19/03/2016

Evangelho, comentário, L. espiritual


Quaresma

Semana V

São José

Evangelho: Lc 2, 41-51 

41 Seus pais iam todos os anos a Jerusalém pela festa da Páscoa. 42 Quando chegou aos doze anos, indo eles a Jerusalém segundo o costume daquela festa, 43 acabados os dias que ela durava, quando voltaram, o Menino ficou em Jerusalém, sem que os Seus pais o advertissem. 44 Julgando que Ele fosse na comitiva, caminharam uma jornada, e depois procuraram-no entre os parentes e conhecidos. 45 Não O encontrando, voltaram a Jerusalém à procura d'Ele. 46 Aconteceu que, três dias depois, encontraram-no no templo sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os. 47 E todos os que O ouviam estavam maravilhados da Sua sabedoria e das Suas respostas. 48 Quando O viram, admiraram-se. E Sua mãe disse-lhe: «Filho, porque procedeste assim connosco? Eis que Teu pai e eu Te procurávamos cheios de aflição». 49 Ele disse-lhes: «Porque Me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me nas coisas de Meu Pai?». 50 Eles, porém, não entenderam o que lhes disse. 51 Depois desceu com eles e foi para Nazaré; e era-lhes submisso. A Sua mãe conservava todas estas coisas no seu coração.

Comentário:

Que Evangelho mais apropriado para o dia de hoje em que toda a cristandade celebra a figura ímpar do Santo Patriarca José!

De facto, o “relevo” que a Senhora dá ao Chefe da Sagrada Família mencionando-o em primeiro lugar revela, pelo menos duas coisas:

A perfeita humildade da Virgem que sendo a Mãe de Deus se coloca em segundo lugar na hierarquia familiar e, depois, a perfeita contenção de S. José que, não obstante o “relevo” que lhe é dado, permanece em silêncio humilíssimo,

As poucas vezes que nos Evangelhos é mencionado o Santo Patriarca poderia levar-nos a pensar que não se lhe atribui nenhum papel de relevo especial.

Os Evangelhos foram escritos principalmente para nos falarem de Jesus Cristo nosso Salvador e não para nos contarem uma “história” de uma família.

O que seguramente podemos concluir é que o Senhor terá a Seu lado a Sua Santíssima Mãe e o Seu Pai putativo.
Aquela pelo amor de Mãe, aquele pelo amor de Pai, guardião e Mestre que foi até que a sua presença foi necessária para assegurar a estabilidade e a tranquilidade da Sagrada Família.

Este Varão insigne que "sendo aio fez as vezes de Pai", como diz a Santa de Ávila, será para sempre o “farol” seguro e fiável do caminho daqueles que procuram a santidade.

(ama, comentário sobre Lc 2, 41-51, 2012.03.19)


Leitura espiritual



SANTO AGOSTINHO - CONFISSÕES

LIVRO SEXTO

CAPÍTULO VII

Alípio

Os que convivíamos em boa amizade lamentávamos estas coisas, mas de modo especial e muito intimamente eu falava com Alípio e Nebrídio. Alípio, como eu, era do município de Tagaste, nascido de uma das melhores famílias da cidade. Era mais jovem do que eu, pois havia sido meu discípulo quando comecei a ensinar na nossa cidade, de depois em Cartago. Ele queria-me muito, por eu lhe parecer bom e douto, e eu apreciava-o pela sua grande inclinação à virtude, que já se manifestava em tenra idade.

Contudo, o abismo dos costumes cartagineses, onde ferve o gosto dos espectáculos frívolos, engolfara-o na loucura dos jogos circenses. Alípio revolvia-se miseravelmente nesse abismo na época em que eu ensinava retórica na escola pública, mas ele não me tinha como mestre por causa de uma desavença que surgira entre mim e seu pai. Eu sabia que Alípio amava morbidamente o circo, e isso muito angustiava-me, por me parecer que se iam perder, se já não o estivessem, magníficas esperanças. Mas não achava meios de alertá-lo e repreendê-lo, nem pela amizade, nem pelo magistério, pois julgava que tinha sobre mim a mesma opinião que seu pai. Mas não era assim. Pondo de parte a vontade paterna sobre isso, começou a cumprimentar-me, comparecia à minha aula, ouvia-me um pouco, e logo se retirava.

