COMPÊNDIO
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA
CAPÍTULO
III
A
PESSOA E OS SEUS DIREITOS
III.
OS DIREITOS HUMANOS
a)
O valor dos direitos humanos
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O movimento rumo à identificação e à proclamação dos direitos do homem é um dos
mais relevantes esforços para responder de modo eficaz às exigências
imprescindíveis da dignidade humana. A Igreja entrevê em tais direitos a
extraordinária ocasião que o nosso tempo oferece para que, mediante o seu
afirmar-se, a dignidade humana seja mais eficazmente reconhecida e promovida
universalmente como característica impressa pelo Deus Criador na Sua criatura.
O Magistério da Igreja não deixou de apreciar positivamente a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, proclamada pelas Nações Unidas em 10 de
Dezembro de 1948, que João Paulo II definiu como «uma pedra miliária no caminho
do progresso moral da humanidade».
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A raiz dos direitos do homem, com efeito, há de ser buscada na dignidade que
pertence a cada ser humano. Tal dignidade, conatural à vida humana e igual
em cada pessoa, se apreende antes de tudo com a razão. O fundamento natural dos
direitos se mostra ainda mais sólido se, à luz sobrenatural, se considerar que
a dignidade humana, doada por Deus e depois profundamente ferida pelo pecado,
foi assumida e redimida por Jesus Cristo mediante a Sua encarnação, morte e
ressurreição].
A
fonte última dos direitos humanos não se situa na mera vontade dos seres
humanos, na realidade do Estado, nos poderes públicos, mas no mesmo homem
e em Deus seu Criador. Tais direitos são «universais, invioláveis e
inalienáveis». Universais, porque estão presentes em todos os seres
humanos, sem excepção alguma de tempo, de lugar e de sujeitos. Invioláveis,
enquanto «inerentes à pessoa humana e à sua dignidade» e porque «seria vão
proclamar os direitos, se simultaneamente não se envidassem todos os esforços a
fim de que seja devidamente assegurado o seu respeito por parte de todos, em
toda a parte e em relação a quem quer que seja». Inalienáveis, enquanto
«ninguém pode legitimamente privar destes direitos um seu semelhante, seja ele
quem for, porque isso significaria violentar a sua natureza».
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Os direitos do homem hão de ser tutelados não só cada um singularmente, mas no
seu conjunto: uma protecção parcial traduzir-se-ia em uma espécie de não
reconhecimento. Eles correspondem às exigências da dignidade humana e
comportam, em primeiro lugar, a satisfação das necessidades essenciais da
pessoa, em campo espiritual e material: «tais direitos tocam todas as fases da
vida e todo o contexto político, social, económico ou cultural. Formam um
conjunto unitário, visando resolutamente a promoção do bem, em todos os seus
aspectos, da pessoa e da sociedade... A promoção integral de todas as
categorias dos direitos humanos é a verdadeira garantia do pleno respeito de
cada um deles». Universalidade e indivisibilidade são os traços
distintivos dos direitos humanos: «são dois princípios orientadores que
postulam a exigência de radicar os direitos humanos nas diversas culturas e
aprofundar a sua delineação jurídica para lhes assegurar o pleno
respeito».
b)
A especificação dos direitos
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Os ensinamentos de João XXIII, do Concílio Vaticano II, de Paulo
VI ofereceram amplas indicações da concepção dos direitos humanos
delineada pelo Magistério. Na Encíclica «Centesimus annus» João Paulo II
sintetizou-as num elenco: «o direito à vida, do qual é parte integrante o
direito a crescer à sombra do coração da mãe depois de ser gerado; o direito a
viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da
própria personalidade; o direito a maturar a sua inteligência e liberdade na
procura e no conhecimento da verdade; o direito a participar no trabalho para
valorizar os bens da terra e a obter dele o sustento próprio e dos seus
familiares; o direito a fundar uma família e a acolher e educar os filhos,
exercitando responsavelmente a sua sexualidade. Fonte e síntese destes direitos
é, em certo sentido, a liberdade religiosa, entendida como direito a viver na
verdade da própria fé e em conformidade com a dignidade transcendente da
pessoa».
O
primeiro direito a ser enunciado neste elenco é direito à vida, desde o momento
da sua concepção até ao seu fim natural, que condiciona o exercício de
qualquer outro direito e comporta, em particular, a ilicitude de toda forma de
aborto procurado e de eutanásia. É sublinhado o altíssimo valor do direito
à liberdade religiosa: «Todos os homens devem estar livres de coação, quer por
parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e
de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a
própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em
público, só ou associado com outros». O respeito de tal direito assume um
valor emblemático «do autêntico progresso do homem em todos os regimes, em
todas as sociedades e em todos os sistemas ou ambientes».
c)
Direitos e deveres
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Intimamente conexo com o tema dos direitos é o tema dos deveres do homem, que
encontra nos pronunciamentos do Magistério uma adequada acentuação. Frequentemente
se evoca a recíproca complementaridade entre direitos e deveres,
indissoluvelmente unidos, em primeiro lugar na pessoa humana que é o seu
sujeito titular. Tal laço apresenta também uma dimensão social: «no
relacionamento humano, a determinado direito natural de uma pessoa corresponde
o dever de reconhecimento e respeito desse direito por parte dos demais».
