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Leitura Espiritual
Temas actuais do cristianismo |
10
pergunta:
Desde
há muitos anos que tem vindo a dizer e a escrever que a vocação dos leigos
consiste em três coisas: “santificar o trabalho, santificar-se no trabalho e
santificar os outros com o trabalho”.
Poderia
precisar-nos o que entende exactamente por santificar o trabalho?
resposta:
É
difícil explicá-lo em poucas palavras, porque nessa expressão estão implicados
conceitos fundamentais da própria teologia da Criação.
O
que sempre ensinei - desde há quarenta anos - é que todo o trabalho humano
honesto, tanto intelectual como manual, deve ser realizado pelo cristão com a
maior perfeição possível: com perfeição humana (competência profissional) e com
perfeição cristã (por amor à vontade de Deus e em serviço dos homens).
Porque,
feito assim, esse trabalho humano, por humilde e insignificante que pareça,
contribui para a ordenação cristã das realidades temporais - a manifestação da
sua dimensão divina - e é assumido e integrado na obra prodigiosa da Criação e
da Redenção do mundo: eleva-se assim o trabalho à ordem da graça, santifica-se,
converte-se em obra de Deus, operatio Dei,
opus Dei.
Ao
recordar aos cristãos as palavras maravilhosas do Génesis - que Deus criou o
homem para que trabalhasse -, fixámo-nos no exemplo de Cristo, que passou a
quase totalidade da sua vida terrena trabalhando numa aldeia como artesão.
Amamos
esse trabalho humano que Ele abraçou como condição de vida, e cultivou e
santificou.
Vemos
no trabalho - na nobre e criadora fadiga dos homens - não só um dos mais altos
valores humanos, meio imprescindível para o progresso da sociedade e o
ordenamento cada vez mais justo das relações entre os homens, mas também um
sinal do amor de Deus para com as suas criaturas e do amor dos homens entre si
e para com Deus: um meio de perfeição, um caminho de santificação.
Por
isso, o único objectivo do Opus Dei sempre foi este: contribuir para que, no
meio do mundo, das realidades e afãs seculares, homens e mulheres de todas as
raças e de todas as condições sociais procurem amar e servir a Deus e a todos
os outros, no seu trabalho ordinário e através dele.
11
pergunta:
O
n. 5 do Decreto Apostolicam actuositatem
afirmou claramente que a animação cristã da ordem temporal é missão de toda a
Igreja. Compete, pois, a todos: à Hierarquia, ao clero, aos religiosos e aos
leigos.
Poderia
dizer-nos como vê o papel e as características de cada um desses sectores
eclesiais nessa missão única e comum?
resposta:
Na
realidade, a resposta encontra-se nos próprios textos conciliares. À Hierarquia
compete indicar - como parte do seu magistério - os princípios doutrinais que
hão-de presidir e iluminar a realização dessa tarefa apostólica [i].
Aos
leigos, que trabalham imersos em todas as circunstâncias e estruturas próprias
da vida secular, corresponde de forma específica a tarefa, imediata e directa,
de ordenar essas realidades temporais à luz dos princípios doutrinais
enunciados pelo Magistério; mas actuando, ao mesmo tempo, com a necessária
autonomia pessoal perante as decisões concretas que tenham de tomar na sua vida
social, familiar, política, cultural, etc. [ii]
Quanto
aos religiosos, que se apartam dessas realidades e actividades seculares
abraçando um estado de vida peculiar, a sua missão é dar um testemunho
escatológico público que ajude a recordar aos restantes fiéis do Povo de Deus
que não têm nesta terra morada permanente [iii].
E
não pode esquecer-se ainda que também servem a animação cristã da ordem
temporal, as numerosas obras de beneficência, de caridade e assistência social
que tantos religiosos e religiosas realizam com abnegado espírito de
sacrifício.
12
pergunta:
Uma
característica de toda a vida cristã - seja qual for o caminho através do qual
se realize - é a “dignidade e a liberdade dos filhos de Deus”.
A
que se refere, pois, quando ao longo de todos os seus ensinamentos defende tão
insistentemente a liberdade dos leigos?
resposta:
Refiro-me
precisamente à liberdade pessoal que os leigos têm para tomar, à luz dos
princípios enunciados pelo Magistério, todas as decisões concretas de ordem
teórica ou prática - por exemplo, em relação às diversas opiniões filosóficas,
económicas ou políticas, às correntes artísticas e culturais, aos problemas da
sua vida profissional ou social, etc. - que cada um julgue em consciência mais
convenientes e mais de acordo com as suas convicções pessoais e aptidões
humanas.
Este
necessário âmbito de autonomia que o leigo católico necessita para não ficar
capitidiminuído perante os outros leigos, e para poder levar a cabo, com
eficácia, a sua peculiar tarefa apostólica no meio das realidades temporais,
deve ser sempre cuidadosamente respeitado por todos os que na Igreja exercemos
o sacerdócio ministerial.
A
não ser assim - se se pretendesse instrumentalizar o leigo para fins que
ultrapassam os que são próprios do ministério hierárquico - incorrer-se-ia num
anacrónico e lamentável clericalismo.