Eu já me esquecera de alertá-lo para não desperdiçar s eu talento tão precioso com aquele cego e apaixonado gosto por jogos fúteis. Mas tu, Senhor, que governas o que criaste, não te esqueceste de que Alípio deveria ser ministro dos teus sacramentos entre os teus filhos; e para que fosse atribuída claramente a ti a sua emenda, a realizaste por meu intermédio, mas sem que eu o soubesse.

Um dia, estando sentado no lugar de costume, diante dos meus discípulos, veio Alípio, saudou-me, sentou-se, atento ao assunto de que eu tratava. Por acaso eu trazia nas mãos uma lição; para melhor a expor, e tornar mais clara e agradável a sua explicação, pareceu-me oportuno fazer uma comparação com os jogos circenses, com mordaz sarcasmo aos escravos dessa loucura. Mas tu sabes, Senhor, que então não pensei em curar Alípio dessa peste. Todavia tomou para si as minhas palavras, acreditando que eu só as dissera por sua causa. Qualquer outro tomaria isso com desgosto; mas ele, jovem virtuoso, tomou-o como causa para se censurar a si próprio, e  para me estimar ainda mais.

Já havias dito outrora, e escrito em teus livros: “Corrige o sábio, e ele te amará”. Eu não o repreenderia, mas tu, servindo-te de todos, quer eles o saibam ou quer não, de acordo com a justa ordem que conheces, fizeste do meu coração e da minha língua carvões abrasadores, para cauterizar e curar aquela alma tão promissora, mas pervertida.

Senhor, cale os teus louvores quem não percebe as tuas misericórdias, que eu te confesso do mais íntimo de meu ser. Depois de ouvidas as minhas palavras, Alípio saiu daquele fosso profundo, onde gostosamente se enterrara, cegando-se com o torpe prazer, e sacudiu sua alma com corajosa temperança, afastando de si todas as imundícies dos jogos circenses, para onde nunca mais voltou.

Depois venceu a resistência paterna para me escolher como mestre, e seu pai cedeu e consentiu. Voltando a ser meu discípulo, foi envolvido comigo na superstição dos maniqueus, apreciando neles aquela ostentação de continência, que ele julgava legítima e sincera. Na verdade, porém, era um desvario sedutor, um laço onde caíam almas preciosas, ainda incapazes de avaliar a sublimidade da virtude e, por isso mesmo, vítimas fáceis da aparência que mascara uma virtude hipócrita e fingida.

CAPÍTULO VIII

A atracção do anfiteatro

Não querendo por nada deixar a carreira mundana, tão decantada por seus pais, partira antes de mim para Roma, a fim de estudar Direito; lá se deixou arrebatar de modo incrível, e com incrível avidez, pelos espectáculos de gladiadores.

A princípio, detestava e aborrecia espectáculos semelhantes. Certa vez, encontrando-se com alguns amigos e condiscípulos que voltavam de um jantar, apesar de resistir, foi arrastado por eles com amigável violência para o anfiteatro, onde naquele dia se celebravam jogos funestos e cruéis.

Dizia-lhes Alípio: “Mesmo que arrasteis para lá o meu corpo, e o retenhais ali, podereis por acaso obrigar a minha alma e os meus olhos a contemplar tais espectáculos? Estarei ali como ausente, e assim triunfarei deles e de vós”. Mas eles, não fazendo caso de tais palavras, levaram-no, talvez para verificar se poderia ou não cumprir a palavra.

Quando chegaram, ocuparam os lugares que puderam, pois todo o anfiteatro já fervia nas paixões mais selvagens. Alípio, fechando a porta dos olhos, proibiu que a sua alma se envolvesse em tal crueldade. E oxalá também tivesse tapado os ouvidos! Porque, num lance da luta, foi tão grande o clamor da multidão que, vencido pela curiosidade, e julgando-se preparado para desprezar e vencer a cena, fosse o que fosse, abriu os olhos. Foi logo ferido na alma mais profundamente do que a ferida física do gladiador a quem desejou contemplar e caiu. A sua queda foi mais miserável que a do gladiador, causa de tantos gritos. Estes, entrando-lhe pelos ouvidos, abriram-lhe os olhos, para ferir e abater a sua alma, mais temerária do que forte, e tanto mais fraca por apoiar-se em si mesma, em lugar de se apoiar em ti. Logo que viu sangue, bebeu juntamente a crueldade, e não se afastou do espectáculo; pelo contrário, prestou mais atenção. Assim, sem o saber, absorvia o furor popular e deleitava-se naquela luta criminosa, inebriado de sangrento prazer.

