21/08/2014

Que sejais meninos que desejam a palavra de Deus

A nossa vontade, com a graça, é omnipotente diante de Deus. – Assim, à vista de tantas ofensas ao Senhor, se dissermos a Jesus, com vontade eficaz, indo no "eléctrico" por exemplo: "Meu Deus, quereria fazer tantos actos de amor e desagravo quantas as voltas de cada roda deste carro", naquele mesmo instante, diante de Jesus, tê-Lo-emos realmente amado e desagravado conforme o nosso desejo. Esta "ingenuidade" não esta fora da infância espiritual; é o eterno diálogo entre a criança inocente e o pai..., doido pelo seu filho: – Quanto me queres? Diz lá! – E o miudito diz, marcando as sílabas: muitos milhões! (Caminho, 897)

Na vida interior, a todos nos convém ser quasi modo geniti infantes, como esses miuditos que parecem de borracha, que se divertem até com os seus trambolhões, porque imediatamente se põem de pé e continuam com as suas correrias e também porque não lhes falta, quando é precisa, a consolação dos pais.


Se procurarmos portar-nos como eles, os tropeções e os fracassos – aliás inevitáveis – na vida interior, nunca se transformarão em amargura. Reagiremos com dor, mas sem desânimo, e com um sorriso que brota, como a água límpida, da alegria da nossa condição de filhos desse Amor, dessa grandeza, dessa sabedoria infinita, dessa misericórdia, que é o nosso Pai. Aprendi durante os meus anos de serviço ao Senhor a ser filho pequeno de Deus. E isto vos peço: que sejais quasi modo geniti infantes, meninos que desejam a palavra de Deus, o pão de Deus, o alimento de Deus, a fortaleza de Deus para se comportarem de agora em diante, como homens cristãos. (Amigos de Deus, 146).

Reflectindo 34


Barro

Na estátua do sonho que Daniel desvendou a Nabucodonosor, só os pés eram de barro e foi exactamente por aí que se derrubou e desfez toda a maravilhosa estátua!

Pés de barro! Só os pés?

Olho para mim...com olhos de VER, e tenho forçosamente de cair de joelhos e dizer:

'Senhor: Quase que não vejo a necessidade de Te pedir humildade. Ser humilde é, para mim, um objectivo que persigo desde sempre. Sempre longe, parece, cada vez mais distante porque, pobre de mim, sou formado por este barro duro e seco que é o meu carácter, que resiste a ser moldado pelas Tuas divinas mãos.
Mas não Te importes, Senhor, não Te importes com este barro que não vale nada. Parte-o, esfrangalha-o nas Tuas mãos amorosas e, estou certo, daí sairá algo que se possa - que Tu possas - aproveitar. Não dês importância à minha prosápia, à minha vaidade, ao meu desejo incontido de protagonismo e evidência.
A verdade, que Te confesso, é esta: Não sei nada, não posso nada, não tenho nada, não valho nada, não sou absolutamente nada.'

(AMA, orações diárias, 1990)


Temas para meditar 212


Humildade e Fé


Esta é a fé humilde: Querer o que Deus faz e fazer o que Deus quer.



(javier abad goméz Fidelidade Quadrante 1989 pg. 60)

Tratado da Graça 01

Tratado da Graça

Questão 109: Da necessidade da graça.
Questão 110: Da graça de Deus quanto à sua essência.
Questão 111: Da divisão da graça.
Questão 112: Da causa da graça
Questão 113: Da justificação do ímpio, que é efeito da graça operante.
Questão 114: Do mérito, que é efeito da graça cooperante.

Questão 109: Da necessidade da graça.

Em seguida devemos tratar do princípio exterior dos actos humanos, i. é Deus, enquanto, com a sua graça, nos ajuda a proceder rectamente. E primeiro devemos tratar da graça de Deus. Segundo, da sua causa. Terceiro, dos seus efeitos.

O primeiro tratado será tripartido. Assim, primeiro, trataremos da necessidade da graça. Segundo, da graça, quanto à sua própria essência. Terceiro, da sua divisão.