Limitar-se-iam
enormemente as possibilidades apostólicas do laicado - condenando-o a perpétua
imaturidade -, mas sobretudo pôr-se-iam em perigo - hoje, especialmente - os
próprios conceitos de autoridade e de unidade na Igreja.
Não
podemos esquecer que a existência, também entre os católicos, de um autêntico
pluralismo de critério e de opinião, nas coisas que Deus deixou à livre
discussão dos homens, não só se não opõe à ordenação hierárquica e à necessária
unidade do Povo de Deus, mas ainda as robustece e as defende contra possíveis
impurezas.
13
pergunta:
Sendo
tão diversas na sua realização prática a vocação do leigo e a do religioso -
ainda que tenham de comum, evidentemente, a vocação cristã -, como é possível
que os religiosos, nas suas actividades docentes, etc., possam formar os cristãos
correntes num caminho verdadeiramente laical?
resposta:
Será
possível na medida em que os religiosos - cuja benemérita actividade ao serviço
da Igreja admiro sinceramente - se esforcem por compreender bem quais são as
características e as exigências da vocação laical para a santidade e o
apostolado no meio do mundo, e as queiram e saibam ensinar aos alunos.
14
pergunta:
Com
certa frequência ao falar do laicado, costuma-se esquecer a realidade da
presença da mulher e com isto esfuma-se o seu papel na Igreja.
Igualmente,
ao tratar-se da “promoção social da mulher”, é costume entendê-la simplesmente
como presença da mulher na vida pública. Poderia dizer-nos como entende a
missão da mulher na Igreja e no mundo?
resposta:
Não
vejo nenhuma razão pela qual, ao falar do laicado, - da sua vida apostólica, de
direitos e deveres, etc. - se deva fazer qualquer espécie de distinção ou
discriminação em relação à mulher.
Todos
os baptizados - homens e mulheres - participam igualmente da comum dignidade, liberdade
e responsabilidade dos filhos de Deus. Na Igreja existe esta unidade radical e
necessária que já São Paulo ensinava aos primeiros cristãos: Quicumque enim in Christo baptizati estis,
Christum induistis. Non est Judaeus, neque Graecus: non est servus, neque
liber. non est masculus, neque femina[iv];
não há judeu, nem grego; não há servo, nem livre, não há homem, nem mulher.
Exceptuando
a capacidade jurídica de receber ordens sagradas - distinção que por muitas
razões, também de direito divino positivo, considero que se deve reter -, penso
que se devem reconhecer plenamente à mulher na Igreja - na sua legislação, na
sua vida interna e na sua acção apostólica - os mesmos direitos e deveres que
aos homens: direito ao apostolado, a fundar e a dirigir associações, a
manifestar responsavelmente a sua opinião em tudo o que se refira ao bem comum
da Igreja, etc.
Bem
sei que tudo isto - que teoricamente não é difícil de admitir se se
considerarem as claras razões teológicas que o apoiam - encontrará, de facto resistência
por parte de algumas mentalidades.
Ainda
recordo o assombro e até a crítica com que determinadas pessoas - que, agora,
pelo contrário, tendem a imitar, nisto como em tantas outras coisas -
comentaram o facto de o Opus Dei procurar que adquirissem graus académicos em
ciências sagradas também as mulheres que pertencem à Secção feminina da nossa
Associação.
Penso,
no entanto, que estas resistências e reticências irão caindo a pouco e pouco.
No
fundo é só um problema de compreensão eclesiológica: reparar que a Igreja não é
formada só pelos clérigos e religiosos, mas que também os leigos - homens e
mulheres - são Povo de Deus e têm, por direito divino, uma missão e
responsabilidade próprias.
Mas
desejaria acrescentar que, a meu ver, a igualdade essencial entre o homem e a
mulher exige precisamente que se saibam captar ao mesmo tempo os papéis
complementares de um e outro na edificação da Igreja e no progresso da
sociedade civil: porque não foi em vão que os criou Deus homem e mulher.
Esta
diversidade há-de compreender-se não num sentido patriarcal, mas em toda a
profundidade que tem, tão rica de matizes e consequências, que liberta o homem
da tentação de masculinizar a Igreja e a sociedade, e a mulher de entender a
sua missão, no Povo de Deus e no mundo, como uma simples reivindicação de
actividades até agora apenas realizadas pelo homem, mas que ela pode
desempenhar igualmente bem.
Parece-me,
pois, que tanto o homem como a mulher se hão-de sentir justamente protagonistas
da história da salvação, mas um e outro de forma complementar.
Entrevista realizada por Pedro
Rodríguez, publicada em Palabra (Madrid), Outubro de 1967
(cont)
[i] (cf. Const. Lumen
gentíum, n.º 28; Const. Gaudium et spes, n.º 43; Decr. Apostolicam
actuositatem, n.º 24).
[ii] (cfr. Const. Lumen
gentium, n.º 31; Const. Gaudium et spes, n.º 43; Decr. Apostolicam
actuositatem, n.º 7).
[iii] (cfr. Const. Lumen
gentium, n.º 44; Decr. Perfectae caritatis, n.º 5)