CARTA
ENCÍCLICA
HAURIETIS AQUAS
DO
SUMO PONTÍFICE PAPA PIO XII
AOS
VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS
E BISPOS E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM
PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE
O CULTO DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
I
FUNDAMENTOS E PREFIGURAÇÕES DO CULTO AO SAGRADO CORAÇÃO
DE JESUS NO ANTIGO TESTAMENTO
10.
Portanto, ao vermos que tamanha abundância de águas, quer dizer, de dons
celestiais do supremo amor, que têm brotado do Sagrado Coração do nosso
Redentor, se derramam sobre incontáveis filhos da Igreja católica por obra e
inspiração do Espírito Santo, não podemos, veneráveis irmãos, deixar de
exortar-vos com ânimo paterno a que, juntamente connosco, tributeis louvores e
profundas acções de graças ao dispensador de todos os bens, repetindo estas
palavras do apóstolo das gentes:
"Aquele
que é poderoso para fazer, acima de toda medida, com incomparável excesso, mais
do que pedimos ou pensamos, segundo o poder que desenvolve em nós a sua energia,
a ele glória na Igreja e em Cristo Jesus por todas as gerações, nos séculos dos
séculos. Amém" [i].
Mas,
depois de tributarmos as devidas graças ao Deus eterno, queremos por meio desta
encíclica exortar-vos, a vós e a todos os amadíssimos filhos da Igreja, a uma
mais atenta consideração dos princípios doutrinais contidos na Bíblia, nos
santos padres, e nos teólogos; princípios nos quais, como em sólidos
fundamentos, se apoia o culto do Sacratíssimo Coração de Jesus.
Porque
nós estamos plenamente persuadidos de que só quando à luz da divina revelação
houvermos penetrado a fundo a natureza e a essência íntima deste culto, é que
poderemos apreciar devidamente a sua incomparável excelência e a sua
inexaurível fecundidade em toda sorte de graças celestiais, e destarte,
meditando e contemplando piedosamente os inúmeros bens que ela produz,
poderemos celebrar dignamente o primeiro centenário da festa do Sacratíssimo
Coração de Jesus na Igreja universal.
11.
Com o fim, pois, de oferecer à mente dos féis o alimento de salutares
reflexões, com as quais possam eles mais facilmente compreender a natureza
deste culto, tirando dele frutos mais abundantes, deter-nos-emos antes de tudo
nas páginas do Antigo e do Novo Testamento que contêm a revelação e descrição
da caridade infinita de Deus para com o género humano, caridade cuja sublime
grandeza jamais poderemos esquadrinhar suficientemente; depois aduziremos o
comentário que sobre ela nos deixaram os padres e doutores da Igreja; e,
finalmente, procuraremos esclarecer a íntima conexão que existe entre a forma
de devoção que se deve tributar ao Coração do Divino Redentor e o culto que os
homens estão obrigados a render ao amor, que Ele e as outras Pessoas da
Santíssima Trindade têm a todo género humano. Pois achamos que, uma vez
considerados à luz da Sagrada Escritura e da tradição os elementos
constitutivos desta nobilíssima devoção, aos cristãos será mais fácil
chegarem-se "com gáudio às águas das fontes do Salvador" [ii];
quer dizer, poderão eles apreciar melhor a singular importância que o culto ao
Coração Sacratíssimo de Jesus adquiriu na liturgia da Igreja, na sua vida
interna e externa, e também nas suas obras; e assim cada um poderá obter frutos
espirituais que assinalarão uma salutar renovação nos seus costumes, segundo os
desejos dos pastores do rebanho de Cristo.
3)
O amor de Deus, motivo dominante do culto ao Santíssimo Coração de Jesus, no
Antigo Testamento
12.
Para melhor poder compreender a força que com relação a esta devoção encerram
alguns textos do Antigo e do Novo Testamento, é preciso entender bem o motivo
pelo qual a Igreja tributa ao Coração do Divino Redentor o culto de latria.
Duplo,
veneráveis irmãos, como bem sabeis, é tal motivo:
o
primeiro, que é comum também aos demais membros adoráveis do corpo de Jesus
Cristo, funda-se no facto de, sendo o Seu Coração parte nobilíssima da natureza
humana, estar unido hipostaticamente à pessoa do Verbo de Deus, e, portanto,
dever-se-lhe tributar o mesmo culto de adoração com que a Igreja honra a pessoa
do próprio Filho de Deus encarnado.
