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Leitura Espiritual
Cristo que passa |
São Josemaria Escrivá
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Apostolado, corredenção
Com a maravilhosa normalidade
do divino, a alma contemplativa derrama-se em afã apostólico: ardia-me o
coração dentro do peito, ateava-se o fogo na minha meditação.
Que fogo é esse senão aquele de que fala
Cristo: Vim trazer fogo (do amor
divino) à Terra: e que quero eu senão que
se acenda?
Fogo de apostolado que se
robustece na oração: não há meio melhor do que este para desenvolver através de
todo o mundo, essa batalha pacífica em que cada cristão está chamado a
participar: cumprir o que resta padecer a Cristo.
Jesus subiu aos céus,
dizíamos.
Mas o cristão pode, na
oração e na Eucaristia, conviver com Ele nos mesmos moldes dos primeiros doze,
abrasar-se no seu zelo apostólico, para com Ele fazer um serviço de
corredenção, que é semear a paz e a alegria.
Servir, pois o apostolado
não é outra coisa.
Se contarmos
exclusivamente com as nossas próprias forças, nada conseguiremos no terreno
sobrenatural; sendo instrumentos de Deus, conseguiremos tudo: tudo posso n'Aquele que me conforta.
Deus, pela, sua infinita
bondade, dispôs-Se a utilizar estes instrumentos ineptos.
Daí que o Apóstolo não
tenha outro fim senão deixar agir o Senhor, mostrar-se inteiramente disponível,
para que Deus realize - através das suas criaturas, através da alma escolhida -
a sua obra salvadora.
Apóstolo é o cristão que
se sente inserido em Cristo, identificado com Cristo, pelo Baptismo; habilitado
a lutar por Cristo pela Confirmação; chamado a servir a Deus com a sua acção no
mundo, pelo sacerdócio comum dos fiéis, que confere uma certa participação no
sacerdócio de Cristo, a qual - sendo essencialmente diferente da que constitui
o sacerdócio ministerial - o torna capaz de tomar parte no culto da Igreja e de
ajudar os homens no seu caminho para Deus, com o testemunho da palavra e do
exemplo, com a oração e a expiação.
Cada um de nós há-de ser
ipse Christus, o próprio Cristo.
Ele é o único mediador
entre Deus e os homens; e nós unimo-nos a Ele para oferecer, com Ele, todas as
coisas ao Pai.
A nossa vocação de filhos
de Deus, no meio do mundo, exige-nos que não procuremos apenas a nossa
santidade pessoal, mas que vamos pelos caminhos da terra, para convertê-los em
atalhos que, através dos obstáculos, levem as almas ao Senhor; que
participemos, como cidadãos normais e correntes, em todas as actividades
temporais, para sermos levedura que há-de informar toda a massa.
Cristo subiu aos céus, mas
transmitiu a tudo o que é honestamente humano a possibilidade concreta de ser
redimido.
São Gregório Magno trata
este grande tema cristão com palavras incisivas:
Partia assim Jesus para o lugar de onde era e voltava do lugar em
que continuava a morar. Efectivamente, no momento em que subia ao Céu, unia com
a sua divindade o Céu e a Terra. Na festa de hoje convém destacar solenemente o
facto de que tenha sido suprimido o decreto que nos condenava, o juízo que nos
tornava sujeitos à corrupção.
A natureza a que se
dirigiam as palavras "tu és pó e em pó te hás-de tornar" (Gen.
3, 19), essa mesma natureza subiu hoje ao Céu com Cristo.
Não me cansarei de
repetir, portanto, que o mundo é santificável e que a nós, cristãos, nos toca
especialmente essa tarefa, purificando-o das ocasiões de pecado com que os
homens o tornam feio e oferecendo-o ao Senhor como Hóstia espiritual, apresentada
e dignificada com a graça de Deus e o nosso esforço.
Em rigor, não se pode
dizer que haja nobres realidades exclusivamente profanas, uma vez que o Verbo
se dignou assumir uma natureza humana íntegra e consagrar a Terra com a sua
presença e com o trabalho das suas mãos.
A grande missão que
recebemos, no Baptismo, é a corredenção. Urge-nos a caridade de Cristo para
tomarmos sobre os nossos ombros uma parte dessa tarefa divina de resgatar as
almas.
