Leitura espiritual
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A Cidade de Deus |
Vol. 1
LIVRO
IV
CAPÍTULO
XXV
Deve-se
adorar um só Deus de quem, embora se ignore o nome, todavia se tem o sentimento
de que é Ele o dispensador da felicidade.
Dada esta explicação, ser-nos-á talvez muito
mais fácil convencer do que pretendemos aqueles cujo coração não esteja
demasiado endurecido. Se, na verdade, a debilidade humana já sentiu que um só
Deus é que pode dar a felicidade, — e se tal é o sentimento de homens que
veneravam tantos deuses, entre eles o próprio Júpiter, rei dos deuses — é
porque ignoravam o nome d ’Aquele por quem a felicidade é concedida e por isso
pretenderam chamá-lo pelo nome da coisa que julgavam que era por ele concedida.
Pensaram, pois, com bastante justeza que a felicidade não lhes podia ter sido
concedida nem pelo próprio Júpiter, que já veneravam, mas antes por Aquele que
julgavam que deviam venerar sob o nome de Felicidade. Afirmo, sem dúvidas, que
eles acreditavam que a felicidade era concedida por um certo deus que
ignoravam. Pois então que o procurem, que o venerem, e isso bastará. Repudiem o
alarido dos inúmeros demónios. Não se satisfaça com este Deus o que se não
satisfaz com os seus dons. Não baste este Deus dispensador de felicidade como
objecto de culto àquele a quem não basta como dádiva a própria felicidade. Mas
àquele a quem ela basta (e de facto o homem não tem por que mais deva aspirar),
sirva o Deus único que concede a felicidade. Não é aquele a quem chamam Júpiter.
Se realmente vissem nele o dispensador de felicidade, não teriam procurado sob
o nome de Felicidade um outro deus ou deusa que lhes desse a felicidade. Nem
julgariam que deveriam venerar o próprio Júpiter com tantas infâmias. Diz-se
que ele foi adúltero com mulheres de outros, diz-se que ele foi o raptor e
impudico amante de um jovem formoso.
CAPÍTULO
XXVI
Jogos
cénicos. Os deuses exigiram dos seus adoradores que os celebrassem em sua
homenagem.
Mas, diz Túlio «tudo isto são ficções de Homero que transferia para os deuses as
fraquezas humanas. Eu teria preferido que ele transferisse para nós as virtudes
divinas» [i].
Com razão desagradava a um homem sério este poeta inventor dos crimes dos
deuses. Porque é que, então, os jogos cénicos, em que estas coisas são
repetidamente contadas, cantadas, representadas, exibidas em honra dos deuses,
foram inscritos pelos mais doutos no número das coisas divinas? Clame aqui
Cícero, não contra as ficções dos poetas, mas contra as instituições dos
antepassados — não suceda que sejam eles a clamar «Que é que nós fizemos? Foram
os próprios deuses que reclamaram a exibição dos jogos em sua honra, foram eles
que os impuseram ameaçadoramente, foram eles que anunciaram calamidades se lhes
fossem recusados, foram eles que castigaram severissimamente os que os
negligenciaram, foram eles que, depois da reparação, se declararam aplacados».
Vou relatar o que se conta de entre os factos extraordinários do seu poder: a
Tito Latino, camponês romano, pai de família, foi ordenado em sonho que
informasse o Senado de que se tornava necessário recomeçar os jogos romanos, e
que no primeiro dia da sua celebração se ordenasse a execução de um criminoso
perante todo o povo — triste ordem que teria desagradado aos deuses que nestes
jogos só procuravam evidentemente o folguedo. Como aquele que em sonho fora
avisado não se atreveu a cumprir a ordem no dia seguinte, o mesmo lhe foi
ordenado de novo e mais severamente na noite seguinte; porque o não fez, perdeu
um filho. Na terceira noite, foi dito ao homem que recairia sobre ele castigo
mais grave se não cumprisse. Como nem assim se atreveu — caiu numa dolorosa e
horrível doença. Então, a conselho de amigos, expôs o caso aos magistrados e
foi transportado numa liteira ao Senado — e logo que contou o sonho recuperou
imediatamente a saúde e regressou são, por seu pé. Estupefacto com tamanho
prodígio, o Senado quadruplicou o dinheiro e determinou que recomeçassem os
jogos.
Quem, dotado de são juízo, não verá que os
homens sujeitos aos maus demónios — sujeição de que só a graça de Deus por
Jesus Cristo Nosso Senhor os poderá libertar — foram forçados a oferecer a tais
deuses o que, em recto conselho, se pode considerar vergonhoso? Com certeza,
naqueles jogos instaurados por ordem do Senado sob pressão dos deuses, o que
foi celebrado foram os crimes dos deuses contados pelos poetas. Nesses jogos,
os mais torpes histriões cantavam, imitavam e deleitavam a Júpiter, o corruptor
da pudicícia. Se aquilo era fingido — ele deveria indignar-se; mas, se se
deleitava com os seus crimes, fingidos embora, como venerá-lo sem servir ao
Diabo? Será este Júpiter quem fundou, dilatou e conservou o Império Romano —
ele que é mais abjecto do que qualquer homem a quem tais actos causariam
repulsa? É este deus, — a quem se presta um tão infeliz culto e que, se tal
culto lhe não é prestado, mais infelizmente ainda se enfurece —, é este quem
concede a felicidade?
