Quaresma
Semana V
São José
Evangelho:
Lc 2, 41-51
41
Seus pais iam todos os anos a Jerusalém pela festa da Páscoa. 42
Quando chegou aos doze anos, indo eles a Jerusalém segundo o costume daquela
festa, 43 acabados os dias que ela durava, quando voltaram, o Menino
ficou em Jerusalém, sem que os Seus pais o advertissem. 44 Julgando
que Ele fosse na comitiva, caminharam uma jornada, e depois procuraram-no entre
os parentes e conhecidos. 45 Não O encontrando, voltaram a Jerusalém
à procura d'Ele. 46 Aconteceu que, três dias depois, encontraram-no
no templo sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os. 47
E todos os que O ouviam estavam maravilhados da Sua sabedoria e das Suas respostas.
48 Quando O viram, admiraram-se. E Sua mãe disse-lhe: «Filho, porque
procedeste assim connosco? Eis que Teu pai e eu Te procurávamos cheios de
aflição». 49 Ele disse-lhes: «Porque Me procuráveis? Não sabíeis que
devo ocupar-me nas coisas de Meu Pai?». 50 Eles, porém, não
entenderam o que lhes disse. 51 Depois desceu com eles e foi para
Nazaré; e era-lhes submisso. A Sua mãe conservava todas estas coisas no seu
coração.
Comentário:
Que Evangelho mais apropriado para o dia de
hoje em que toda a cristandade celebra a figura ímpar do Santo Patriarca José!
De facto, o “relevo” que a Senhora dá ao Chefe
da Sagrada Família mencionando-o em primeiro lugar revela, pelo menos duas
coisas:
A perfeita humildade da Virgem que sendo a Mãe
de Deus se coloca em segundo lugar na hierarquia familiar e, depois, a perfeita
contenção de S. José que, não obstante o “relevo” que lhe é dado, permanece em
silêncio humilíssimo,
As poucas vezes que nos Evangelhos é
mencionado o Santo Patriarca poderia levar-nos a pensar que não se lhe atribui
nenhum papel de relevo especial.
Os Evangelhos foram escritos principalmente
para nos falarem de Jesus Cristo nosso Salvador e não para nos contarem uma
“história” de uma família.
O que seguramente podemos concluir é que o
Senhor terá a Seu lado a Sua Santíssima Mãe e o Seu Pai putativo.
Aquela pelo amor de Mãe, aquele pelo amor de
Pai, guardião e Mestre que foi até que a sua presença foi necessária para
assegurar a estabilidade e a tranquilidade da Sagrada Família.
Este Varão insigne que "sendo aio fez as
vezes de Pai", como diz a Santa de Ávila, será para sempre o “farol”
seguro e fiável do caminho daqueles que procuram a santidade.
(ama, comentário sobre Lc
2, 41-51, 2012.03.19)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO - CONFISSÕES
LIVRO
SEXTO
CAPÍTULO
VII
Alípio
Os que convivíamos em boa
amizade lamentávamos estas coisas, mas de modo especial e muito intimamente eu
falava com Alípio e Nebrídio. Alípio, como eu, era do município de Tagaste,
nascido de uma das melhores famílias da cidade. Era mais jovem do que eu, pois
havia sido meu discípulo quando comecei a ensinar na nossa cidade, de depois em
Cartago. Ele queria-me muito, por eu lhe parecer bom e douto, e eu apreciava-o
pela sua grande inclinação à virtude, que já se manifestava em tenra idade.
Contudo, o abismo dos
costumes cartagineses, onde ferve o gosto dos espectáculos frívolos,
engolfara-o na loucura dos jogos circenses. Alípio revolvia-se miseravelmente
nesse abismo na época em que eu ensinava retórica na escola pública, mas ele
não me tinha como mestre por causa de uma desavença que surgira entre mim e seu
pai. Eu sabia que Alípio amava morbidamente o circo, e isso muito angustiava-me,
por me parecer que se iam perder, se já não o estivessem, magníficas
esperanças. Mas não achava meios de alertá-lo e repreendê-lo, nem pela amizade,
nem pelo magistério, pois julgava que tinha sobre mim a mesma opinião que seu pai.
Mas não era assim. Pondo de parte a vontade paterna sobre isso, começou a cumprimentar-me,
comparecia à minha aula, ouvia-me um pouco, e logo se retirava.
