Jesus Cristo o Santo de Deus
CAPÍTULO II
JESUS CRISTO, O HOMEM NOVO
1. O dogma de Cristo
«Verdadeiro homem» no actual momento cultural
Após
o contacto com a cultura da época e por causa de certas heresias provenientes
dela, todo o interesse pelo Cristo «homem» deslocou-se do problema da novidade, ou santidade, de tal
humanidade, para o da sua verdade ou
plenitude ontológica.
Tudo
foi concentrado na ideia da assunção
de uma humanidade por parte do Verbo.
O
facto fundamental é que Cristo assume, ou torna-se, o que nós somos, além de
não pôr o homem em questão, ainda o toma tal como é.
Somente
assim se vê a possibilidade, para o homem, de ser salvo na sua totalidade.
«O
Homem não teria sido salvo na sua totalidade se Cristo não tivesse assumido o
homem na sua totalidade» [i].
Cristo
devia ter um corpo para que o nosso corpo fosse resgatado, deveria ter uma alma
para que a nossa alma fosse resgatada e deveria ter uma vontade livre para que a
nossa liberdade também fosse resgatada.
A
Igreja, então, soube extrair da Revelação o antídoto que era necessário para a
doença do momento. O problema é que há já muito tempo que se alterou
completamente a situação cultural e o tipo de ameaça à fé, e ainda não foi
alterada adequadamente a resposta conveniente.
De
facto, ao observarmos atentamente notamos que toda a problemática hodierna
acerca da humanidade de Cristo (pelo menos quando se trata de definir a própria
pessoa de Cristo, isto é, nas discussões cristológicas) continua a girar à
volta de um problema antigo e que já não existe.
Hoje
já ninguém nega que Jesus tenha sido um homem, como diziam os docetistas. Pelo
contrário, assiste-se a um fenómeno estranho e inquietante: a «verdadeira»
humanidade de Cristo é afirmada em tácita alternativa à Sua divindade como uma
espécie de contrapeso. É como uma corrida generalizada para ver quem é mais
audaz em afirmar a «plena» humanidade de Jesus de Nazaré.
O
facto de ser plenamente e integralmente homem – lê-se num autor contemporâneo –
comportava em Jesus, além do sofrimento, da angústia, da tentação e da dúvida,
também «a possibilidade de cometer erros» [ii].
Esta
é uma afirmação absolutamente nova na tradição cristã.
Assim,
o dogma de Jesus «verdadeiro homem» tornou-se ou numa verdade aceite que não
incomoda e não inquieta ninguém, ou, pior ainda, uma verdade perigosa que serve
para legitimar, em vez de contestar, o pensamento mundano. Afirmar a plena
humanidade de Cristo é hoje como que arrombar uma porta escancarada.
Os
sinais desta tendência notam-se tanto aos níveis mais elevados da teologia como
nos mais populares da mentalidade comum e dos mass media.
Para
alguns, na expressão «verdadeiro homem», tudo o que o adjectivo «verdadeiro»
significa é o grau mais elevado de humanidade que existe em Cristo, a
excelência ou a exemplaridade da Sua humanidade, à qual os crentes chamam a Sua
«divindade».
Partindo
de um conceito humano de homem e empolando a Sua «verdadeira» humanidade,
chega-se assim a tornar supérflua ou a negar a divindade de Cristo. O conceito
moderno e mundano de homem requer de facto uma total e absoluta autonomia, para
o que Deus e o homem são incompatíveis e colidem um com o outro; «onde nasce
Deus morre o homem».
Estas
ideias são de autores que tentam delinear um «Jesus para os ateus» [iii]
Mas
há também algumas tentativas de cristologias modernas que conduzem a uma
tendência análoga, ainda que de outra forma.
Alguém,
ao afirmar a humanidade de Cristo, foi mais além que o próprio Concílio de
Calcedónia, atribuindo a Cristo não só uma carne, uma alma e uma vontade
humanas, mas também uma personalidade
humana, com a consequente e inevitável necessidade, ou afirmar que não é Deus
ou de afirmar que é «duas pessoas», não «uma só pessoa».
Fala-se
neste sentido de uma «transcendência humana» de Cristo, segundo a qual Cristo
transcenderia a história, não como Deus, mas como homem.
Fala-se
também de um «humanismo» cristológico integral. [iv]
A
insistência sobre a humanidade, como se vê, dissipa-se.
A
tendência verifica-se ainda a outros níveis de mentalidade por aí difundida. O
filme «A última tentação de Cristo»,
extraído do romance de Nikos Kasantkis (um ortodoxo excomungado pela sua Igreja
por causa deste romance, mostra um Jesus que procura desesperadamente, em toda
Sua vida, esquivar-se às exigências da vontade do Pai e que depois, na cruz, é
como que hipnotizado por imagens de pecado. Trata-se de um exemplo extremo e grosseiro
da tal mentalidade, mas que é bastante elucidativo.
Em
defesa do filme houve também alguns teólogos que opinaram:
«Se
Jesus era verdadeiro homem, porque nos havemos de nos escandalizar com tudo
isto? O homem real é assim mesmo».
Houve
também quem tivesse comentado o filme positivamente dizendo que assim sentia
mais próximo de si as suas próprias experiências aquele Cristo que tem as suas
mesmas dúvidas, as suas mesmas incertezas, as suas mesmas rebeliões.
Repete-se,
de certo modo, aquilo que acontecia no tempo do paganismo: não estando
dispostos a repudiar os seus vícios, como o adultério e o furto, que fizeram os
pagãos? – perguntava Santo Agostinho -. Atribuíram nos seus mitos estes vícios
também aos seus deuses para assim se sentirem desculpados ao cometê-los. [v]
Como
se pode censurar o homem por coisas que nem a divindade consegue evitar?
