preferem os cidadãos
da Cidade Terrestre os seus próprios deuses, ignorando que Ele é o Deus dos
deuses — não dos deuses falsos, isto é, ímpios e orgulhosos que, privados da luz
imutável e a todos com um , reduzidos por isso a uma espécie de poder
indigente, prosseguem o seu domínio a bem dizer pessoal ao reclamarem honras
divinas daqueles que, por seus embustes, se lhes submeteram, — mas é o Deus dos
deuses piedosos e santos que preferem pôr toda a sua alegria em só a Ele se
submeterem a pô-la em que muitos outros a si se submetam e preferem adorar a
Deus a serem adorados em lugar de Deus.
Nos dez livros precedentes respondemos, como nos foi possível com a ajuda de
nosso Senhor e Rei, aos inimigos da Cidade Santa. Agora, — sabendo o que de mim
esperam doravante e recordado do meu compromisso, sempre com confiança no
auxílio do mesmo Senhor e Rei nosso —, vou tratar de expor a origem, o
desenvolvimento e os fins destas duas cidades, a terrena e a celeste, que estão,
como disse, interligadas e de certo modo misturadas um a na outra no século
presente. Mas antes direi de que maneira a origem das duas cidades teve como
precedente a diversidade dos anjos.
CAPÍTULO II
Ao conhecimento de Deus nenhum homem chega senão pelo Mediador entre Deus e
os homens - o homem Jesus Cristo.
É grandioso, mas muito raro, que alguém se eleve, por um esforço da mente,
acima de todas as criaturas corporais e incorpóreas, depois de ter observado e
reconhecido a mutalibilidade, para atingir a imutável substância de Deus e
aprender d ’Ele mesmo que toda a criatura d ’Ele distinta só a Ele tem por autor. De facto, Deus não fala ao homem por uma
criatura corpórea — como se ferem os ouvidos do corpo fazendo vibrar o ar entre
aquele que fala e aquele que ouve;
também se não serve dessas imagens espirituais que tomam a forma e a semelhança
dos corpos — como se produz nos sonhos e tudo o que se lhes assemelha (nestes casos
Ele fala por assim dizer aos ouvidos do corpo como se falasse por intermédio de
um corpo, através do espaço corpóreo; realmente, muito se assemelham aos corpos
estas vistas imaginárias);
mas fala pela própria verdade se alguém está apto a ouvir pelo espírito e não
pelo corpo. Fala deste modo à parte mais excelente do homem, superior a todos
os elementos que constituem o homem e à qual só Deus é superior.
Compreende muito bem o homem ou, se não chega a compreendê-lo, pelo menos crê
que foi feito à semelhança de Deus. Certamente que está mais perto de Deus, seu
superior pela parte superior de si mesmo, feita para dominar as partes
inferiores que tem de comum com os animais. Mas como a própria parte mental,
sede natural da razão e da inteligência, está muito debilitada pelos vícios
inveterados que a obscurecem, necessitava, antes de tudo, de ser purificada
pela fé para aderir à luz imutável e dela gozar, ou mesmo para lhe suportar o
esplendor, até que, renovada e curada dia a dia, se tom e capaz duma tão grande
felicidade.
E para caminhar mais confiadamente nessa fé para a verdade — a própria verdade,
Deus Filho de Deus, assumindo o homem sem anular a Deus, fundou e estabeleceu essa
mesma fé para que o homem tivesse um caminho para o Deus do homem por
intermédio do homem-Deus.
Este é que é, realmente, o Mediador entre Deus e os homens — o homem Jesus
Cristo: é Mediador por ser homem e como tal é caminho. Porque, se entre o que caminha
e o lugar para onde se caminha há no meio um caminho, há esperança de lá
chegar; se, porém, falta ou se desconhece por onde se deve seguir, que
interessa que se saiba para onde se deve seguir? Só há, portanto, um caminho
que exclui todo o erro: que o próprio Deus e o homem sejam o mesmo — Deus para
onde se vai, homem por onde se vai.
CAPÍTULO III
Autoridade da Escritura canónica, obra do Espírito Santo.
Deus falou, primeiro, por intermédio dos profetas, depois, directamente, Ele
próprio, e finalmente, na medida em que o julgou suficiente, pelos Apóstolos.
Instituiu também a Escritura chamada canónica e investida da mais alta
autoridade. Nela acreditamos a respeito de tudo o que convém não ignorar e que somos incapazes de conhecer por nós próprios. E certo que podemos saber — e disso somos nós próprios testemunhas — o que está ao alcance dos nossos
sentidos, interiores ou mesmo exteriores, (daí que chamemos presente (praesentia)
ao que se apresenta aos nossos sentidos (prae sensibus), como
dizemos que está diante (prae) dos nossos olhos um objecto que aos olhos
se apresenta). Todavia, para as coisas que não estão ao alcance dos sentidos,
porque as não podemos conhecer pelo nosso próprio testemunho, procuram os outras testemunhas e depositamos
nelas fé quando julgamos que essas coisas não estão ou não estiveram afastadas
dos seus sentidos. Da mesma forma, portanto, que a respeito das coisas visíveis
que não vemos, depositamos fé naqueles que as viram, como acreditamos nas
outras coisas que dependem de cada um dos respectivos sentidos do corpo, —
assim deve ser a respeito das coisas que são percebidas pela alma e pelo
espírito (porque se pode muito bem falar de um sentido do espírito, donde vem o
termo sententia (sentença — pensamento). Quer dizer: para as coisas invisíveis
que escapam ao nosso sentido interior, devemos fiar-nos naqueles que as captaram tais quais elas se encontram na luz incorpórea ou
naqueles que as contemplam na sua permanência (manentia = existência
actual).
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)