Na primeira questão discutem-se dez artigos:
Art. 1 — Se sem a graça o homem pode conhecer a verdade.
Art. 2 — Se o homem pode querer e fazer o bem sem a graça.
Art. 3 — Se o homem pode amar a Deus sobre todas as coisas, só pelas suas faculdades naturais, sem o auxílio da graça.
Art. 4 — Se o homem, sem a graça, só pelas suas faculdades naturais, pode cumprir os preceitos da lei.
Art. 5 — Se o homem pode merecer a vida eterna, sem a graça.
Art. 6 — Se o homem pode preparar-se a si mesmo para a graça, sem o auxílio externo da mesma.
Art. 7 — Se o homem pode ressurgir do pecado sem o auxílio da graça.
Art. 8 — Se o homem pode, sem a graça, não pecar.
Art. 9 — Se quem já conseguiu a graça pode, por si mesmo, praticar o bem e evitar o pecado, sem outro auxílio da mesma.
Art. 10 — Se o homem, constituído na graça, precisa do auxílio da mesma para perseverar.

Art. 1 — Se sem a graça o homem pode conhecer a verdade.

(II Sent., dist. XXVIII, a. 5, Cor., cap. XII, lect. I)

O primeiro discute-se assim. — Parece, que sem a graça o homem não pode conhecer a verdade.

1. — Pois, sobre a Escritura. — Ninguém pode dizer Senhor Jesus, senão pelo Espírito Santo — diz a Glosa de Ambrósio: Quem quer que diga a verdade, pelo Espírito Santo a diz. Ora, o Espírito Santo habita em nós pela graça. Logo, sem esta não podemos conhecer a verdade.

2. Demais. — Agostinho diz: As mais certas doutrinas são as por assim dizer, iluminadas pelo sol, de modo a serem vistas. Deus, porém é que ilumina, sendo a razão, para o espírito, o que é a vista para os olhos, mas os olhos do espírito são os sentidos da alma. Ora, os sentidos do corpo, por mais puros que sejam, não podem ver nada sem a luz do sol. Logo, também a mente humana, por perfeita que seja, não pode, raciocinando, conhecer a verdade, sem a iluminação divina, que é auxílio da graça.

3. Demais. — A mente humana não pode conhecer a verdade, senão pensando, como claro está em Agostinho. Ora, o Apóstolo diz (2 Cor 3, 5): Não que sejamos capazes de nós mesmos de ter algum pensamento como de nós mesmos. Logo, o homem não pode conhecer a verdade, por si mesmo, sem auxílio da graça.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Não aprovo o que disse numa oração — Deus, que só aos puros permitiste conhecer a verdade. Pois, poderia alguém objectar, que muitos, embora impuros, conhecem muitas verdades. Ora, pela graça, o homem torna -puro, conforme a Escritura (Sl 50, 12): Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova nas minhas entranhas um espírito recto. Logo, sem a graça, o homem pode, por si mesmo, conhecer a verdade.

Pelo uso ou por um acto da luz intelectual, é que conhecemos a verdade, pois, segundo o Apóstolo (Ef 5, 13), tudo o que se manifesta é luz. Ora, qualquer uso implica movimento, tomando o movimento em acepção lata, no qual se consideram movimentos o inteligir e o querer, segundo o Filósofo claramente o diz. Vemos porém, que o movimento dos seres corpóreos implica, não só a forma, que é o princípio dele ou da acção, mas também a moção do primeiro móvel. Ora, o primeiro móvel, na ordem material, é o corpo celeste. Assim, por perfeito que seja o calor do fogo, não poderia aquecer senão pela moção do corpo celeste. Ora, é manifesto, que todos os movimentos corpóreos se reduzem ao do corpo celeste, como ao primeiro motor corpóreo. Pois, assim também todos os movimentos, tanto os corpóreos como os espirituais se reduzem ao primeiro móvel absoluto, que é Deus. E portanto, por perfeita que se suponha uma natureza corpórea ou espiritual, ela não pode atualizar-se se não for movida por Deus. E esse movimento depende da ordem da sua providência e não, da necessidade natural, como o do corpo celeste. Nem só, porém todo movimento procede de Deus, como primeiro motor, mas também dele, como do acto primeiro, procede toda perfeição formal. Donde, o acto intelectual, bem como o de todo ser criado, depende de Deus, de dois modos: por haurir nele a perfeição ou a forma pela qual age, e por ser movido por ele à acção.