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Olhai: a Redenção, que
ficou consumada quando Jesus morreu na vergonha e na glória da Cruz, escândalo
para os judeus, loucura para os gentios, por vontade de Deus continuará a
fazer-se até que chegue a hora do Senhor.
Não é compatível viver de
acordo com o Coração de Jesus Cristo e não nos sentirmos enviados como Ele, peccatores salvos facere, a salvar todos
os pecadores, convencidos de que nós mesmos precisamos de confiar cada dia mais
na misericórdia de Deus.
Daí, o desejo veemente de
nos considerarmos corredentores com Cristo, de salvar com Ele todas as almas,
porque somos, queremos ser, ipse Christus,
o próprio Jesus Cristo e Ele deu-se a si mesmo em resgate de todos.
Temos uma grande tarefa à
nossa frente.
Não é possível a atitude
de ficarmos passivos porque o Senhor declarou expressamente: negociai até eu
vir.
Enquanto esperamos o
regresso do Senhor que voltará a tomar posse plena do seu Reino, não podemos
estar de braços cruzados.
A extensão do Reino de
Deus não é só tarefa oficial dos membros da Igreja que representam Cristo, por
d'Ele terem recebido os poderes sagrados.
Vos autem estis corpus Christi, vós também sois Corpo de Cristo, ensina-nos
o Apóstolo, com o mandato concreto de negociar até ao fim.
Ainda está tanta coisa por
fazer!
Será que em vinte séculos
não se fez nada?
Em vinte séculos
trabalhou-se muito.
Não me parece, nem
objectivo nem honrado o afã de alguns em menosprezar a tarefa daqueles que nos
precederam.
Em vinte séculos
realizou-se um grande trabalho e, com frequência, foi muito bem realizado.
Outras vezes houve
desacertos, regressões, como também há agora retrocessos, medo, timidez, ao
mesmo tempo que não falta valentia, generosidade.
Mas a família humana
renova-se constantemente; em cada geração é preciso continuar com o empenho de
ajudar o homem a descobrir a grandeza da sua vocação de filho de Deus e é
necessário inculcar o mandamento do amor ao Criador e ao nosso próximo.
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Cristo ensinou-nos,
definitivamente, o caminho desse amor a Deus: o apostolado é o amor de Deus,
que transborda, dando-se aos outros. A vida interior supõe crescimento na união
com Cristo, pelo Pão, e pela Palavra.
E o afã de apostolado é a
manifestação exacta, adequada, necessária à vida interior.
Quando se saboreia o amor
de Deus sente-se o peso das almas.
Não se pode dissociar a
vida interior do apostolado, como não é possível separar em Cristo o seu ser de
Deus-Homem e a sua função de Redentor.
O Verbo quis encarnar para
salvar os homens, para fazê-los com Ele uma só coisa.
Esta é a razão da sua
vinda ao mundo: por nós e pela nossa salvação, desceu do Céu, rezamos no Credo.
Para o cristão, o
apostolado resulta conatural; não é algo que se acrescente, que se justaponha,
alheio à sua actividade diária, à sua ocupação profissional.
Tenho-o dito sem cessar,
desde que o Senhor dispôs que surgisse o Opus Dei!
Trata-se de santificar o
trabalho vulgar, de santificar-se nessas ocupações e de santificar os outros
com o exercício da profissão, cada um no seu próprio estado.
O apostolado é como a
respiração do cristão: um filho de Deus não pode viver sem esse pulsar
espiritual.
A festa de hoje
recorda-nos que o zelo pelas almas é um mandato amoroso do Senhor, que, ao
subir para a sua glória, nos envia como testemunhas suas pelo mundo inteiro.
Grande é a nossa
responsabilidade, porque ser testemunha de Cristo significa, antes de mais
nada, procurarmos comportar-nos segundo a Sua doutrina, lutar para que a nossa
conduta faça recordar Jesus e evoque a sua figura amabilíssima. Precisamos de
conduzir-nos de tal maneira, que os outros ao ver-nos possam dizer: este é
cristão, porque não odeia, porque sabe compreender, porque não é fanático,
porque está acima dos instintos, porque é sacrificado, porque manifesta
sentimentos de paz, porque ama.
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O trigo e o joio
Tracei-vos, com a doutrina
de Cristo, não com as minhas ideias, um caminho ideal para o cristão.
