“Estando Ele ainda a falar ao povo, eis que
Sua mãe e os Seus irmãos se achavam fora, desejando falar-Lhe. Alguém Lhe
disse: Tua mãe e os Teus irmãos estão ali fora e desejam falar-Te. Ele, porém,
respondeu ao que falava: «Quem é a Minha mãe e quem são os Meus irmãos? E
estendendo a mão para os Seus discípulos, disse: «Eis Minha mãe e Meus irmãos. Porque todo aquele que fizer a vontade do
Meu Pai, que está nos Céus, é Meu irmão, Minha irmã e Minha mãe”.
Porque
é que Cristo tratou, piedosamente, com indiferença a sua Mãe? Não se tratava de
uma mãe qualquer, mas de uma Mãe virgem. Maria, com efeito, recebeu o dom da
fecundidade sem prejuízo da sua integridade: foi virgem ao conceber, no parto e
perpetuamente. No entanto, o Senhor relegou uma Mãe tão excelente para que o
afecto materno não o impedisse de realizar a obra começada.
Que
fazia Cristo? Evangelizava as gentes, destruía o homem velho e edificava um
novo, libertava as almas, libertava os presos, iluminava as inteligências obscurecidas,
realizava todo o tipo de boas obras. Todo o seu ser se abrasava em tão santa
empresa. E nesse momento anunciaram-lhe o afecto da carne. Já ouvistes o que
respondeu, para que o vou repetir? Estejam atentas as mães, para que com o seu
carinho não dificultem as boas obras dos seus filhos. E se pretendem impedi-las
ou põem obstáculos para atrasar o que não podem anular, sejam desprezadas pelos
filhos. Mais ainda, atrevo-me a dizer que sejam desdenhadas, desdenhadas por
piedade. Se a Virgem Maria foi assim tratada, porque há-de aborrecer-se a
mulher — casada ou viúva — quando o seu filho, disposto a fazer o bem, a
despreze? Dir-me-ás: então, comparas o meu filho com Cristo? E respondo-te:
Não, não o comparo com Cristo, nem a ti com Maria. Cristo não condenou o afecto
materno, mas mostrou com o seu exemplo sublime que se deve postergar a própria
mãe para realizar a obra de Deus (...).
COMO
PODEMOS INTERPRETAR QUE TAMBÉM SOMOS MÃES DE CRISTO? ATREVER-ME-EI A DIZER QUE
O SOMOS?
SIM,
ATREVO-ME A DIZÊ-LO
Acaso
a Virgem Maria — eleita para que d’Ela nos nascesse a salvação e criada por
Cristo antes que Cristo fosse n’Ela criado — não cumpria la vontade do Pai? Sem
dúvida que a cumpriu, e perfeitamente. Santa Maria, que pela fé acreditou e
concebeu, teve em mais ser discípula de Cristo do que Mãe de Cristo. Recebeu
maiores ditas como discípula do que como Mãe.
Maria
era já bem-aventurada antes de dar à luz, porque levava no seu seio o Mestre.
Repara se não é verdade o que digo. Ao ver o Senhor que caminhava entre a
multidão e fazia milagres, uma mulher exclamou: “bem-aventurado o ventre que Te trouxe!”. Mas o Senhor, para que não
procurássemos a felicidade na carne, o que é que responde? “Antes bem-aventurados, os que ouvem a
palavra de Deus e a põem em prática”. Depois, Maria é bem-aventurada porque
ouviu a palavra de Deus e guardou-a: conservou a verdade na mente melhor do que
a carne no seu seio. Cristo é Verdade, Cristo é Carne. Cristo Verdade estava na
alma de Maria, Cristo Carne encerrava-se no seu seio; mas o que se encontra na
alma é melhor do que o que se concebe no ventre.
Maria
é Santíssima e Bem-aventurada. No entanto, a Igreja é mais perfeita do que a
Virgem Maria. Porquê? Porque Maria é uma porção da Igreja, um membro santo,
excelente, supereminente, mas afinal membro de um corpo inteiro. O Senhor é a
Cabeça, e o Cristo total é Cabeça e corpo. Que direi então? A nossa Cabeça é
divina: temos Deus como Cabeça.
Vós,
caríssimos, também sois membros de Cristo, sois corpo de Cristo. Vede como sois
o que Ele disse: “Eis Minha mãe e Meus
irmãos”. Como sereis mãe de Cristo? O próprio Senhor nos responde: “Todo aquele que escuta e faz a Vontade de
Meu Pai, que está nos céus, é Meu irmão, Minha irmã e Minha mãe”. Olhai,
entendo o de irmão e o de irmã, porque única é a herança; e descubro nestas
palavras a misericórdia de Cristo: sendo o Unigénito, quis que fossemos
herdeiros do Pai, co-herdeiros com Ele. A sua herança é tal, que não pode
diminuir ainda que participe dela uma multidão. Entendo, pois, que somos irmãos
de Cristo, e que as mulheres santas e fiéis são suas irmãs. Mas como podemos
interpretar que também somos mães de Cristo? Atrever-me-ei a dizer que o somos?
Sim, atrevo-me a dizê-lo. Se antes afirmei que sois irmãos de Cristo, como não
vou a afirmar agora que sois sua mãe? Porventura poderia negar as palavras de
Cristo?
Sabemos
que a Igreja é Esposa de Cristo, e também, embora seja mais difícil de
entender, que é sue Mãe. A Virgem Maria adiantou-se como tipo da Igreja. Porquê
— pergunto-vos — é Maria Mãe de Cristo, mas porque deu à luz os membros de
Cristo? E a vós, membros de Cristo, quem vos deu à luz? Ouço a voz do vosso
coração: a Madre Igreja! Semelhante a Maria, esta Mãe santa e honrada, ao mesmo
tempo dá à luz e é virgem.
Vós
mesmos sois prova do primeiro: nascestes d’Ela, como Cristo, de quem sois
membros. Da sua virgindade não me faltarão testemunhos divinos. Adianta-te ao
povo, bem-aventurado Paulo, e serve-me de testemunha. Eleva a voz para dizer o
que quero afirmar: “Desposei-vos para vos apresentar como virgem pura, a um
único esposo, a Cristo; mas temo que assim como a serpente seduziu Eva com a
sua astúcia, assim também percam as vossas mentes a castidade que está em
Cristo Jesus”[6]. Conservai, pois, a virgindade nas vossas almas, que é a
integridade da fé católica. Aí onde Eva foi corrompida pela palavra da
serpente, aí deve ser virgem a Igreja com a graça do Omnipotente.
Portanto,
os membros de Cristo dêem à luz na mente, como Maria iluminou Cristo no seu
seio, permanecendo virgem. Desse modo sereis mães de Cristo. Esse parentesco
não vos deve estranhar nem repugnar: fostes filhos, sede também mães. Ao ser baptizados,
nascestes como membros de Cristo, fostes filhos da Mãe. Trazei agora ao
lavatório do Baptismo aqueles que possais; e assim como fostes filhos pelo
vosso nascimento, podereis ser mães de Cristo conduzindo os que vão renascer.
Santo Agostinho, Sermão 72 A, 3. 7-8