Vol. 1
LIVRO
VIII
CAPÍTULO IV
Platão, que foi o principal
discípulo de Sócrates, dividiu a filosofia em três partes.
Entre
os discípulos de Sócrates, o que brilhou com mais deslumbrante e merecida
glória, ao ponto de eclipsar totalmente todos os outros, foi Platão. Ateniense
nascido de ilustre família, em muito ultrapassou os seus condiscípulos pelo seu
maravilhoso engenho. Pensando que, para aperfeiçoar a filosofia, nem em si
próprio nem nas lições de Sócrates encontrava o bastante, viajou durante muito
tempo e por tão longe quanto lhe foi possível, por onde quer que o atraísse o
renome de uma doutrina célebre digna de ser recolhida. Assim, no Egipto
aprendeu todas as doutrinas reputadas que lá se professavam. De lá passou às
regiões de Itália onde os pitagóricos gozaram de grande fama e, seguindo as
lições dos mais eminentes mestres, assimilou com toda a facilidade tudo o que
então florescia na filosofia itálica. Devido a particular estima que dedicava a
seu mestre Sócrates, fez-lhe dizer em quase todos os seus diálogos quer o que
tinha aprendido de outros mestres quer o que por si mesmo tinha podido
compreender, tudo harmonizando com o encanto e as preocupações morais do seu
mestre.
Como
o estudo da sabedoria tem por objecto a acção e a contemplação, pode portanto
chamar-se activa a uma parte e contemplativa à outra. A parte activa trata da
forma de nos conduzirmos na vida, isto é, respeita aos costumes que devem ser
seguidos, e a contemplativa ao exame das causas da natureza e da pura verdade.
Consta que Sócrates sobressaiu na activa; Pitágoras ligou-se mais, com todas as
forças da sua inteligência, à contemplativa. Atribui-se a Platão a glória de
ter unido uma à outra, levando a filosofia à sua perfeição. Dividiu-a ele em
três partes: a moral, que trata da acção; a natural que se confina à
contemplação; a racional que distingue o verdadeiro do falso. Embora esta seja indispensável
às outras duas, isto é, à acção e à contemplação, é, todavia, principalmente a
contemplação que reivindica para si o aprofundado conhecimento da verdade. Esta
divisão tripartida, aliás, não é incompatível com a que partilha todo o estudo
da sabedoria em acção e contemplação.
Mas
qual terá sido, nestas três partes ou em cada uma delas, o pensamento pessoal
de Platão — e onde terá ele colocado, quer por sua ciência quer por sua fé, o
fim de todas as acções, a causa de todas as naturezas, a luz de todas as razões
— são questões que levariam muito tempo a expor com exactidão, julgo eu, e
penso também que a tal respeito se não deve afirmar temerariamente seja o que
for. Efectivamente, nas suas obras apresenta o seu mestre Sócrates como
dirigindo a discussão, afecta seguir o costume muito conhecido de dissimular a
sua ciência ou a sua opinião porque tal método também lhe agradava a ele: donde
resulta tomar-se difícil distinguir as suas ideias próprias acerca das grandes
questões.
Todavia,
de entre os pensamentos que nele se lêem, dos que ele próprio exprimiu ou dos
que outros formularam e ele expõe e transcreve, parecendo aprová-los, julgamos
necessário mencionar e inserir alguns nesta obra, quer ele testemunhe neles a
favor da verdadeira religião que a nossa fé adopta e defende, quer pareça
contradizê-la na questão do Deus único e dos múltiplos deuses, a propósito
precisamente da vida verdadeiramente feliz que virá depois da morte.
Talvez,
de facto, aqueles que com mais agudeza e verdade compreenderam Platão, filósofo
tão acima de todos os dos gentios, e adquiriram uma maior fama ao tomarem-se
seus discípulos, tenham de Deus esta concepção: é n’Ele que se encontra a
causa da existência, a razão da inteligência e a regra da vida — três aspectos
que se relacionam: o primeiro com a parte natural da filosofia, o segundo com a
parte racional e o terceiro com a parte moral. Realmente se o homem foi criado
para atingir, por meio do que nele há de superior, o Ser Superior a todos os
seres, isto é, o Deus único, verdadeiro e perfeito, sem o qual nenhuma natureza
subsiste, nenhuma doutrina nos instrui, nenhuma conduta é útil — pois então que
seja a Ele que se busque, pois que, para nós, é Ele a origem de todas as
coisas; seja a Ele que se contemple, pois que para nós, é n’Ele que está toda a
certeza; seja a Ele que se ame, pois que, para nós, é n’Ele que está toda a
rectidão.
CAPÍTULO V
Em matéria de teologia é de
preferência com os platónicos que se deve discutir, pois as suas opiniões são
melhores do que as dos outros filósofos.
Se,
pois, para Platão, sábio é o que imita, o que conhece, o que ama a este Deus e
encontra a sua felicidade em participar da sua vida, que necessidade haverá de
examinar os demais? Nenhum deles estará mais próximo de nós que os platónicos.