Mas, toda forma inerente às coisas criadas por Deus tem a sua eficiência relativa a um acto determinado, que lhe é próprio, e além do qual não pode ir senão reforçado por outra forma superveniente. Assim, a água não pode aquecer senão aquecida pelo fogo. Ora, a forma do intelecto humano é o lume inteligível, suficiente, em si mesmo, para conhecer certos inteligíveis, a saber, aqueles cujo conhecimento podemos obter por meio dos sensíveis. O que porém é superior à sua capacidade o intelecto humano não pode conhecer senão fortalecido pelo lume da graça, p. ex., pelo lume da fé ou da profecia, chamado lume da graça, por ser acrescentado à natureza. Donde, devemos dizer que para conhecer qualquer verdade o homem precisa do auxílio de Deus que o move ao seu acto. Não precisa porém, para conhecer a verdade, em todos os casos, de nova iluminação acrescentada à iluminação natural, mas só nos casos que lhe excedem o conhecimento natural. E contudo, algumas vezes milagrosamente, pela sua graça, instrui alguns, relativamente ao que podem conhecer pela razão natural, assim como, algumas vezes, faz milagrosamente algumas coisas que a natureza pode fazer.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Toda verdade, seja dita por quem for, provém do Espírito Santo, como lume, que naturalmente a infunde e move a compreender e falar a verdade. Não porém como habitando na pessoa pela graça santificante ou como conferindo algum dom habitual acrescentando ao da natureza. Pois isto só se dá no conhecimento e na expressão de algumas verdades e, sobretudo, nas que respeitam à fé, ao que se refere o texto citado do Apóstolo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O sol material ilumina exteriormente, ao passo que o sol inteligível, que é Deus, interiormente. Donde, o lume natural infuso na alma é, em si mesmo, iluminação de Deus, que permite ao conhecimento natural atingir o seu objecto. E para isto não é necessária outra iluminação, senão só para os objectos excedentes ao conhecimento natural.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Precisamos sempre, para qualquer pensamento, do auxílio divino que move o intelecto à acção, pois inteligir alguma coisa, astualmente, é pensar, como claramente o diz Agostinho.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evang.; Coment.; Leit. Esp. (Magistério - Ratzinguer)

Tempo comum XX Semana

Evangelho: Mt 22, 1-14

1 Jesus, tomando a palavra, voltou a falar-lhes em parábolas ,2 dizendo: «O Reino dos Céus é semelhante a um rei, que preparou o banquete de bodas para seu filho. 3 Mandou os seus servos chamar os convidados para as bodas, mas eles não quiseram ir. 4 Enviou de novo outros servos, dizendo: “Dizei aos convidados: Eis que preparei o meu banquete, os meus touros e animais cevados já estão mortos, e tudo está pronto; vinde às núpcias”. 5 Mas eles desprezaram o convite e foram-se, um para a sua casa de campo e outro para o seu negócio. 6 Outros lançaram mão dos servos que ele enviara, ultrajaram-nos e mataram-nos. 7 «O rei, tendo ouvido isto, irou-se e, enviando os seus exércitos, exterminou aqueles homicidas, e incendiou-lhes a cidade. 8 Então disse aos servos: “As bodas, com efeito, estão preparadas, mas os convidados não eram dignos. 9 Ide, pois, às encruzilhadas dos caminhos e a quantos encontrardes convidai-os para as núpcias”. 10 Tendo saído os seus servos pelos caminhos, reuniram todos os que encontraram, maus e bons; e a sala das bodas ficou cheia de convidados. 11 «Entrando depois o rei para ver os que estavam à mesa, viu lá um homem que não estava vestido com o traje nupcial. 12 E disse-lhe: “Amigo, como entraste aqui, não tendo o traje nupcial?”. Ele, porém, emudeceu. 13 Então o rei disse aos seus servos: “Atai-o de pés e mãos e lançai-o nas trevas lá de fora, aí haverá choro e ranger de dentes. 14 Porque são muitos os chamados mas poucos os escolhidos”».

Comentário:

Talvez que estes sejam os pecados que mais magoam o Coração de Jesus, Ele que se deixou ficar humildissimamente sob as espécies do pão tratado de forma tão soez e desprezível.

Tenhamos consciência destas gravíssimas faltas e desagravemos o Senhor na Eucaristia e, simultaneamente, peçamos por todos esses que não sabem - ou não querem saber - da reverência, amor e profundo respeito devidos à Santíssima Eucaristia.

(ama, Meditação, Mt 22, 1-14, 2011.10.09)

Leitura espiritual



Magistério

cardeal joseph ratzinger

Algumas perguntas pessoais

…/13

Comunismo.