A
causa de tudo isto é que a afirmação da plena divindade de Cristo cai hoje num
terreno cultural que é exactamente o oposto do antigo, quando se deu forma ao
dogma de Cristo «verdadeiro homem».
Os
Padres viviam numa cultura marcada pelo espiritualismo e pelo desprezo (pelo
menos a nível teórico) da matéria. Nós vivemos numa cultura marcada pelo
materialismo e pela exaltação da matéria e do corpo.
Qual
é o desafio e contestação que a cultura moderna lança à Fé, acerca do homem?
Não
é certamente o preconceito anticósmico e maniqueísta do homem «desligado do
mundo», mas sim o princípio da radical mundanidade do homem.
O
discurso até nem versa muito sobre a natureza do homem, ou sobre o homem como
entidade, mas sim e sobretudo sobre o homem como projecto.
Duas
famosas declarações escritas neste novo contexto revelam com toda a crueza este
ideal do homem «terrestre» e do homem «dono de si mesmo»:
«Se
Deus existisse o homem não seria nada.
Deus
não existe…
Não
existe o Céu.
Não
existe o Inferno.
Nada
mais existe além da terra». [vi]
«Nada
existe no Céu, nem o Bem nem o Mal, nem alguém que me possa dar ordens… Sou um
homem, e todos os homens devem procurar o seu próprio caminho» [vii].
Existe
nos nossos dias uma espécie de docetismo de sinal contrário. Não é já a matéria
que é «projecção», sombra ou imagem ilusória do mundo divino e espiritual, como
acontecia na visão platónica, mas, ao contrário, é o mundo divino que é a
projecção e imagem do homem histórico. É Deus que é visto como imagem do homem,
não o homem como imagem de Deus. É a ideologia do mundanismo radical que, e
ainda bem, não é a única existente e seguida nos nossos dias, mas é decerto
perigosa e está muito difundida.
Se
Tertuliano dizia:
«Ocupemo-nos
com a Humanidade do Salvador porque a Sua divindade não nos oferece dúvidas»,
hoje nós deveremos dizer, no novo contexto cultural:
«Voltemos
e depressa a prestara tenção à divindade de Cristo já que a Sua humanidade está
mais que segura. Descubramos aquilo que Cristo tem de diferente de nós porque o
Ele tem de comum connosco é assunto pacífico e seguro. Descubramos, ao lado de
Cristo homem «verdeiro», o Cristo homem «novo!».
Que
fazer pelo dogma cristológico nesta situação nova que se criou?
A
história do pensamento humano e da própria revelação bíblica está cheia de
exemplos e de afirmações feitas para responder aos problemas específicos de
cada momento, afirmações essas que depois são retomadas e adaptadas para
responder às novas e diversas instâncias, ou para fazer frente às novas e
diversas heresias. Poderemos facilmente demonstrar como isso sucede também no
tocante ao dogma da unidade de Cristo.
A
fórmula que fala de Cristo «único e idêntico» (unus et idem», elaborada por Stº Ireneu contra os gnósticos [viii] foi imediatamente seguida por S. Cirilo de Alexandria e
pelo Concílio de Calcedónia, num sentido bem diferente, no qual o único e
idêntico sujeito era a pessoa preexistente do Verbo que Se faz carne.
O
dogma é uma «estrutura aberta» que, por isso, se pode sempre aplicar a novos
contextos mantendo a sua identidade fundamental e permanecendo assim
perenemente vivo e operante. É preciso somente permitir-lhe que possa agir,
centrando-o bem nessa nova situação.
De
facto, o dogma não se palica mecanicamente e do mesmo modo em todas as
situações que se vão manifestando ao longo dos séculos. Para isso é necessário
por vezes coloca-lo em contacto com a sua base que é a Sagrada Escritura.
O
dogma tem um valor exemplar; convida-nos a fazer hoje aquilo que os Padres
fizeram na sua época. Eles recorreram aos dados bíblicos para extrair a parte
necessária para responder às necessidades do momento e defender as matérias da
fé que naquele tempo eram objecto de discussão, deixando de lado tudo aquilo
que era consensual. Tendo que defender o facto de que Jesus era homem, para
eles bastava, por exemplo, tomar nota quase somente da Encarnação, que é o
momento em que o Verbo Se fez homem. Se, a dado momento, o facto mais importante
não é afirmar que «Jesus é homem», mas clarificar «que tipo de homem é Jesus»,
é evidente que então não basta somente tomar nota da encarnação, mas será
preciso também recordar o mistério pascal e tornar nota não só do nascimento de
Cristo, mas também da Sua vida e da Sua morte.
Com
esta ideia, voltamos sempre a questionar o Novo Testamento acerca da humanidade
do Salvador. Veremos que esse facto não leva a menosprezar a importância do
dogma da «perfeita» humanidade de Cristo definido em Calcedónia, mas a descobrir
nele novas riquezas e implicações.
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
[i] Orígenes, Diálogo com Heráclites, 7 (SCh 67, p. 71
[ii] H. Küng, Ser cristão, Milão 1976, 9. 509
[iii] Cfr. M. Machovec, Jesus para os ateus, Assis, 1973
[iv] Cfr. Schoonenberg, Um Deus de Homens, Brescia 1971, p.
102ss
[v] Cfr. Santo Agostinho, Confissões, I 16,25
[vi] J. P. Sartre, «O Diabo e o Bom Deus»,
in Teatro, Milão 1950
[vii] J. P. Sartre, As Moscas, Paris 1943, pp. 134sss
[viii]
Stº Ireneu, Ad. Haer., III, 16,8-9