Ceda-lhes, portanto, não só essa teologia fabulosa que diverte os espíritos dos
ímpios com os crimes dos deuses, mas ceda-lhes também essa teologia civil — em
que impuros demónios, seduzindo, com o nome de deuses, os povos entregues aos
prazeres terrestres, acharam por bem considerar os erros humanos como honras
divinas; em que esses demónios, despertando nos seus adoradores imundas
paixões, os provocam, sob o pretexto de se fazerem honrar, a assistirem às
representações dos seus crimes, entregando-se eles próprios aos olhares dos
espectadores como à mais agradável das representações; em que, finalmente, o
que pode restar de honestidade no templo, sendo manchado pelo seu compromisso
com as torpezas do teatro, tudo o que de infame se comete no teatro merece
louvor em comparação das vilanias do templo.
Cedam-lhes
também as interpretações de Varrão para quem estes ritos sagrados se referem ao
Céu e à Terra, às sementes e às operações dos seres mortais (porque estes ritos
não têm a significação que ele procura dar-lhes: também a verdade escapa ao seu
esforço; e mesmo que esta significação fosse verdadeira, a alma racional não deveria
honrar, em vez do seu Deus, os seres que a ordem da natureza estabeleceu abaixo
dela, nem por cima dela, como deuses, seres aos quais o verdadeiro Deus a
preferiu).
Cedam-lhes
ainda as escrituras, de certo referentes aos mesmos ritos, que Numa Pompílio
teve o cuidado de esconder fazendo-as sepultar consigo, mas que o arado
desenterrou e o Senado fez queimar! (Do mesmo género são também — para que algo
de favorável a Numa se diga — as revelações que Alexandre da Macedónia, ao
escrever a sua mãe, diz ter recebido de um certo Leão, Grão-Sacerdote da
religião egípcia. Segundo tais revelações, não foram divinizados apenas Pico,
Fauno, Eneias e Rómulo e ainda Hércules e Esculápio, Líbio filho de Sémele e os
irmãos Tindáridas e todos os outros mortais; foram divinizados também os
próprios deuses das grandes nações que Cícero, sem os nomear, parece designar
nas suas Tusculanas: Júpiter, Juno, Saturno, Vulcano, Vesta e tantos outros que
Varrão procura relacionar com as partes do mundo ou com os elementos, são representados
como tendo sido homens. Também este Grão-Sacerdote, por recear uma eventual
revelação dos mistérios, suplicou insistentemente a Alexandre que, depois de
ter escrito a sua mãe, lhe peça que lance a carta ao fogo).
Cedam
pois estas duas teologias — a fabulosa e a civil — aos filósofos platónicos que
reconhecem o verdadeiro Deus como autor das coisas, fonte luminosa da verdade,
dispensador da felicidade eterna. Cedam ainda a tão grandes pensadores que
chegaram a conhecer um Deus tão grande, esses outros filósofos cujo pensamento,
escravo do corpo, não admite para a natureza senão origens corpóreas: a água,
segundo Tales; o ar, segundo Anaxímenes; o fogo, segundo os estóicos; segundo
Epicuro, os átomos, isto é, corpúsculos, pequeníssimos, indivisíveis e
imperceptíveis; e tantos outros que não vale a pena citar, para quem os corpos,
simples ou compostos, inanimados ou vivos mas, todavia, corpos, são causas e
princípios das coisas. Realmente, alguns deles, tais como os epicuristas,
acreditaram que as coisas vivas podiam ser produzidas por coisas não vivas;
outros pensaram que é do vivo que provêm os vivos e os não vivos, mas que todo
o corpo provém de outro corpo. Quanto aos estóicos, consideraram o fogo, um dos
quatro elementos que constituem o mundo visível, como dotado de vida e de
sabedoria e consideraram-no como tendo fabricado o Mundo, de maneira que,
segundo eles, era realmente um deus.
Estes
e outros que tais não conseguiram elevar o seu pensamento acima dos fantasmas
que os seus corações, submetidos aos sentidos carnais, imaginaram. Realmente,
tinham dentro de si o que não viam e imaginavam que viam fora de si o que não
viam, embora, na realidade, não o vissem, mas apenas o imaginassem. E isto,
realmente, à vista do pensamento, já não é corpo: é antes a imagem do corpo. E
a faculdade que vê na alma a imagem dum corpo não é nem esse corpo nem a imagem
desse corpo: e ela que vê e julga se essa imagem é bela ou disforme, é, sem a
menor dúvida, melhor do que a imagem julgada. Esta faculdade é a inteligência
do homem, a natureza da alma racional que, sem dúvida, não é um corpo, pois que
esta imagem do corpo quando é percebida e apreciada no acto do pensamento, já
não é ela mesma um corpo. Ela não é, portanto, nem terra, nem água, nem ar, nem
fogo; não é nenhum destes quatro corpos chamados os quatro elementos de que
vemos ser composto o mundo corpóreo. Ora se a nossa alma não é um corpo, como é
que será um corpo Deus criador da alma?