Trata-se,
pois, de uma verdade de fé católica, solenemente definida no concílio ecuménico
de Éfeso e no II de Constantinopla. [iii]
O
outro motivo concerne de maneira especial ao Coração do Divino Redentor, e,
pela mesma razão, confere-lhe um título inteiramente próprio para receber o
culto de latria.
Provém
ele de que, mais do que qualquer outro membro do Seu corpo, o Seu Coração é o
índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade para com o género humano.
Como
observava o nosso predecessor Leão XIII, de imortal memória, "é ínsita no Sagrado
Coração a qualidade de ser símbolo e imagem expressiva da infinita caridade de
Jesus Cristo que nos incita a retribuir-lhe o amor por amor". [iv]
13.
Coisa indubitável é que nos livros sagrados nunca se faz menção certa de um
culto de especial veneração e amor tributado ao Coração físico do Verbo
encarnado pela sua prerrogativa de símbolo da sua inflamadíssima caridade.
Mas
este facto, que cumpre reconhecer abertamente, não nos deve admirar, nem de
modo algum fazer-nos duvidar de que a caridade divina para connosco – razão
principal deste culto – é exaltada tanto pelo Antigo como pelo Novo Testamento
com imagens sumamente comovedoras.
E,
por se encontrarem nos livros santos que prediziam a vinda do Filho de Deus
feito homem, podem essas imagens considerar-se como um presságio daquilo que
havia de ser o símbolo e índice mais nobre do amor divino, a saber: o Coração
Sacratíssimo e Adorável do Redentor Divino.
14.
Pelo que se refere ao nosso propósito, não julgamos necessário aduzir muitos
textos do Antigo Testamento nos quais estão contidas as primeiras verdades
reveladas por Deus, mas cremos bastará recordar o pacto estabelecido entre Deus
e o povo eleito, pacto sancionado com vítimas pacíficas – e cujas leis
fundamentais, esculpidas em duas tábuas, Moisés promulgou [v]
e os profetas interpretaram -, esse pacto não se baseava somente nos vínculos
do supremo domínio de Deus e na devida obediência da parte do homem, mas
consolidava-se e vivificava-se com os mais nobres motivos do amor.
Porque
também para o povo de Israel a razão suprema de obedecer a Deus, devia ser não
tanto o temor das vinganças divinas suscitado nos ânimos pelos trovões e
relâmpagos procedentes do ardente cume do Sinai, mas, antes, o amor devido a
Deus:
"Escuta,
Israel:
O
Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus com todo
o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. E estas palavras
que hoje te ordeno estarão sobre o teu coração" [vi].
15.
Não nos deve, pois, causar estranheza que Moisés e os profetas, aos quais o
Doutor angélico chama com razão os "maiorais" do povo eleito, [vii]
compreendendo bem que o fundamento de toda a lei se baseava neste mandamento do
amor, descrevessem as relações todas existentes entre Deus e a sua nação,
recorrendo a semelhanças tiradas do amor recíproco entre pai e filhos, ou do
amor dos esposos, em vez de representá-las com imagens severas inspiradas no
supremo domínio de Deus ou na nossa devida servidão cheia de temor.
Assim,
por exemplo, no seu celebérrimo cântico pela libertação do seu povo da servidão
do Egito, ao querer exprimir como essa libertação era devida à intervenção omnipotente
de Deus, o próprio Moisés recorre a estas comovedoras expressões e imagens:
"Assim
como a águia provoca os seus filhotes a alçarem o vôo e acima deles revoluteia,
assim também (Deus) estendeu as suas asas e acolheu (Israel) e carregou-o nos
seus ombros" [viii].
Talvez,
porém, entre os profetas, nenhum exprima e descubra melhor, tão clara e
ardentemente, quanto Oseias, o amor constante de Deus para com seu povo.
Com
efeito, nos escritos deste profeta, que entre os profetas menores sobressai
pela profundeza de conceitos e pela concisão da linguagem, Deus é descrito
amando o seu povo escolhido com um amor justo e cheio de santa solicitude, qual
é o amor de um pai cheio de misericórdia e de amor, ou de um esposo ferido na
sua honra.
