COMPÊNDIO
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA
CAPÍTULO
III
A
PESSOA E OS SEUS DIREITOS
III.
A PESSOA HUMANA E OS SEUS VÁRIOS PERFIS
C)
A LIBERDADE DA PESSOA
143
A liberdade é misteriosamente inclinada a trair a abertura à verdade e ao bem
humano e, muito frequentemente, prefere o mal e o fechamento egoístico,
arvorando-se em divindade criadora do bem e do mal: «Estabelecido por Deus na
justiça, o homem, seduzido pelo Maligno, logo no começo da história — lê-se na
Gaudium et spes —, abusou da sua liberdade, erguendo-se contra Deus e desejando
alcançar o seu fim à margem de Deus. [...] Recusando muitas vezes reconhecer
Deus como seu princípio, o homem, por isso mesmo, desfaz a justa ordenação para
o seu fim último e simultaneamente para consigo mesmo e também para com os
outros homens e todas as coisas criadas». A liberdade do homem necessita,
portanto, de ser libertada. Cristo, com a força do Seu mistério pascal liberta
o homem do amor desordenado de si mesmo, que é fonte do desprezo do
próximo e das relações caracterizadas pelo domínio sobre o outro; Ele revela
que a liberdade se realiza no dom sincero de si e, com o Seu sacrifício na
Cruz, reintroduz todo homem na comunhão com Deus e com os próprios semelhantes.
D)
A IGUALDADE EM DIGNIDADE DE TODAS AS PESSOAS
144.
«Deus não faz distinção de pessoas» (At 10, 34; cf. Rm 2, 11; Gal 2, 6; Ef 6,
9), pois todos os homens têm a mesma dignidade de criaturas à Sua imagem e
semelhança. A Encarnação do Filho de Deus manifesta a igualdade de todas
as pessoas quanto à dignidade: «Já não há judeu nem grego, nem escravo nem
livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gal 3,
28; cf. Rm 10, 12; 1 Cor 12, 13; Col 3, 11).
Uma
vez que no rosto de cada homem resplandece algo da glória de Deus, a dignidade
de cada homem diante de Deus é o fundamento da dignidade do homem perante os
outros homens. Este é o fundamento último da radical igualdade e
fraternidade entre os homens independentemente da sua raça, nação, sexo,
origem, cultura, classe.
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Somente o reconhecimento da dignidade humana pode tornar possível o crescimento
comum e pessoal de todos (cf. Tg 2, 1-9). Para favorecer um semelhante
crescimento é necessário, em particular, apoiar os últimos, assegurar efectivamente
condições de igual oportunidade entre homem e mulher, garantir uma objectiva
igualdade entre as diversas classes sociais perante a lei.
Também
nas relações entre povos e Estados, condições de equidade e de paridade são o
pressuposto para um autêntico progresso da comunidade internacional.
Apesar dos avanços nesta direcção, não se deve esquecer de que ainda existem
ainda muitas desigualdades e formas de dependência.
A
uma igualdade no reconhecimento da dignidade de cada homem e de cada povo, deve
corresponder a consciência de que a dignidade humana poderá ser salvaguardada e
promovida somente de forma comunitária, por parte de toda a humanidade. Somente
pela acção concorde dos homens e dos povos sinceramente interessados no bem de
todos os outros, é que se pode alcançar uma autêntica fraternidade
universal; vice-versa, a permanência de condições de gravíssima
disparidade e desigualdade empobrece a todos.
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O “masculino” e o “feminino” diferenciam dois indivíduos de igual dignidade,
que porém não reflectem uma igualdade estática, porque o específico feminino é
diferente do específico masculino e esta diversidade na igualdade é
enriquecedora e indispensável para uma harmoniosa convivência humana: «A
condição para assegurar a justa presença da mulher na Igreja e na sociedade é a
análise mais penetrante e mais cuidada dos fundamentos antropológicos da
condição masculina e feminina, de forma a determinar a identidade pessoal
própria da mulher na sua relação de diversidade e de recíproca complementaridade
com o homem, não só no que se refere às posições que deve manter e às funções
que deve desempenhar, mas também e mais profundamente no que concerne a sua
estrutura e o seu significado pessoal».
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A mulher é o complemento do homem, como o homem é o complemento da mulher:
mulher e homem se completam mutuamente, não somente do ponto de vista físico e
psíquico, mas também ontológico. É somente graças a essa dualidade do
«masculino» e do «feminino» que o «humano» se realiza plenamente. É «a unidade
dos dois», ou seja, uma “unidualidade” relacional, que consente a cada um
sentir a própria relação interpessoal e recíproca como um dom que é ao mesmo
tempo uma missão: «A esta “unidade dos dois”, está confiada por Deus não só a
obra da procriação e a vida da família, mas a construção mesma da
história». «A mulher é “auxiliar” para o homem, assim como o homem é
“auxiliar” para a mulher!»: no seu encontro realiza-se uma concepção
unitária da pessoa humana, baseada não na lógica do egocentrismo e da auto-afirmação,
mas na lógica do amor e da solidariedade.