Que
estes filósofos cedam, portanto, aos platónicos. Cedam-lhes também os que se
envergonharam de dizer que Deus é um corpo, mas nem por isso deixam de
pretender que as nossas almas são de natureza idêntica à d ’Ele. Não se sentem
chocados com a mobilidade tão grande da alma, que não se poderá atribuir, sem
incorrer em impiedade, à natureza de Deus. Dirão: é pelo corpo que a natureza
da alma está sujeita a mudanças; por si mesma ela é imutável. Poderiam dizer
também: é pelo corpo que a alma é ferida porque esta por si mesma é
invulnerável. Na verdade, o que não está sujeito a mudança, nada o pode mudar;
por isso é que o que pode mudar por intermédio do corpo, alguma coisa o pode
mudar e, então, já não pode em rigor chamar-se imutável.
CAPÍTULO VI
Pensamento de Platão acerca
da chamada filosofia física.
Estes
filósofos que, pela sua fama e glória, vemos colocados merecidamente acima dos
demais, compreenderam que Deus não é corpo e por isso é que, na busca de Deus,
transcenderam todos os corpos. Compreenderam que em Deus Soberano nada é
mutável, e por isso é que, na procura de Deus Soberano, transcenderam toda a
alma e todo o espírito mutável. Compreenderam, além disso, que em todo o ser
que muda, toda a forma que o faz ser o que é, qualquer que seja a sua natureza
e os seus modos, não pode ela própria existir senão por Aquele que é
verdadeiramente porque é imutavelmente. E daí que, quer seja o corpo do Mundo
inteiro, a sua estrutura, as suas propriedades, o seu movimento regular, os
seus elementos escalonados do Céu à Terra e todos os corpos que ele encerra;
quer seja toda a vida: a que sustenta e
mantém o ser, como nas árvores; a que, além disso, possui sensibilidade, como
nos animais; a que acrescenta a tudo isto a inteligência, como nos homens; ou a
que, sem necessidade de mantimentos, se mantém, goza de sentimentos e de
inteligência, como nos anjos,
não pode manter o seu ser senão d’Aquele que
simplesmente é. Para Ele,
efectivamente, ser não é uma coisa e viver outra, como se pudesse ser sem
viver; para Ele viver não é uma coisa e compreender outra, como se pudesse
viver sem inteligência; para Ele compreender não é uma coisa e ser feliz outra,
como se pudesse ter inteligência sem a beatitude. Mas para Ele viver,
compreender, ser feliz, tudo isso para Ele
é ser.
Devido
a esta imutabilidade e a esta simplicidade, os platónicos compreenderam que
Deus fez todos os seres e por nenhum pôde ser feito. Realmente observaram que
tudo o que existe é corpo ou vida, que a vida é coisa superior ao corpo, que a
forma do corpo é sensível e a da vida é inteligível. Puseram, portanto, a forma
inteligível acima da forma sensível. Ora nós chamamos sensível ao que pode ser
percebido pela vista e pelo tacto do corpo; inteligível ao que pode ser captado
pelo olhar do espírito. Não há efectivamente beleza corpórea quer na estrutura
do corpo, nos seus traços por exemplo, quer num movimento, como é o canto, que
não tenha o espírito por juiz. Mas este espírito não poderia ser juiz, se nele
não houvesse essa beleza mais perfeita, sem o volume da massa, sem o ruído da
voz, sem a extensão do lugar e do tempo. Quanto ao próprio espírito, se, também
ele, não fosse mutável, um não seria melhor do que outro ao ajuizar acerca da
beleza sensível: nem o mais vivaz, o mais esperto, o mais exercitado ajuizaria
melhor do que o mais lento, o menos esperto, o menos exercitado — e até o
próprio espírito, embora uno, ao evoluir ajuíza melhor depois do que antes de
se desenvolver. Não há dúvida de que é mutável o que é capaz de mais e de
menos. Daí facilmente concluírem homens engenhosos, doutos e experientes nestas
matérias, que a primeira forma não se encontra nos seres em que ela se
evidencia mutável. A seus olhos o corpo e a alma aparecem com mais ou menos
forma, de maneira que se lhes chegasse a faltar toda a forma, deixariam
totalmente de ser. Viram, pois, que existe um ser no qual reside a primeira
forma, imutável e, consequentemente, incomparável; julgaram muito justamente
que é aí que se encontra o princípio das coisas, o qual não poderá ter sido
feito e pelo qual tudo terá sido feito.
Assim,
é o próprio Deus que lhes desvenda o que de Deus pode ser conhecido, quando a
inteligência deles perscruta, através das Escrituras, as suas perfeições invisíveis,
o seu eterno poder e a sua divindade (Rom. I, 19-20) — Ele por quem todos os
seres, mesmo os visíveis e temporais, foram criados.
Fica
exposto assim o que se refere à parte chamada física, isto é, a natural.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)