23/06/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual


CARTA ENCÍCLICA
HAURIETIS AQUAS
DO SUMO PONTÍFICE PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA

SOBRE O CULTO DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
I
FUNDAMENTOS E PREFIGURAÇÕES DO CULTO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS NO ANTIGO TESTAMENTO

10. Portanto, ao vermos que tamanha abundância de águas, quer dizer, de dons celestiais do supremo amor, que têm brotado do Sagrado Coração do nosso Redentor, se derramam sobre incontáveis filhos da Igreja católica por obra e inspiração do Espírito Santo, não podemos, veneráveis irmãos, deixar de exortar-vos com ânimo paterno a que, juntamente connosco, tributeis louvores e profundas acções de graças ao dispensador de todos os bens, repetindo estas palavras do apóstolo das gentes:
"Aquele que é poderoso para fazer, acima de toda medida, com incomparável excesso, mais do que pedimos ou pensamos, segundo o poder que desenvolve em nós a sua energia, a ele glória na Igreja e em Cristo Jesus por todas as gerações, nos séculos dos séculos. Amém" [i].
Mas, depois de tributarmos as devidas graças ao Deus eterno, queremos por meio desta encíclica exortar-vos, a vós e a todos os amadíssimos filhos da Igreja, a uma mais atenta consideração dos princípios doutrinais contidos na Bíblia, nos santos padres, e nos teólogos; princípios nos quais, como em sólidos fundamentos, se apoia o culto do Sacratíssimo Coração de Jesus.
Porque nós estamos plenamente persuadidos de que só quando à luz da divina revelação houvermos penetrado a fundo a natureza e a essência íntima deste culto, é que poderemos apreciar devidamente a sua incomparável excelência e a sua inexaurível fecundidade em toda sorte de graças celestiais, e destarte, meditando e contemplando piedosamente os inúmeros bens que ela produz, poderemos celebrar dignamente o primeiro centenário da festa do Sacratíssimo Coração de Jesus na Igreja universal.

11. Com o fim, pois, de oferecer à mente dos féis o alimento de salutares reflexões, com as quais possam eles mais facilmente compreender a natureza deste culto, tirando dele frutos mais abundantes, deter-nos-emos antes de tudo nas páginas do Antigo e do Novo Testamento que contêm a revelação e descrição da caridade infinita de Deus para com o género humano, caridade cuja sublime grandeza jamais poderemos esquadrinhar suficientemente; depois aduziremos o comentário que sobre ela nos deixaram os padres e doutores da Igreja; e, finalmente, procuraremos esclarecer a íntima conexão que existe entre a forma de devoção que se deve tributar ao Coração do Divino Redentor e o culto que os homens estão obrigados a render ao amor, que Ele e as outras Pessoas da Santíssima Trindade têm a todo género humano. Pois achamos que, uma vez considerados à luz da Sagrada Escritura e da tradição os elementos constitutivos desta nobilíssima devoção, aos cristãos será mais fácil chegarem-se "com gáudio às águas das fontes do Salvador" [ii]; quer dizer, poderão eles apreciar melhor a singular importância que o culto ao Coração Sacratíssimo de Jesus adquiriu na liturgia da Igreja, na sua vida interna e externa, e também nas suas obras; e assim cada um poderá obter frutos espirituais que assinalarão uma salutar renovação nos seus costumes, segundo os desejos dos pastores do rebanho de Cristo.

3) O amor de Deus, motivo dominante do culto ao Santíssimo Coração de Jesus, no Antigo Testamento