CAPÍTULO
XXVII
As
três categorias de deuses acerca dos quais discorreu o pontífice Cévola.
Conta-se em alguns escritos que o doutíssimo
pontífice Cévola distinguiu três categorias de deuses — uma introduzida pelos
poetas, outra pelos filósofos e a terceira pelos chefes do Estado. Diz ele que
a primeira categoria é uma trapaça, porque inventa muitas coisas indignas acerca
dos deuses. A segunda não convém aos Estados porque compreende coisas
supérfluas e até outras cujo conhecimento é prejudicial aos povos. Quanto às
supérfluas, o caso é sem importância; os juristas costumam dizer que o
supérfluo não prejudica [ii] . Quais
são então as coisas cujo conhecimento é prejudicial ao povo? São estas, diz
ele: «Hércules, Esculápio, Castor e Pólux não são deuses; ensinam os sábios,
efectivamente, que estes foram homens e que, segundo a natureza humana,
morreram». Que mais? Isto: «que as cidades não possuem representações
verdadeiras dos que são realmente deuses porque um verdadeiro deus não tem
sexo, nem idade, nem um corpo bem individualizado». É isto que esse pontífice
não quer que o povo saiba. Não é que tenha isto por falso; mas parece-lhe
conveniente que os Estados se mantenham enganados em matéria de religião. O
próprio Varrão não tem dúvidas em dizê-lo nos seus livros acerca das coisas
divinas. Maravilhosa religião de que se socorre o débil que deseja libertar-se:
quando para se salvar busca a verdade, são de parecer que o que lhe convém é
que seja enganado. Nos mesmos escritos não se esconde porque é que Cévola
repudia as categorias dos deuses dos poetas: porque deformam a tal ponto os
deuses, que nem sequer podem ser comparados a pessoas decentes. A este fazem-no
ladrão, àquele fazem-no adúltero; ou então às vezes fazem-lhes dizer e fazer
inépcias e torpezas. Três deusas disputam entre si o prémio da beleza: as duas
vencidas por Vénus destroem Tróia! O próprio Júpiter se disfarça de boi ou de
cisne para copular com uma mulher; uma deusa desposa um homem; Saturno devora
os filhos; não é possível imaginar prodígios ou vícios que lá não se encontrem
— o que é coisa que está muito longe da natureza dos deuses.
Ó Cévola, pontífice máximo, suprime os jogos
se és capaz! Ordena que aos deuses imortais não prestem honras tais os povos
que se comprazem em admirar os crimes dos deuses e em imitá-los na medida em
que puderem. Mas, se o povo te responder: «Fostes vós, os pontífices, que os
introduzistes entre nós», roga aos próprios deuses por cuja instigação vós os
prescrevestes que proíbam tais exibições! Se eles são maus e, portanto, devem
ser considerados absolutamente indignos da majestade divina, maior é ainda a ofensa
dos deuses acerca dos quais se criam impunemente ficções.
Mas eles não te ouvirão: são demónios,
ensinam a depravação, comprazem-se nas coisas torpes. Não consideram como
injúrias que deles se inventem essas coisas. Para eles, seria antes injúria — que
não poderiam suportar — se nas suas solenidades não as representassem.
Mas, se contra os jogos apelardes para
Júpiter, principalmente porque neles é a este deus que se atribuem mais crimes
— ainda mesmo que lhe chameis o deus Júpiter que administra e governa todo este
mundo, não lhe fareis a maior das injúrias julgando que ele tem que ser
venerado na companhia desses deuses e representando-o como rei deles?
CAPÍTULO
XXVIII
O
culto dos deuses serviu aos Romanos para obterem e dilatarem o seu Império?
De forma nenhuma para dilatarem e conservarem
o Império Romano tiveram poder esses deuses que com tais honras se aplacam, ou
melhor, se incriminam — cujo crime em se comprazerem com mentiras é maior do
que se fosse verdade o que deles se diz. De facto, se tal poder tivessem, tão
grande dom tê-lo-iam outorgado antes aos Gregos, que lhes tributaram culto com
mais honra e mais dignidade nesta categoria de coisas divinas, isto é, nos
jogos cénicos.
De facto não quiseram subtrair-se à
mordacidade dos poetas pelos quais, — bem viam —, os deuses eram despedaçados;
deram-lhes permissão para maltratarem também os homens que lhes apetecesse; não
consideraram torpes os próprios histriões, mas, ao contrário, julgaram-nos
dignos das mais altas honras. Mas os Romanos, assim como puderam ter moeda de
ouro sem adorarem Aurino e ter moeda de prata e de bronze sem adorarem
Argentino ou seu pai Esculano, também poderiam ter da mesma forma todos os
demais deuses que seria enfadonho relembrar. Consequentemente, de maneira
nenhuma poderiam ter um império se contra eles tivessem o verdadeiro Deus. Mas,
em compensação, se tivessem ignorado e desprezado essa multidão de falsos
deuses e conhecessem e adorassem com fé sincera e costumes puros o Deus único,
teriam tido cá, qualquer que fosse a sua grandeza, um império melhor;
receberiam depois um sempiterno.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Cícero,
Tusculanas, I, 25.
[ii] Cod.
Justiniano, VI, 23; I, 17.