Já não era o mesmo que ali viera, era agora mais um da turba à qual se misturara, digno companheiro daqueles que para ali o arrastaram.

Que mais direi? Contemplou o espectáculo, gritou, apaixonou-se, e foi contaminado de louco ardor, que o estimulava a voltar, não só com os que o haviam levado, mas à sua frente, e arrastando outros. Mas tu te dignaste, Senhor, livrá-lo deste estado com mão forte e misericordiosa, ensinando-o a não confiar em si, mas em ti, embora isto acontecesse muito tempo depois.

CAPÍTULO IX

Alípio, ladrão a contragosto

Contudo, essa aventura gravara-se na sua memória como remédio para o futuro. O mesmo ocorreu com outro facto, quando ainda era estudante em Cartago, e seguia os meus cursos.

Era meio-dia. Alípio estava repassando uma declamação, segundo o costume dos estudantes, quando foi preso como ladrão pelos guardas do foro. Sem dúvida o permitiste, meu Deus, apenas para que esse jovem, tão grande no futuro, começasse já a aprender que, ao julgar outrem, ninguém deve condenar ninguém levianamente, e com temerária credulidade.

Alípio, pois, passeava diante do tribunal, sozinho, com as tábuas e o estilete, quando um jovem estudante, o verdadeiro ladrão, levando um machado escondido, sem que Alípio o percebesse, entrou pelas grades que rodeiam a rua dos banqueiros, e se pôs a cortar o seu chumbo.

Ao ruído dos golpes, os banqueiros que estavam em baixo alvoroçaram-se, e chamaram gente para prender o ladrão, fosse quem fosse. Mas este, ouvindo o vozerio, fugiu depressa, abandonando o machado para não ser preso com ele. Ora, Alípio, que não o vira entrar, viu-o sair e fugir precipitadamente. Curioso, porém, para saber a causa, entrou no lugar. Encontrou o machado e pôs-se, admirado, a examiná-lo. Bem nessa hora chegaram os guardas dos banqueiros, e surpreendem-no sozinho, empunhando o machado, a cujos golpes, alarmados, haviam acudido. Prendem-no, levam-no, e gloriam-se, diante dos inquilinos do foro por ter apanhado o ladrão em flagrante, e já o iam entregar aos rigores da justiça.

Mas a lição devia ficar por aqui, Senhor, porque imediatamente saíste em socorro de sua inocência, da qual eras única testemunha. Quando o conduziam à prisão ou ao suplício, veio-lhes ao encontro um arquitecto, encarregado superior da direcção dos edifícios públicos. Os guardas alegraram-se com esse encontro, pois sempre que faltava alguma coisa no foro o magistrado suspeitava deles. Agora ele saberia quem era o verdadeiro ladrão. Mas este senhor tinha visto várias vezes Alípio na casa de um senador, a quem visitava com frequência. Reconheceu-o, tomou-o pela mão, separou-o da turba, e perguntou-lhe a causa de tamanha desgraça.

Informado do que se passara, o arquitecto mandou à turba alvoroçada e enfurecida contra Alípio que o seguisse. Quando chegaram à casa do jovem autor do roubo, achava-se à porta um menino escravo, novo demais para recear comprometer o seu amo, e que poderia revelar tudo, porque o seguira até o foro. Alípio, ao reconhecê-lo, apontou-o ao arquitecto; este, mostrando-lhe o machado, lhe disse: “Sabe de quem é este machado?” Ao que o menino respondeu sem demora: “Nosso”. Depois de interrogado, confessou o resto.

Deste modo, o processo foi transferido para aquela casa, para confusão da turba, que já imaginara tripudiar de Alípio. O futuro dispensador de tua palavra, e juiz de tantas causas de tua Igreja, saiu dessa aventura com mais experiência e sabedoria.

(cont)

(Revisão de versão portuguesa por ama)


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