A
CIDADE DE DEUS
Vol. 2
LIVRO XIII
CAPÍTULO XVIII
Dizem os filósofos que os corpos terrestres não podem estar entre os
celestes porque o seu peso natural os conduz à Terra.
Mas, dizem eles, pelo seu peso natural os corpos terrestres têm necessariamente
de se manter na Terra ou a ela voltar; no Céu é que não podem estar. Os
primeiros homens, é certo, viviam num a terra, coberta de bosques e de árvores
de fruto, que recebeu o nome de Paraíso. Mas, como também a isto é preciso
responder, quer por causa do corpo com que Cristo subiu ao Céu, quer por causa do que os santos terão na
ressurreição — examinemos com um pouco mais de atenção a natureza desses pesos
terrestres.
Com efeito, se a arte humana por certos processos faz boiar vasos feitos de
metais que, se fossem postos na água, logo se afundariam — não será muito mais
crível e muito mais eficaz o processo secreto de agir de Deus por cuja vontade
omnipotente, diz Platão, pode não morrer o que nasceu, pode não se dissociar o
que está unido? Todavia, não será a união do incorpóreo e do corpóreo muito
mais admirável do que a união de qualquer corpo seja com que corpo for? Será
que Deus não poderá conceder as massas terrestres que não caiam sob a pressão
do seu peso e às almas perfeitamente felizes que coloquem onde quiserem e movam
como quiserem, sem a menor dificuldade, o seu próprio corpo, terrestre, sem
dúvida, mas doravante incorruptível? Quando os anjos tomam, onde lhes apraz,
quaisquer animais terrestres e os colocam onde lhes apraz — teremos que pensar
que eles não o fazem sem esforço ou que lhes sentem o peso? Porque não havemos
então de acreditar que os espíritos dos santos, tornados felizes e perfeitos,
são capazes, mercê de um dom divino, de transportar os seus corpos para onde
quiserem e de os deter sem a menor dificuldade? De facto, os corpos terrestres,
como normalmente sentimos quando transportamos fardos, quanto mais volumosos tanto mais pesados são; e o peso de muitos deles
oprime-nos mais que o peso de poucos. Todavia, a alma transporta com mais
facilidade os membros robustos da sua carne, quando gozam de boa saúde, do que
os emagrecidos pela doença. Para o que transporta outro, é mais pesado o corpo
são e vigoroso do que o fraco e enfermo, e para mover e transportar o seu próprio corpo, é-se
mais ágil quando a boa saúde lhe dá mais volume do que quando se está extenuado
pela peste ou pela fome. Não é o peso da quantidade, mas o equilíbrio do seu
estado o que confere tal poder aos corpos terrestres, mesmo que sejam ainda
corruptíveis e mortais. E quem será capaz de explicar com palavras a distância
que separa aquilo a que chamamos saúde presente da imortalidade futura?
Não venham os filósofos argumentar com o peso dos corpos contra a nossa fé. Eu
nem quero indagar porque é que eles rejeitam a possibilidade de um corpo
terrestre estar no Céu, quando toda a Terra está suspensa no nada. Talvez se
encontre um argumento mais ou menos verosímil recorrendo a esse centro do
Mundo para o qual convergem todos os corpos pesados. Mas, pergunto eu, se os deuses menores, a quem Platão encarregou de fazerem, além dos outros animais terrestres, também o homem, puderam, com o ele
diz, tirar ao fogo a qualidade de queimar, deixando-lhe a de brilhar que pode
ser emitida pelos olhos, [i]
se Platão atribui à vontade e ao
poder de Deus Supremo que os nascidos
não morram e que coisas tão diversas e dissemelhantes como são as corpóreas e
as incorpóreas, unidas entre si, se não possam separar,
— porque havemos de ter dúvidas em reconhecer ao Deus Supremo o poder de
subtrair à corrupção a carne do homem a quem confere a imortalidade, o poder de
lhe conservar a sua natureza com a harmonia dos seus traços e dos seus membros
e o poder de lhe tirar o estorvo do seu peso?
Mas da fé na ressurreição dos mortos e dos seus corpos imortais tratarei com
mais cuidado, se Deus quiser, no fim desta obra.
CAPÍTULO XIX
Contra a doutrina dos que não crêem que os primeiros homens seriam imortais,
caso não tivessem pecado, e afirmam a eternidade das almas separadas dos corpos.