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As pessoas deficientes são sujeitos plenamente humanos, titulares de direitos e
deveres: «apesar das limitações e dos sofrimentos inscritos no seu corpo e nas
suas faculdades, põem mais em relevo a dignidade e a grandeza do homem».
Dado que a pessoa deficiente é um sujeito com todos os seus direitos, ela deve
ser ajudada a participar na vida familiar e social em todas as suas dimensões e
em todos os níveis acessíveis às suas possibilidades.
É
necessário promover com medidas eficazes e apropriadas os direitos da pessoa
deficiente: «Seria algo radicalmente indigno do homem e seria uma negação da
humanidade comum admitir à vida da sociedade, e portanto ao trabalho, só os
membros na plena posse das funções do seu ser, porque, procedendo desse modo,
recair-se-ia numa forma grave de discriminação, a dos fortes e sãos contra os
fracos e doentes». Uma grande atenção deverá ser reservada não só às
condições físicas e psicológicas de trabalho, à justa remuneração, à
possibilidade de promoções e à eliminação dos diversos obstáculos, mas também
às dimensões afectivas e sexuais da pessoa deficiente: «Também ela precisa de
amar e de ser amada, precisa de ternura, de proximidade, de intimidade», segundo
as próprias possibilidades e no respeito da ordem moral, que é a mesma para os
sãos e para os que têm uma deficiência.
E)
SOCIABILIDADE HUMANA
149
A pessoa é constitutivamente um ser social, porque assim a quis Deus que a
criou. A natureza do homem se patenteia, desta forma, como natureza de um ser
que responde às próprias necessidades a base de uma subjectividade relacional,
ou seja, à maneira de um ser livre e responsável, que reconhece a necessidade
de integrar-se e de colaborar com os próprios semelhantes e é capaz de comunhão
com eles na ordem do conhecimento e do amor: «Uma sociedade é um conjunto de
pessoas ligadas de maneira orgânica por um princípio de unidade que ultrapassa
cada uma delas. Assembleia ao mesmo tempo visível e espiritual, uma sociedade
que perdura no tempo; ela recolhe o passado e prepara o futuro».
Importa
manifestar que a vida comunitária é uma característica natural que
distingue o homem do resto das criaturas terrenas. O agir social comporta um
sinal particular do homem e da humanidade, o de uma pessoa operante em uma
comunidade de pessoas: este sinal determina a sua qualificação interior e
constitui, num certo sentido, a sua própria natureza. Tal característica
relacional, à luz da fé, adquire um sentido mais profundo e estável. Feito à
imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26), e constituído no universo visível
para viver em sociedade (cf. Gn 2, 20.23) e dominar a terra (cf. Gn 1,
26.28-30), a pessoa humana é, por isso, desde o princípio, chamada à vida
social: «Deus não criou o homem como um “ser solitário”, mas o quis como um
“ser social”. A vida social não é, portanto, extrínseca ao homem, dado que ele
não pode crescer nem realizar a sua vocação senão em relação com os
outros».
150
A sociabilidade humana não desemboca automaticamente na comunhão das pessoas,
no dom de si. Por causa da soberba e do egoísmo, o homem descobre em si
gérmenes de insociabilidade, de fechamento individualista e de opressão do
outro. Toda sociedade digna desse nome pode considerar estar na verdade
quando cada membro seu, graças à própria capacidade de conhecer o bem,
persegue-o para si e para os outros. É por amor do bem próprio e de outrem que
se dá a união em grupos estáveis, tendo como fim a conquista de um bem comum.
Também as várias sociedades devem adentrar por relações de solidariedade, de
comunicação e de colaboração, a serviço do homem e do bem comum.
151 A sociabilidade humana
não é uniforme, mas assume multíplices expressões. O bem comum depende, efectivamente,
de um são pluralismo social. As múltiplas sociedades são chamadas a constituir
um tecido unitário e harmónico, onde cada uma possa conservar e desenvolver a
própria fisionomia e autonomia. Algumas sociedades, como a família, a
comunidade civil e a comunidade religiosa são mais imediatamente conexas com a
íntima natureza do homem, enquanto outras procedem da vontade livre: «A fim de
favorecer a participação do maior número na vida social, é preciso encorajar a
criação de associações e instituições de livre escolha, “com fins económicos,
culturais, sociais, desportivos, recreativos, profissionais, políticos, tanto no
âmbito interno das comunidades políticas como no plano mundial”. Esta
“socialização” exprime, igualmente, a tendência natural que impele os seres
humanos a se associarem para atingir objectivos que ultrapassam as capacidades
individuais. Desenvolve as qualidades da pessoa, particularmente seu espírito
de iniciativa e de responsabilidade. Ajuda a garantir seus direitos».