Eu já me esquecera de
alertá-lo para não desperdiçar s eu talento tão precioso com aquele cego e
apaixonado gosto por jogos fúteis. Mas tu, Senhor, que governas o que criaste,
não te esqueceste de que Alípio deveria ser ministro dos teus sacramentos entre
os teus filhos; e para que fosse atribuída claramente a ti a sua emenda, a
realizaste por meu intermédio, mas sem que eu o soubesse.
Um dia, estando sentado no
lugar de costume, diante dos meus discípulos, veio Alípio, saudou-me,
sentou-se, atento ao assunto de que eu tratava. Por acaso eu trazia nas mãos
uma lição; para melhor a expor, e tornar mais clara e agradável a sua
explicação, pareceu-me oportuno fazer uma comparação com os jogos circenses,
com mordaz sarcasmo aos escravos dessa loucura. Mas tu sabes, Senhor, que então
não pensei em curar Alípio dessa peste. Todavia tomou para si as minhas
palavras, acreditando que eu só as dissera por sua causa. Qualquer outro tomaria
isso com desgosto; mas ele, jovem virtuoso, tomou-o como causa para se censurar
a si próprio, e para me estimar ainda
mais.
Já havias dito outrora, e
escrito em teus livros: “Corrige o sábio, e ele te amará”. Eu não o repreenderia,
mas tu, servindo-te de todos, quer eles o saibam ou quer não, de acordo com a justa
ordem que conheces, fizeste do meu coração e da minha língua carvões
abrasadores, para cauterizar e curar aquela alma tão promissora, mas
pervertida.
Senhor, cale os teus
louvores quem não percebe as tuas misericórdias, que eu te confesso do mais
íntimo de meu ser. Depois de ouvidas as minhas palavras, Alípio saiu daquele
fosso profundo, onde gostosamente se enterrara, cegando-se com o torpe prazer,
e sacudiu sua alma com corajosa temperança, afastando de si todas as imundícies
dos jogos circenses, para onde nunca mais voltou.
Depois venceu a
resistência paterna para me escolher como mestre, e seu pai cedeu e consentiu.
Voltando a ser meu discípulo, foi envolvido comigo na superstição dos maniqueus,
apreciando neles aquela ostentação de continência, que ele julgava legítima e
sincera. Na verdade, porém, era um desvario sedutor, um laço onde caíam almas
preciosas, ainda incapazes de avaliar a sublimidade da virtude e, por isso
mesmo, vítimas fáceis da aparência que mascara uma virtude hipócrita e fingida.
CAPÍTULO
VIII
A
atracção do anfiteatro
Não querendo por nada
deixar a carreira mundana, tão decantada por seus pais, partira antes de mim
para Roma, a fim de estudar Direito; lá se deixou arrebatar de modo incrível, e
com incrível avidez, pelos espectáculos de gladiadores.
A princípio, detestava e
aborrecia espectáculos semelhantes. Certa vez, encontrando-se com alguns amigos
e condiscípulos que voltavam de um jantar, apesar de resistir, foi arrastado por
eles com amigável violência para o anfiteatro, onde naquele dia se celebravam
jogos funestos e cruéis.
Dizia-lhes Alípio: “Mesmo
que arrasteis para lá o meu corpo, e o retenhais ali, podereis por acaso
obrigar a minha alma e os meus olhos a contemplar tais espectáculos? Estarei
ali como ausente, e assim triunfarei deles e de vós”. Mas eles, não fazendo
caso de tais palavras, levaram-no, talvez para verificar se poderia ou não
cumprir a palavra.
Quando chegaram, ocuparam
os lugares que puderam, pois todo o anfiteatro já fervia nas paixões mais
selvagens. Alípio, fechando a porta dos olhos, proibiu que a sua alma se
envolvesse em tal crueldade. E oxalá também tivesse tapado os ouvidos! Porque, num
lance da luta, foi tão grande o clamor da multidão que, vencido pela curiosidade,
e julgando-se preparado para desprezar e vencer a cena, fosse o que fosse,
abriu os olhos. Foi logo ferido na alma mais profundamente do que a ferida
física do gladiador a quem desejou contemplar e caiu. A sua queda foi mais
miserável que a do gladiador, causa de tantos gritos. Estes, entrando-lhe pelos
ouvidos, abriram-lhe os olhos, para ferir e abater a sua alma, mais temerária
do que forte, e tanto mais fraca por apoiar-se em si mesma, em lugar de se
apoiar em ti. Logo que viu sangue, bebeu juntamente a crueldade, e não se
afastou do espectáculo; pelo contrário, prestou mais atenção. Assim, sem o saber,
absorvia o furor popular e deleitava-se naquela luta criminosa, inebriado de
sangrento prazer.