Os sistemas comunistas fracassaram por causa do seu falso dogmatismo económico. Mas passa-se por alto com demasiada complacência o facto de que naufragaram principalmente pelo seu desprezo dos direitos humanos, pela sua subordinação da moral às exigências do sistema e às suas promessas de futuro.

A verdadeira catástrofe que provocaram não é de natureza económica; consiste no ressecamento das almas, na destruição da consciência moral. Vejo isto como um problema essencial do momento presente [...]: ninguém põe em dúvida o naufrágio económico [do comunismo], e por isso os ex-comunistas, sem duvidar um só momento, fizeram-se liberais em economia. Mas a problemática moral e religiosa, o problema de fundo, permanece quase que totalmente posto de lado.

A problemática deixada atrás de si pelo marxismo continua a existir hoje: a dissolução das certezas primordiais do homem sobre Deus, sobre si mesmo e sobre o universo. Esta dissolução da consciência dos valores morais intangíveis é o nosso problema neste exacto momento [i].

Teologia da libertação e teologia da reconciliação.

Em anos passados, a Congregação para a Doutrina da Fé [...] teve de ocupar-se longamente dos problemas suscitados pela chamada teologia da libertação. Em resposta a ela, falou-se de uma teologia da reconciliação.

Vejo o fundamento [dessa teologia da reconciliação] no texto, tão importante, da segunda Epistola aos Coríntios, de São Paulo, no capítulo quinto, em que se faz um resumo da mensagem cristã; de acordo com esse texto, "nós, os Apóstolos, somos mensageiros de Deus e em nome de Deus pedimos para ser reconciliados com Deus, em Cristo" (cfr. 2 Cor 5, 11-21).

Por conseguinte, a Redenção, o Evangelho, é reconciliação com Deus. E temos que dizer que a alienação do homem consiste na sua carência de conciliação consigo mesmo, na sua divisão interior; e que é impossível a sua conciliação consigo mesmo se não estiver em paz com Deus, já que Deus é mais íntimo ao homem do que ele próprio.

É por isso que apenas o ser humano reconciliado consigo mesmo pode estar em paz com os outros. Isto depende em todo o momento de uma paz fundamental, proveniente de se estar reconciliado com Deus. Só quem está em conciliação consigo mesmo supera a alienação e, como consequência, atinge a libertação.

Neste sentido, a reconciliação profunda com o ser e, por conseguinte, com Deus e consigo mesmo, é o fundamento de toda a liberdade e de toda a capacidade de reconciliação, de que se possa viver em paz e encontrar uma justa ordem de relações [...].
Penso, na realidade, que as ideias equivocadas de liberdade e toda a tendência a auto-gerar um novo tipo de ser é produto de uma profunda falta de conciliação do homem consigo próprio, com o ser em si mesmo, e por isso leva à identificação com um ser contrário à realidade de Deus, que é negada porque não se encontra a paz com Ele.

Parece-me, por outro lado, que aqui se descobre o fundamento de um novo conceito positivo de liberdade e de paz, a partir do qual poderia elaborar-se toda uma teologia da liberdade e da paz, embebida na riqueza da Cristologia e da autêntica Eclesiologia [ii].

New Age.

A reedição de religiões e cultos pré-cristãos, que hoje se procura fazer com frequência, tem muitas explicações. Se não existe a verdade comum, vigente precisamente porque é verdadeira, o cristianismo passa a ser somente algo importado de fora, um imperialismo espiritual que se deve sacudir com não menos força que o político. Se os sacramentos não proporcionam o contacto com o Deus vivo de todos os homens, então não são mais que rituais vazios que não nos dizem nada nem nos dão nada, e, quando muito, nos permitiriam perceber o mistério que reina em todas as religiões. [...]

Mas, sobretudo, se a "sóbria embriaguez" do mistério cristão não consegue embriagar-nos de Deus, então é preciso recorrer à embriaguez real de êxtases forçados, cuja paixão nos arrebata e nos converte - ao menos por uns instantes - em "deuses", e nos permite perceber por alguns momentos o prazer do infinito e esquecer a miséria do finito [iii].

Ecologia e cristianismo.

Parece-me claro que, de facto, é o homem que ameaça retirar o sopro vital à natureza. E que a poluição do ambiente exterior que observamos é o espelho e o resultado da poluição do ambiente interior, à qual não prestamos suficiente atenção. Julgo que é também o que falta aos movimentos ecológicos.