12. Para melhor poder compreender a força que com relação a esta devoção encerram alguns textos do Antigo e do Novo Testamento, é preciso entender bem o motivo pelo qual a Igreja tributa ao Coração do Divino Redentor o culto de latria.
Duplo, veneráveis irmãos, como bem sabeis, é tal motivo:
o primeiro, que é comum também aos demais membros adoráveis do corpo de Jesus Cristo, funda-se no facto de, sendo o Seu Coração parte nobilíssima da natureza humana, estar unido hipostaticamente à pessoa do Verbo de Deus, e, portanto, dever-se-lhe tributar o mesmo culto de adoração com que a Igreja honra a pessoa do próprio Filho de Deus encarnado.
Trata-se, pois, de uma verdade de fé católica, solenemente definida no concílio ecuménico de Éfeso e no II de Constantinopla. [iii]
O outro motivo concerne de maneira especial ao Coração do Divino Redentor, e, pela mesma razão, confere-lhe um título inteiramente próprio para receber o culto de latria.
Provém ele de que, mais do que qualquer outro membro do Seu corpo, o Seu Coração é o índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade para com o género humano.
Como observava o nosso predecessor Leão XIII, de imortal memória, "é ínsita no Sagrado Coração a qualidade de ser símbolo e imagem expressiva da infinita caridade de Jesus Cristo que nos incita a retribuir-lhe o amor por amor". [iv]

13. Coisa indubitável é que nos livros sagrados nunca se faz menção certa de um culto de especial veneração e amor tributado ao Coração físico do Verbo encarnado pela sua prerrogativa de símbolo da sua inflamadíssima caridade.
Mas este facto, que cumpre reconhecer abertamente, não nos deve admirar, nem de modo algum fazer-nos duvidar de que a caridade divina para connosco – razão principal deste culto – é exaltada tanto pelo Antigo como pelo Novo Testamento com imagens sumamente comovedoras.
E, por se encontrarem nos livros santos que prediziam a vinda do Filho de Deus feito homem, podem essas imagens considerar-se como um presságio daquilo que havia de ser o símbolo e índice mais nobre do amor divino, a saber: o Coração Sacratíssimo e Adorável do Redentor Divino.

14. Pelo que se refere ao nosso propósito, não julgamos necessário aduzir muitos textos do Antigo Testamento nos quais estão contidas as primeiras verdades reveladas por Deus, mas cremos bastará recordar o pacto estabelecido entre Deus e o povo eleito, pacto sancionado com vítimas pacíficas – e cujas leis fundamentais, esculpidas em duas tábuas, Moisés promulgou [v] e os profetas interpretaram -, esse pacto não se baseava somente nos vínculos do supremo domínio de Deus e na devida obediência da parte do homem, mas consolidava-se e vivificava-se com os mais nobres motivos do amor.
Porque também para o povo de Israel a razão suprema de obedecer a Deus, devia ser não tanto o temor das vinganças divinas suscitado nos ânimos pelos trovões e relâmpagos procedentes do ardente cume do Sinai, mas, antes, o amor devido a Deus:
"Escuta, Israel:
O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. E estas palavras que hoje te ordeno estarão sobre o teu coração" [vi].

15. Não nos deve, pois, causar estranheza que Moisés e os profetas, aos quais o Doutor angélico chama com razão os "maiorais" do povo eleito, [vii] compreendendo bem que o fundamento de toda a lei se baseava neste mandamento do amor, descrevessem as relações todas existentes entre Deus e a sua nação, recorrendo a semelhanças tiradas do amor recíproco entre pai e filhos, ou do amor dos esposos, em vez de representá-las com imagens severas inspiradas no supremo domínio de Deus ou na nossa devida servidão cheia de temor.
Assim, por exemplo, no seu celebérrimo cântico pela libertação do seu povo da servidão do Egito, ao querer exprimir como essa libertação era devida à intervenção omnipotente de Deus, o próprio Moisés recorre a estas comovedoras expressões e imagens:
"Assim como a águia provoca os seus filhotes a alçarem o vôo e acima deles revoluteia, assim também (Deus) estendeu as suas asas e acolheu (Israel) e carregou-o nos seus ombros" [viii].
Talvez, porém, entre os profetas, nenhum exprima e descubra melhor, tão clara e ardentemente, quanto Oseias, o amor constante de Deus para com seu povo.
Com efeito, nos escritos deste profeta, que entre os profetas menores sobressai pela profundeza de conceitos e pela concisão da linguagem, Deus é descrito amando o seu povo escolhido com um amor justo e cheio de santa solicitude, qual é o amor de um pai cheio de misericórdia e de amor, ou de um esposo ferido na sua honra.
É um amor que, longe de decair e de cessar à vista de monstruosas infidelidades e pérfidas traições, castiga-os, sim, como eles merecem, mas não para os repudiar e os abandonar a si mesmos, mas só com o fim de limpar, de purificar a esposa afastada e infiel e os filhos ingratos, para tornar a uni-los novamente consigo uma vez renovados e confirmados os vínculos de amor:
"Quando Israel era criança amei-o; e do Egito chamei meu filho... Ensinei Efraim a andar, tomei-o nos meus braços, mas eles não reconheceram que eu cuidava deles. Com vínculos humanos atraí-los-ei, com laços de amor... Sanar-lhes-ei as rebeldias, amá-los-ei generosamente, pois minha ira não se afastou deles. Serei como o orvalho para Israel, ele florescerá como o lírio e lançará suas raízes qual o Líbano" [ix].

