Questão
97: Da mudança das leis.
Art.
3 — Se o costume pode obter força de lei e abrogar a lei.
(IIª-IIªª,
q. 79, a 2; ad 2; IV Sent., dist. XXXIII, q. 1, a. 1, ad 1; Quodl. II, q. 4, a.
3; IX, q. 4, a. 2).
O terceiro discute-se assim. — Parece
que o costume não pode obter força de lei nem abrogar a lei.
1. — Pois, a lei humana deriva da lei
da natureza e da lei divina, como do sobredito resulta (q. 93, a. 3; q. 95, a.
2). Ora, o costume dos homens não pode mudar a lei da natureza, nem a lei
divina. Logo, também não pode mudar a humana.
2. Demais. — Muitos males não podem
fazer um bem. Ora, quem primeiro começou a agir contra a lei fez mal. Logo, a
multiplicação de actos semelhantes nada poderá fazer de bom. Ora, a lei, sendo
regra dos actos humanos, é um bem. Portanto, o costume não pode abrogar a lei,
de modo que obtenha força de lei.
3. Demais — Legislar é próprio de
pessoas públicas, a quem pertence governar a comunidade; por isso pessoas
particulares não podem fazer leis. Ora, o costume avigora-se por actos de
particulares. Logo, o costume não pode obter uma força tal que abrogue a lei.
Mas, em contrário, Agostinho diz: o
costume do povo de Deus e as instituições dos maiores devem ser considerados
como lei. E assim como os prevaricadores contra as leis divinas, assim também
os contentores dos costumes eclesiásticos devem ser reprimidos.
Toda lei procede da razão e
da vontade do legislador: a divina e a natural, da vontade racional de Deus; a
humana, da vontade do homem, regulada pela razão. Ora, a razão e a vontade manifestam-se,
não só pela palavra, quanto aos actos que o homem vai praticar, mas também
pelos próprios actos. Pois, cada um pratica o que considera bom. Ora, é claro,
pela palavra humana a lei não só pode ser mudada, mas também exposta,
manifestando o movimento interior e o conceito da razão humana. Donde, também actos,
sobretudo multiplicados, e geradores do costume podem mudar e expor a lei, e
mesmo produzir uma disposição com força de lei. Pois por actos exteriores e
multiplicados revela-se eficacissimamente o movimento interior da vontade e o
conceito da razão. Porque se considera proveniente do juízo deliberado da razão
o que se faz mui repetidamente. E sendo assim, o costume tanto pode ter força
de lei, como abrogá-la e interpretá-la.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
— A lei natural e a divina procedem da vontade divina, como já se disse. Por
isso não pode ser mudada pelo costume procedente da vontade humana, mas só por
autoridade divina. Donde, nenhum costume pode ter força de lei contra a lei
divina ou a natural. Pois, diz Isidoro: Ceda o uso à autoridade; o mau uso
estirpe a lei e a razão.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como já dissemos
(q. 96, a. 6), as leis humanas são deficientes em certos casos. Por isso é possível
às vezes, em caso de deficiência da lei, agir fora dos seus termos, sem ser mau
o acto assim praticado. Ora, a multiplicação de tais casos, por alguma mudança
existente nos homens, manifesta, pelo costume, que a lei já não é útil, assim
como isso mesmo se manifestaria se uma lei contrária fosse verbalmente
promulgada. Se, porém ainda permanecer a mesma razão, pelo qual a primeira lei
era útil, não é o costume que suplanta a lei, mas a lei, o costume. Salvo
talvez se a lei for considerada como inútil só por não ser exequível, de acordo
com o costume pátrio, o que era uma das condições dela. Pois, é difícil remover
o costume do povo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O povo, em que
se realiza o costume, pode ter dupla condição. — Se for livre e capaz de
legislar, vale mais o consenso de toda a multidão, para o fim de se observar
alguma disposição manifestada pelo costume, do que a autoridade do chefe, que
não tem o poder de legislar senão enquanto representa a personalidade do povo. Donde,
embora pessoas singulares não possam legislar, contudo a totalidade do povo
pode-o. — Outro caso é o do povo que não tem poder livre de legislar para si ou
de remover a lei estabelecida por um poder superior. Em tal caso, contudo, o
próprio costume, que prevalece na multidão, obtém força de lei, por ser tolerado
por aqueles a quem pertence impor a lei ao povo. Pois, por isso mesmo são
considerados como tendo aprovado o que o costume introduziu.
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.