Combatem com uma paixão compreensível e justificada a poluição do ambiente; mas a poluição espiritual que o homem provoca em si mesmo continua a ser tratada como um dos direitos da liberdade. Há aqui uma incoerência. Queremos afastar a poluição mensurável, mas não tomamos em consideração a poluição espiritual do homem e a figura da Criação que nele se encontra [...]; muito pelo contrário, defendemos tudo o que a arbitrariedade humana produz, com base num conceito completamente falso de liberdade.

Enquanto sustentarmos essa caricatura de liberdade, quer dizer, a liberdade de uma destruição espiritual interior, continuarão inexoravelmente os seus efeitos exteriores.

Julgo que devemos refletir sobre isto. Não é apenas a natureza, que tem as suas regras e as suas formas de vida, que temos de respeitar, se quisermos viver dela e nela, mas também o homem, que é interiormente uma criatura e está sujeito à ordem da Criação: não pode fazer de si mesmo tudo o que quiser, como lhe apetecer. Para que o homem possa viver a partir do interior, tem de aprender a reconhecer-se como criatura e tem de tomar consciência de que nele deve existir, por assim dizer, a pureza interior devida ao facto de ser criatura: a ecologia espiritual. Se este elemento fundamental da ecologia não for compreendido, tudo o mais se desenvolverá num sentido negativo.

A Epístola aos Romanos diz isso muito claramente no capítulo oitavo. Diz que Adão, ou seja, o homem interiormente poluído, trata a criação como um escravo, a espezinha; a criação geme sob ele, por causa dele, através dele. E hoje ouvimos o gemido da criação como nunca antes o tínhamos ouvido. São Paulo acrescenta que a criação espera a manifestação dos filhos de Deus e que respirará aliviada quando surgirem pessoas nas quais transpareça a luz de Deus. Só então a criação poderá voltar a respirar [iv].


Questões morais em discussão


Matrimónio e família.

O matrimónio monogâmico constituiu o princípio ordenador fundamental das relações entre homem e mulher, bem como a célula da formação comunitária do Estado a partir da fé bíblica. Tanto a Europa Ocidental como a Oriental moldaram a sua História e a sua concepção do homem a partir de noções de fidelidade e comunhão muito bem definidas. [...]
A Declaração dos Direitos Fundamentais fala do direito ao matrimónio, mas não prevê nenhuma proteção jurídica e moral específica para ele nem o define com mais precisão. No entanto, todos sabemos quão ameaçados estão o matrimónio e a família. Por um lado, pela corrosão da sua indissolubilidade através de formas cada vez mais fáceis de divórcio; por outro, pela nova prática, cada vez mais comum, da convivência entre homem e mulher sem a forma jurídica do matrimónio.

Há ainda, em clara contraposição a isso, as exigências dos casais homossexuais, que, paradoxalmente, reivindicam uma forma jurídica mais ou menos igual à do matrimónio.

Tal tendência representa o abandono de toda a história moral da humanidade, que sempre soube que o matrimónio, apesar das suas variadas formas jurídicas, é a convivência entre homem e mulher, aberta aos filhos e, portanto, à família. Não se trata de discriminação, mas daquilo que o ser humano é como homem e como mulher, e de como se configura juridicamente a relação mútua entre um homem e uma mulher. Se por um lado essa relação se afasta cada vez mais da sua forma jurídica, e se por outro a união homossexual é vista cada vez mais como igual ao matrimónio, encontramo-nos diante de uma dissolução da imagem do ser humano cujas consequências podem ser extremamente graves [v].

Aborto.

Nem todas as matérias morais têm o mesmo peso que o aborto e a eutanásia.

Por exemplo, se um católico discordasse do Santo Padre quanto à pena de morte ou à guerra, não seria considerado indigno de apresentar-se para receber a Sagrada Comunhão.
Embora a Igreja exorte as autoridades civis a buscar a paz, e não a guerra, e a exercer a prudência e misericórdia ao castigar os criminosos, ainda seria lícito recorrer à pena capital ou pegar em armas para repelir um agressor. Pode haver uma legítima diversidade de opinião entre os católicos a respeito da guerra e da pena de morte, mas não a respeito do aborto e da eutanásia.