Concordais que é elevado,
sublime, atractivo. Mas talvez nos interroguemos: será possível viver assim na
sociedade de hoje?
É certo que o Senhor nos
chamou em momentos em que muito se fala de paz e não há paz: nem nas almas, nem
nas instituições, nem na vida social, nem entre os povos.
Fala-se continuamente de
igualdade e de democracia e abundam as castas: fechadas, impenetráveis.
Chamou-nos num tempo em
que se clama pela compreensão e a compreensão brilha pela sua ausência,
inclusivamente entre pessoas que agem de boa-fé e querem praticar a caridade,
porque - não esqueçais - a caridade, mais do que em dar, está em compreender.
Atravessamos uma época em
que os fanáticos e os intransigentes - incapazes de admitir as razões dos
outros - se põem a salvo, tachando de violentos e agressivos os que são as suas
vítimas.
Chamou-nos, enfim, quando
se ouve tagarelar muito sobre unidade e talvez seja difícil conceber que possa
tolerar-se maior desunião entre os próprios católicos, para não falar já dos
homens em geral.
Eu nunca faço
considerações políticas, porque esse não é o meu ofício. Para descrever
sacerdotalmente a situação do mundo actual, é suficiente que pensemos de novo
numa parábola do Senhor: a do trigo e do joio.
O reino dos céus é
semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo.
Porém, enquanto os
trabalhadores dormiam, veio o seu inimigo, e semeou joio no meio do trigo, e
foi-se embora.
Está claro: o campo é
fértil e a semente é boa; o Senhor do campo lançou às mãos cheias a semente no
momento propicio e com arte consumada; além disso, preparou toda uma vigilância
para proteger a recente sementeira.
Se depois apareceu o joio,
é porque não houve correspondência, já que os homens - os cristãos
especialmente - adormeceram e permitiram que o inimigo se aproximasse.
Quando os servidores
irresponsáveis perguntam ao Senhor porque cresceu o joio no seu campo, a
explicação salta aos olhos: inimicus homo
hoc fecit, foi o inimigo!
Nós, os cristãos, que
devíamos estar vigilantes para que as coisas boas, postas pelo Criador no
mundo, se desenvolvessem ao serviço da verdade e do bem, adormecemos - triste
preguiça, esse sono! -, enquanto o inimigo e todos os que o servem se moviam
sem descanso.
Bem vedes como cresceu o
joio: que sementeira tão abundante espalhada por todos os sítios!
Não tenho vocação de
profeta de desgraças.
Não desejo com as minhas
palavras apresentar-vos um panorama desolador, sem esperança.
Não pretendo queixar-me
destes tempos em que vivemos pela providência do Senhor.
Amamos esta nossa época,
porque é o âmbito em que temos de alcançar a nossa santificação pessoal.
Não admitimos nostalgias
ingénuas e estéreis; o mundo nunca esteve melhor.
Desde sempre, desde os
princípios da Igreja, quando mal se acabava de ouvir a pregação dos primeiros
doze, já surgiram violentas perseguições, começaram as heresias, propalou-se a
mentira e desencadeou-se o ódio.
Mas não é lógico negar que
o mal parece ter prosperado.
Dentro de todo este campo
de Deus, que é a Terra, herança de Cristo, irrompeu o joio: Não apenas joio,
mas abundância de joio!
Não podemos deixar
enganar-nos pelo mito do progresso perene e irreversível.
O progresso rectamente
ordenado é bom e Deus quere-o.
Contudo, tem-se mais em
conta o outro falso progresso que cega os olhos a tanta gente, porque com
frequência não percebe que a Humanidade, nalguns dos seus passos, volta atrás e
perde o que tinha conquistado antes.
O Senhor - repito -
deu-nos o mundo por herança.
Temos de ter a alma e a
inteligência despertas; temos de ser realistas, sem derrotismos.
Só uma consciência
cauterizada, só a insensibilidade produzida pela rotina, só o estouvamento
frívolo podem permitir que se contemple o mundo sem ver o mal, a ofensa a Deus,
o dano por vezes irreparável para as almas.
É preciso sermos
optimistas, mas com um optimismo que nasça da fé no poder de Deus - Deus não
perde batalhas - com um optimismo que não proceda da satisfação humana, duma
complacência néscia e presunçosa.
(cont)