O Magistério sublinha a contradição ínsita numa afirmação dos direitos que não
contemple uma correlativa responsabilidade: «os que reivindicam os próprios
direitos, mas se esquecem por completo de seus deveres ou lhes dão menor
atenção, assemelham-se a quem constrói um edifício com uma das mãos e, com a
outra, o destrói».
d)
Direitos dos povos e das nações
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O campo dos direitos humanos se alargou aos direitos dos povos e das
nações: com efeito, «o que é verdadeiro para o homem é verdadeiro também
para os povos». O Magistério recorda que o direito internacional «se funda
no princípio de igual respeito dos Estados, do direito à autodeterminação de
cada povo e da livre cooperação em vista do bem comum superior da
humanidade». A paz funda-se não só no respeito dos direitos do homem como
também no respeito do direito dos povos, sobretudo o direito à independência.
Os
direitos das nações «não são outra coisa senão os “direitos humanos”
compreendidos neste específico nível da vida comunitária». A nação tem «um
fundamental direito o direito à existência»; à «própria língua e cultura,
mediante as quais um povo exprime e promove ... a sua originaria “soberania”
espiritual»; a «modelar a própria vida segundo as suas tradições, excluindo,
naturalmente, toda a violação dos direitos humanos fundamentais e, em
particular, a opressão das minorias»; a «edificar o próprio futuro, oferecendo
às gerações mais jovens uma educação apropriada». A ordem internacional requer
um equilíbrio entre particularidade e universalidade, ao qual são chamadas
todas as nações, para as quais o primeiro dever é o de viver em atitude de paz,
respeito e solidariedade com as outras nações.
e)
Colmatar a distância entre letra e espírito
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A solene proclamação dos direitos do homem é contradita por uma dolorosa
realidade de violações, guerras e violências de todo tipo, em primeiro lugar os
genocídios e as deportações em massa, a difusão quase que por toda a parte de
formas sempre novas de escravidão quais o tráfico de seres humanos, as crianças
soldados, a exploração dos trabalhadores, o tráfico de drogas, a prostituição:
«Também nos países onde vigoram formas de governo democrático, nem sempre estes
direitos são totalmente respeitados»
Existe,
infelizmente, uma distância entre a «letra» e o «espírito» dos direitos do
homem aos quais frequentemente se vota um respeito puramente formal. A
doutrina social, em consideração ao privilégio conferido pelo Evangelho aos
pobres, reafirma repetidas vezes que «os mais favorecidos devem renunciar a
alguns dos seus direitos, para poder colocar, com mais liberalidade, os seus
bens ao serviço dos outros» e que uma afirmação excessiva de igualdade «pode
dar azo a um individualismo em que cada qual reivindica os seus direitos, sem
querer ser responsável pelo bem comum».
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A Igreja, consciente de que a sua missão essencialmente religiosa inclui a defesa
e a promoção dos direitos fundamentais do homem, «tem em grande apreço o
dinamismo do nosso tempo que, em toda parte, dá novo impulso aos mesmos
direitos». A Igreja adverte profundamente a exigência de respeitar dentro
do seu próprio âmbito a justiça e os direitos do homem.
O
empenho pastoral se desenvolve numa dúplice direcção: de anúncio do fundamento
cristão dos direitos do homem e de denúncia das violações de tais
direitos: em todo caso, «o anúncio é sempre mais importante do que a
denúncia, e esta não pode prescindir daquele, pois é isso que lhe dá a
verdadeira solidez e a força da motivação mais alta». Para ser mais
eficaz, tal empenho é aberto à colaboração ecuménica, ao diálogo com as outras
religiões, a todos os oportunos contactos com os organismos, governamentais e
não governamentais, nos planos nacional e internacional. A Igreja confia,
sobretudo na ajuda do Senhor e do Seu Espírito que, derramado nos corações, é a
garantia mais segura do respeito da justiça e dos direitos humanos, e de
contribuir, portanto, para a paz: «promover a justiça e a paz, penetrar com a
luz e o fermento evangélico todos os campos da existência social, tem sido
sempre um constante empenho da Igreja em nome do mandato que ela recebeu do
Senhor».