Já não era o mesmo que ali
viera, era agora mais um da turba à qual se misturara, digno companheiro
daqueles que para ali o arrastaram.
Que mais direi? Contemplou
o espectáculo, gritou, apaixonou-se, e foi contaminado de louco ardor, que o
estimulava a voltar, não só com os que o haviam levado, mas à sua frente, e arrastando
outros. Mas tu te dignaste, Senhor, livrá-lo deste estado com mão forte e misericordiosa,
ensinando-o a não confiar em si, mas em ti, embora isto acontecesse muito tempo
depois.
CAPÍTULO
IX
Alípio,
ladrão a contragosto
Contudo, essa aventura
gravara-se na sua memória como remédio para o futuro. O mesmo ocorreu com outro
facto, quando ainda era estudante em Cartago, e seguia os meus cursos.
Era meio-dia. Alípio
estava repassando uma declamação, segundo o costume dos estudantes, quando foi
preso como ladrão pelos guardas do foro. Sem dúvida o permitiste, meu Deus,
apenas para que esse jovem, tão grande no futuro, começasse já a aprender que,
ao julgar outrem, ninguém deve condenar ninguém levianamente, e com temerária
credulidade.
Alípio, pois, passeava
diante do tribunal, sozinho, com as tábuas e o estilete, quando um jovem
estudante, o verdadeiro ladrão, levando um machado escondido, sem que Alípio o percebesse,
entrou pelas grades que rodeiam a rua dos banqueiros, e se pôs a cortar o seu chumbo.
Ao ruído dos golpes, os
banqueiros que estavam em baixo alvoroçaram-se, e chamaram gente para prender o
ladrão, fosse quem fosse. Mas este, ouvindo o vozerio, fugiu depressa, abandonando
o machado para não ser preso com ele. Ora, Alípio, que não o vira entrar, viu-o
sair e fugir precipitadamente. Curioso, porém, para saber a causa, entrou no
lugar. Encontrou o machado e pôs-se, admirado, a examiná-lo. Bem nessa hora
chegaram os guardas dos banqueiros, e surpreendem-no sozinho, empunhando o
machado, a cujos golpes, alarmados, haviam acudido. Prendem-no, levam-no, e
gloriam-se, diante dos inquilinos do foro por ter apanhado o ladrão em
flagrante, e já o iam entregar aos rigores da justiça.
Mas a lição devia ficar
por aqui, Senhor, porque imediatamente saíste em socorro de sua inocência, da
qual eras única testemunha. Quando o conduziam à prisão ou ao suplício,
veio-lhes ao encontro um arquitecto, encarregado superior da direcção dos
edifícios públicos. Os guardas alegraram-se com esse encontro, pois sempre que
faltava alguma coisa no foro o magistrado suspeitava deles. Agora ele saberia
quem era o verdadeiro ladrão. Mas este senhor tinha visto várias vezes Alípio
na casa de um senador, a quem visitava com frequência. Reconheceu-o, tomou-o
pela mão, separou-o da turba, e perguntou-lhe a causa de tamanha desgraça.
Informado do que se
passara, o arquitecto mandou à turba alvoroçada e enfurecida contra Alípio que
o seguisse. Quando chegaram à casa do jovem autor do roubo, achava-se à porta
um menino escravo, novo demais para recear comprometer o seu amo, e que poderia
revelar tudo, porque o seguira até o foro. Alípio, ao reconhecê-lo, apontou-o
ao arquitecto; este, mostrando-lhe o machado, lhe disse: “Sabe de quem é este
machado?” Ao que o menino respondeu sem demora: “Nosso”. Depois de interrogado,
confessou o resto.
Deste modo, o processo foi
transferido para aquela casa, para confusão da turba, que já imaginara
tripudiar de Alípio. O futuro dispensador de tua palavra, e juiz de tantas
causas de tua Igreja, saiu dessa aventura com mais experiência e sabedoria.
(cont)
(Revisão
de versão portuguesa por ama)