16. Expressões semelhantes tem o profeta Isaías quando apresenta o próprio Deus e o povo escolhido como que dialogando entre si com estas palavras:
"Mas Sião disse: O Senhor abandonou-me e esqueceu-se de mim. Pode, acaso, uma mulher esquecer o seu pequenino de sorte que não se apiede do filho de suas entranhas? Ainda que esta se esquecesse, eu não me esquecerei de ti" [x].
Nem menos comovedoras são as palavras com que, servindo-se do simbolismo do amor conjugal, o autor do Cântico dos Cânticos descreve com vivas cores os laços de amor mútuo que unem entre si, Deus e a nação predilecta:
"Como lírio entre os espinhos, assim é minha amada entre as donzelas... Eu sou de meu amado e meu amado é meu: o que se apascenta entre os lírios... Põe-me como selo sobre teu coração, como selo sobre teu braço, pois forte como a morte é o amor, duros como o inferno os ciúmes: seus ardores São ardores de fogo e de chamas" [xi].

17. Com todo esse amor, terníssimo, indulgente e longânime mesmo quando se indigna pelas repetidas infidelidades do povo de Israel, Deus nunca chega a repudiá-lo definitivamente; mostra-se, sim, veemente e sublime; mas, contudo, em substância isso não passa do prelúdio daquela inflamadíssima caridade que o Redentor prometido havia de mostrar a todos com o seu amantíssimo coração, e que ia ser o modelo do nosso amor e a pedra angular da nova aliança.
Porque, em verdade, só aquele que é o Unigénito do Pai e o Verbo feito carne "cheio de graça e de verdade" [xii], tendo descido até os homens oprimidos de inúmeros pecados e misérias, podia fazer brotar da sua natureza humana, unida hipostaticamente à sua pessoa divina, "um manancial de água viva" que regasse copiosamente a terra árida da humanidade, transformando-a em florido e fértil jardim.
E essa obra admirável que o amor misericordioso e eterno de Deus devia realizar, de certo modo já parece prenunciá-la o profeta Jeremias com estas palavras:
"Amei-te com amor eterno; por isso atrai-te a mim cheio de misericórdia... Eis vêm dias, afirma o Senhor, em que pactuarei com a casa de Israel e com a casa de Judá uma aliança nova: este será o pacto que eu concertarei com a casa de Israel depois daqueles dias, declara o Senhor: Porei a minha lei no interior dele e escrevê-la-ei no seu coração, e serei o seu Deus e eles serão o meu povo...; porque perdoarei a sua culpa e não mais me lembrarei dos seus pecados" [xiii].


 (Revisão da versão portuguesa por ama)



[i] Ef 3,20-21
[ii] Is 12, 3
[iii] Conc. Ephes., cân. 8; cf. Mansi, Sacrorum Conciliorum amplissima collectio, IV,1083, C.; Conc. Const. II, cân. 9; cf. ibid., IX, 382 E.
[iv] Cf. Enc. Annum Sacrum: Acta Leonis, 19 (1900), p. 76.
[v] cf. Ex 34, 27-28
[vi] Dt 6, 4-6
[vii] Summa Theol., I-II, q. 2, a. 7; ed. Leon. t. 8,1895, p. 34.
[viii] Dt 32, 11
[ix] Os 11, 1.3-4; 14, 5-6
[x] Is 49, 14-15
[xi] Ct 2, 2; 6, 2; 8, 6
[xii] Jo 1, 14
[xiii] Jr 31, 3.31. 33-4

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