Tratem os agora, conforme planeámos, dos corpos dos primeiros homens. A morte
que não é boa senão para os bons, mas de todos é conhecida e não apenas de uns
poucos inteligentes e crentes, e que consiste na separação da alma e do corpo
em virtude da qual o corpo do ser animado que, como é evidente, vivia, com o é
também evidente, morre — a morte podia ter sido poupada aos homens se eles pelo pecado
a não tivessem merecido. Não é lícito duvidar de que as almas dos defuntos
justos e piedosos vivem em descanso; seria, porém, preferível para eles viverem
com seus corpos sãos. Até mesmo os que sustentam que a maior felicidade
consiste em se viver sem corpo, são desta opinião, assim se contradizendo a si próprios. De facto,
nenhum deles se atreveria a pôr acima dos deuses imortais homens sábios mas já
mortos ou a morrer, isto é, privados dos seus corpos ou prestes a deixá-los;
todavia, foi a esses deuses que, segundo Platão, o Deus Supremo prometeu, com o
sendo o grande privilégio, uma vida indissolúvel, isto é, a eterna companhia
dos seus corpos. Conforme entende o mesmo Platão, é para os homens um bem
supremo (se tiverem passado esta vida piedosamente e como justos) o serem
admitidos, após a separação 0s seus corpos, no seio dos próprios deuses que
nunca deixarão os seus corpos, — mas de tal maneira que, como diz Vergílio,
inspirando-se em Platão:
Olvidados do passado podem
contemplar de novo a abóbada celeste. E de novo começam a desejar o regresso aos corpos.[ii]
(Efectivamente, Platão pensa que as almas dos mortais não podem ficar sempre
nos seus corpos, mas são deles separadas necessariamente pela morte; mas também
não podem viver sempre sem os corpos. Sem cessar os homens passam
alternativamente da vida à morte e da morte à vida). Mas os sábios têm uma sorte
diferente da dos outros homens: são transportados ao Céu após a morte para aí
descansarem durante algum tempo, cada um no astro que lhe convém; depois,
esquecidos das suas misérias passadas e vencidos pelo desejo de terem um corpo,
voltam aos trabalhos e aos sofrimentos dos mortais. Quanto aos que levaram uma
vida insensata, esses voltam imediatamente a corpos de homens ou de animais,
conforme os seus méritos.
A condição tão dura submeteu Platão até as almas boas e sábias, às quais não
foram atribuídos corpos com que tivessem que viver sempre na imortalidade, de
maneira que não podem permanecer nos corpos nem viver sem eles em eterna
pureza. Como referimos nos livros anteriores, Porfírio, já nos tempos cristãos, envergonhou-se desta doutrina
platónica. Não só excluiu das almas humanas os corpos dos irracionais, mas
também quis libertar dos vínculos corpóreos as almas dos sábios, de maneira
que, «fugindo de todo o corpo», sejam retidas junto do Pai numa felicidade sem
fim. Para que não parecesse que eravencido por Cristo, que promete aos santos um a vida perpétua, também ele
colocou em eterna felicidade as almas purificadas sem qualquer regresso às
antigas misérias; mas, para com bater a Cristo, negou a ressurreição de corpos
incorruptíveis e sustentou que as almas viveriam eternamente sem corpos
terrestres, mesmo sem qualquer corpo.
Mas esta opinião, valha o que valer, não o levou a proibir pelo menos que se
prestasse culto religioso aos deuses corporais. Porque procedeu assim senão
porque não considerou as almas, embora já desligados do corpo, como superiores
aos deuses? Se, portanto, estes filósofos não ousam — julgo que jamais o ousarão — preferir as almas humanas aos deuses
bem-aventurados, mas dotados de corpos eternos, porque considerarão eles absurda
a nossa fé cristã que ensina que não só os primeiros homens, criados para não serem separados dos seus corpos
pela morte, se não pecassem, deveriam, em recompensa da sua obediência, ser
dotados de imortalidade de maneira a viverem eternam ente nos seus corpos, mas também que os santos hão-de ter na ressurreição os mesmos corpos com que
aqui penaram, de modo que à sua carne não pode sobrevir corrupção ou
dificuldade alguma, nem dor ou desventura alguma pode acontecer à sua
felicidade?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i]
A teoria de que o olho emitia um raio luminoso era admitida não só por Santo
Agostinho, mas também por muitos contemporâneos seus.
[ii]
Vergílio, Eneida, VI, 750-751.