1.1. «A criação é obra
comum da Santíssima Trindade» (Catecismo, 292) 3
«Criador do céu e da
terra»
«”No
princípio, Deus criou o céu e a terra”. Três coisas são afirmadas nestas
primeiras palavras da Escritura: Deus eterno deu um princípio a tudo quanto
existe fora d’Ele. Só Ele é criador (o verbo “criar” – em hebreu bara – tem
sempre Deus por sujeito). E tudo quanto existe (expresso pela fórmula “o céu e
a terra”) depende d’Aquele que lhe deu o ser» (Catecismo, 290).
Só
Deus pode criar em sentido próprio 4, o que implica originar as
coisas a partir do nada – ex nihilo – e não a partir de algo preexistente; para
isso requer-se uma potência activa infinita, que só a Deus corresponde (cf.
Catecismo, 296-298). É congruente, portanto, apropriar a omnipotência criadora
ao Pai, já que Ele é na Trindade (segundo uma clássica expressão) fons et
origo, quer dizer, a Pessoa de quem procedem as outras duas, princípio sem
princípio.
A
fé cristã afirma que a distinção fundamental na realidade é a que se dá entre
Deus e as Suas criaturas. Isto supôs uma novidade nos primeiros séculos, nos
quais, polaridade entre matéria e espírito motivava visões inconciliáveis entre
si (materialismo e espiritualismo, dualismo e monismo). O cristianismo quebrou
estes moldes, sobretudo com a sua afirmação de que também a matéria, como o
espírito, é criação do único Deus transcendente. Mais tarde, São Tomás
desenvolveu uma metafísica da criação que descreve Deus como o próprio Ser
subsistente – Ipsum Esse Subsistens. Como causa primeira, é absolutamente
transcendente ao mundo e, ao mesmo tempo, em virtude da participação do Seu ser
nas criaturas, está presente intimamente nelas, as quais dependem, em tudo,
d’Aquele a que pertence a fonte do ser. Deus é superior summo meo e ao mesmo
tempo, intimior intimo meo (Santo Agostinho, Confissões, 3,6,11; cf. Catecismo,
300).
A
literatura sapiencial do Antigo Testamento apresenta o mundo como fruto da
sabedoria de Deus (cf. Sb 9,9). «O mundo não é fruto duma qualquer necessidade,
dum destino cego ou do acaso» (Catecismo, 295), mas tem uma inteligibilidade
que a razão humana, participando na luz do Entendimento divino, pode captar,
não sem esforço e num espírito de humildade e de respeito perante o Criador e a
Sua obra (cf. Jb 42,3; cf. Catecismo, 299). Este desenvolvimento chega à sua
expressão plena no Novo Testamento; ao identificar o Filho, Jesus Cristo, com o
Logos (cf. Jo 1,1 ss), afirma que a sabedoria de Deus é uma Pessoa, o Verbo
encarnado, por quem tudo foi feito (Jo 1,3). São Paulo formula esta relação do
criado com Cristo, esclarecendo que todas as coisas foram criadas n’Ele, por
Ele e para Ele (Col 1,16-17).
Há,
pois, uma razão criadora na origem do cosmos (cf. Catecismo, 284) 5.
O cristianismo tem desde o início uma grande confiança na capacidade da razão
humana para conhecer e uma enorme segurança em que jamais a razão – científica,
filosófica, etc. – poderá chegar a conclusões contrárias à fé, pois ambas
provêm de uma mesma origem.
Não
é infrequente encontrarem-se pessoas que colocam falsas disjuntivas, como por
exemplo, entre criação e evolução. Na realidade, uma adequada epistemologia não
só distingue os âmbitos próprios das ciências naturais e da fé, mas, além
disso, reconhece na filosofia um elemento necessário de mediação, pois as
ciências, com o seu método e objecto próprios, não cobrem a totalidade do
âmbito da razão humana e a fé, que se refere ao próprio mundo de que falam as
ciências; necessita de categorias filosóficas 6 para se formular e
entrar em diálogo com a racionalidade humana.
É,
pois, lógico que desde o início, a Igreja procurasse o diálogo com a razão, uma
razão consciente do seu carácter criado, pois não se deu a si própria a
existência, nem dispõe, completamente, do seu futuro; uma razão aberta ao que a
transcende, ou seja, à Razão originária. Paradoxalmente, uma razão fechada
sobre si, que crê poder encontrar dentro de si a resposta às suas questões mais
profundas, acaba por afirmar o sem-sentido da existência e por não reconhecer a
inteligibilidade do real (niilismo, irracionalismo, etc.).
Catecismo da Igreja Católica, 279-374.
Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 51-72.
DS, n. 125, 150, 800, 806, 1333, 3000-3007, 3021-3026,
4319, 4336, 4341.
Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 10-18, 19-21,
36-39.
João Paulo II, Creo en Dios Padre. Catequesis sobre el
Credo (I), Palabra, Madrid 1996, 181-218.
Santo Agostinho, Confissões, livro XII.
São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, qq. 44-46.
São Josemaria, Homilia «Amar o mundo apaixonadamente»
em Temas Actuais do Cristianismo, 113-123.
Joseph Ratzinger, Creación y pecado, Eunsa, Pamplona
1992.
João Paulo II, Memória e Identidade, Bertrand Editora,
Lisboa 2005.
(Resumos
da Fé cristã: © 2013, Gabinete de Informação do Opus Dei na Internet)
4
Por isso se diz que Deus não necessita de instrumentos para criar, já que
nenhum instrumento possui a potência infinita necessária para criar. Daí também
que, quando se fala, por exemplo, do homem como criador ou inclusive como capaz
de participar no poder criador de Deus, o emprego do adjectivo “criador” não é
analógico mas metafórico.
5
Este ponto aparece com frequência nos ensinamentos de Bento XVI, por exemplo,
Homilia em Regensburg, 12-IX-2006; Discurso em Verona, 19-X-2006; Encontro com
o clero da diocese de Roma, 22-II-2007; etc.
6
Tanto o racionalismo cientificista como o fideísmo acientífico necessitam de
uma correcção da filosofia. Além disso, há-de evitar-se também a falsa
apologética de quem vê forçadas concordâncias, procurando nos dados que a
ciência traz uma verificação empírica ou uma demonstração das verdades de fé,
quando, na realidade, como dissemos, se trata de dados que pertencem a métodos
e disciplinas distintas.