Quando é manifesta a cooperação formal de uma pessoa com o grave pecado do aborto ou da eutanásia (por exemplo, no caso de um político católico, fazer campanha e votar sistematicamente a favor de leis que os legalizem), o pároco deve procurar essa pessoa, explicar-lhe os ensinamentos da Igreja a esse respeito e informá-la de que não deve apresentar-se para receber a Sagrada Comunhão enquanto não sair dessa situação objectiva de pecado, advertindo-a de que, caso contrário, a Eucaristia lhe será negada [vi].

Medo da maternidade.

Há um medo da maternidade que se apodera de grande parte dos nossos contemporâneos.
Esse medo sinaliza algo mais profundo: o outro [o filho] converte-se num adversário que se apossa de uma parte da minha vida, numa ameaça para o meu ser, para o meu livre desenvolvimento. Hoje não há uma filosofia do amor, mas apenas uma filosofia do egoísmo. [...] A possibilidade de enriquecer-me na entrega, de reencontrar-me a partir do outro e através do meu ser para o outro, é rejeitada como uma visão idealista.
É exatamente aqui que o homem se engana.

Desaconselha-se o amor. Em última análise, desaconselha-se ser homem [vii].

Controle da natalidade.

Há um estranho desinteresse pelo futuro. As crianças, que são o futuro, são vistas como uma ameaça para o presente; pensa-se que elas tiram algo da nossa vida. Não são mais consideradas uma esperança, mas um limite ao presente. É inevitável a comparação com o Império Romano decadente, que, embora ainda funcionasse como uma grande moldura histórica, já vivia, na prática, pelas acções daqueles que o iam liquidar, pois já não tinha energia vital em si mesmo [viii].

Homossexuais.

A homossexualidade é um tema relacionado com o amor entre duas pessoas e não apenas com a sexualidade. O que a Igreja pode fazer para compreender esse fenómeno?

Eu diria que duas coisas.
Em primeiro lugar, devemos ter um grande respeito por essas pessoas, que também sofrem e querem viver de um modo digno.
Por outro lado, compreender que a criação de uma forma jurídica mais ou menos semelhante ao matrimónio na verdade não as ajudaria.

Portanto, o senhor considera negativa a medida adotada pelo governo da Espanha? [a equiparação das uniões homossexuais com o matrimónio].

Sim, porque destrói a família e a sociedade.
O Direito cria a moral ou uma forma de moral, já que a população habitualmente julga que o que o Direito afirma é moralmente lícito. E se considerarmos essa união mais ou menos equivalente ao matrimónio, construiremos uma sociedade que já não reconhece o que é particular à família nem o seu caráter fundamental, isto é, o seu caráter de algo próprio do homem e da mulher, que tem o objetivo de dar continuidade - e não apenas no sentido biológico – à humanidade. Por isso, a medida adotada na Espanha não traz verdadeiro benefício aos homossexuais, uma vez que destrói os elementos fundamentais de uma ordem de direito.

A Igreja já se viu derrotada algumas vezes pelo facto de dizer "não" [,..]. Não seria possível, pelo menos, um pacto de solidariedade, reconhecido e protegido pela lei, entre dois homossexuais?

Institucionalizar um acordo desse tipo - quer o legislador queira, quer não - pareceria, aos olhos da opinião pública, como que uma nova forma de matrimónio, que passaria inevitavelmente a assumir um valor relativo. Em contrapartida, não se pode esquecer que as decisões para as quais tende hoje uma Europa por assim dizer decadente, separam-nos de todas as grandes culturas da humanidade, que sempre reconheceram o significado específico da sexualidade: que o homem e a mulher foram criados para serem, unidos, a garantia do futuro da humanidade. Garantia não apenas física, mas também moral [ix].

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





Notas:
[i] Fundamentos espirituales de Europa
[ii] Entrevista a Jaime Antúnez Aldunate
[iii] Conferência no encontro de presidentes de comissões episcopais da América Latina para a doutrina da fé, Guadalajara (México), nov 1996
[iv] O sal da terra, págs. 183-184
[v] Europa, Politik unâ Religion, conferência em Berlim a 28.11.2000, publ.em Neue Revue, Jan-Fev 2001
[vi] Carta aos bispos dos Estados Unidos, Julho de 2004
[vii] Avvennire, set 2000
[viii] Europa, Politik und Religion
[ix] El laicismo está poniendo eu peligro la libertad religiosa