É
um amor que, longe de decair e de cessar à vista de monstruosas infidelidades e
pérfidas traições, castiga-os, sim, como eles merecem, mas não para os repudiar
e os abandonar a si mesmos, mas só com o fim de limpar, de purificar a esposa
afastada e infiel e os filhos ingratos, para tornar a uni-los novamente consigo
uma vez renovados e confirmados os vínculos de amor:
"Quando
Israel era criança amei-o; e do Egito chamei meu filho... Ensinei Efraim a
andar, tomei-o nos meus braços, mas eles não reconheceram que eu cuidava deles.
Com vínculos humanos atraí-los-ei, com laços de amor... Sanar-lhes-ei as
rebeldias, amá-los-ei generosamente, pois minha ira não se afastou deles. Serei
como o orvalho para Israel, ele florescerá como o lírio e lançará suas raízes
qual o Líbano" [ix].
16.
Expressões semelhantes tem o profeta Isaías quando apresenta o próprio Deus e o
povo escolhido como que dialogando entre si com estas palavras:
"Mas
Sião disse: O Senhor abandonou-me e esqueceu-se de mim. Pode, acaso, uma mulher
esquecer o seu pequenino de sorte que não se apiede do filho de suas entranhas?
Ainda que esta se esquecesse, eu não me esquecerei de ti" [x].
Nem
menos comovedoras são as palavras com que, servindo-se do simbolismo do amor conjugal,
o autor do Cântico dos Cânticos descreve com vivas cores os laços de amor mútuo
que unem entre si, Deus e a nação predilecta:
"Como
lírio entre os espinhos, assim é minha amada entre as donzelas... Eu sou de meu
amado e meu amado é meu: o que se apascenta entre os lírios... Põe-me como selo
sobre teu coração, como selo sobre teu braço, pois forte como a morte é o amor,
duros como o inferno os ciúmes: seus ardores São ardores de fogo e de
chamas" [xi].
17.
Com todo esse amor, terníssimo, indulgente e longânime mesmo quando se indigna
pelas repetidas infidelidades do povo de Israel, Deus nunca chega a repudiá-lo
definitivamente; mostra-se, sim, veemente e sublime; mas, contudo, em
substância isso não passa do prelúdio daquela inflamadíssima caridade que o
Redentor prometido havia de mostrar a todos com o seu amantíssimo coração, e
que ia ser o modelo do nosso amor e a pedra angular da nova aliança.
Porque,
em verdade, só aquele que é o Unigénito do Pai e o Verbo feito carne
"cheio de graça e de verdade" [xii],
tendo descido até os homens oprimidos de inúmeros pecados e misérias, podia
fazer brotar da sua natureza humana, unida hipostaticamente à sua pessoa
divina, "um manancial de água viva" que regasse copiosamente a terra árida
da humanidade, transformando-a em florido e fértil jardim.
E
essa obra admirável que o amor misericordioso e eterno de Deus devia realizar,
de certo modo já parece prenunciá-la o profeta Jeremias com estas palavras:
"Amei-te
com amor eterno; por isso atrai-te a mim cheio de misericórdia... Eis vêm dias,
afirma o Senhor, em que pactuarei com a casa de Israel e com a casa de Judá uma
aliança nova: este será o pacto que eu concertarei com a casa de Israel depois
daqueles dias, declara o Senhor: Porei a minha lei no interior dele e
escrevê-la-ei no seu coração, e serei o seu Deus e eles serão o meu povo...;
porque perdoarei a sua culpa e não mais me lembrarei dos seus pecados" [xiii].
(Revisão
da versão portuguesa por ama)
[iii] Conc. Ephes., cân. 8;
cf. Mansi, Sacrorum Conciliorum amplissima collectio, IV,1083, C.; Conc. Const.
II, cân. 9; cf. ibid., IX, 382 E.
[iv] Cf. Enc. Annum
Sacrum: Acta Leonis, 19 (1900), p. 76.
[vii] Summa Theol., I-II,
q. 2, a. 7; ed. Leon. t. 8,1895, p. 34.
[ix] Os 11, 1.3-4; 14, 5-6