MARIA, A MÃE DE JESUS 4
A VIRGEM-MÃE
Penetremos,
por uns momentos, num lar cristão. A família reunida está rezando.
Cadenciadamente, sucedem-se as Ave-Marias do terço, como as notas de um
cântico. “Cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós...” E também,
como o refrão de uma canção: “Santa Maria, Mãe de Deus...”
Enquanto
esses corações tornam a invocar Maria com a exclamação maravilhada de Isabel –
“a Mãe do meu Senhor!” –, quase com certeza nem imaginam que, por trás dessa
doce expressão – Mãe de Deus –, estão latejando os ecos apaixonados da mais
antiga manifestação de devoção a Maria de toda a história do cristianismo.
Todo
o amor tem horas de paz e horas de sobressalto.
Nas
horas tranquilas, flui como um rio copioso e manso.
Nos
momentos em que esse amor é agredido de qualquer forma, o coração “salta”, quer
para defendê-lo com ardor, quer para externá-lo com paixão.
Foi
isto o que sucedeu com o amor por Maria no coração dos cristãos dos primeiros
séculos.
Já
nos alvores do cristianismo, a figura da Mãe de Jesus era uma amável presença
no dia-a-dia dos fiéis. Belo testemunho dessa presença é a imagem mural da
Virgem com o Menino, em clara referência à profecia de Isaías sobre a
Virgem-Mãe [i], desenhada por um devoto “grafiteiro” nas catacumbas de
Priscilla, em Roma.
Porém,
muito cedo – já a partir dos fins do século I – houve quem tentasse desvirtuar
com interpretações heréticas o ensinamento transparente do Evangelho sobre a
maternidade de Maria.
É
verdade que os primeiros ataques foram desferidos diretamente contra o Filho, e
só em consequência agrediam a Mãe. Mas é um facto também que a reacção dos
primeiros cristãos mostrou que, para eles, o amor a Maria estava
indissoluvelmente unido ao amor a Jesus Cristo. Esses ataques começaram através
dos “ebionitas”, uma seita semi-cristã de raízes judaicas, que se recusava a
admitir que Cristo fosse Filho de Deus, gerado pelo Espírito Santo no seio de uma
Virgem. Uma velha heresia, que os racionalismos e os ceticismos de todas as
épocas não deixam de desempoeirar. Para os ebonitas, Jesus teria nascido como
qualquer outro homem: fruto da união de um homem e de uma mulher; no caso, de
Maria e de José. Portanto, para eles, Cristo não seria de modo algum a segunda
pessoa da Santíssima Trindade, que se encarnou “por obra do Espírito Santo” [ii], isto é, não seria Deus verdadeiro, mas apenas um homem.
Em consequência, Maria não seria a Virgem Mãe de Deus.
Quase
ao mesmo tempo, a literatura cristã dos séculos II e III via-se invadida por
uma multidão de escritos de seitas denominadas “gnósticas”. Procedentes de
ambientes e influências sincretistas – judaísmo, filosofia neoplatónica, etc.
–, esses grupos proclamavam praticamente o contrário dos anteriores: negavam a
humanidade de Cristo. Nosso Senhor jamais teria sido homem verdadeiro, e por
isso a afirmação de São João de que “o Verbo se fez carne” [iii] careceria de sentido real.
Tais
doutrinas ensinavam que Jesus era um ser exclusivamente espiritual de origem
divina – embora distinto de Deus –, o qual teria vindo à terra através de uma
Mãe Virgem, Maria, mas com um corpo irreal, fictício, aparente, que eles
denominavam “corpo psíquico” [iv].
É
evidente que, ao negar-se a humanidade de Cristo, ficava automaticamente
anulada a verdadeira maternidade de Maria. Nossa Senhora não teria formado um
Filho em suas entranhas – sangue do seu sangue –, mas teria sido apenas o canal
de passagem de um ser espiritual. Como dizia um dos representantes dessas
seitas gnósticas, Ptolomeu, Jesus ter-se-ia limitado a “passar por Maria como a
água passa por um conduto” [v].
A
fé e o amor dos primeiros cristãos estavam atingidos em cheio. E reagiram com
força. Em face desses dois erros, os pastores e o povo fiel responderam
reafirmando e vincando vigorosamente duas verdades essenciais do mistério de
Maria Santíssima: que Ela foi verdadeira Mãe de Cristo; e que não concebeu por
obra de varão, mas por obra de Deus, mantendo intacta a sua virgindade.
Estamos
perante as primeiras manifestações colectivas da fé e da piedade marianas. Manifestações
que já em fins do século I e no século II ficam plasmadas, esculpidas, com
admirável nitidez, nos textos das mais antigas “profissões de fé” – o Credo –
das igrejas cristãs: “Creio em Jesus Cristo, Filho de Deus, que nasceu pelo
Espírito Santo da Virgem Maria”: natus est de Spiritu Sanctu ex Maria Virgine [vi].
A
fé da Igreja – de todos os fiéis – era assim fixada em formulações cristalinas.
Em primeiro lugar, Cristo é verdadeiro Homem, porque nasceu realmente de Maria,
ex Maria Virgine. Maria é sua Mãe. Já o afirmara São Paulo, escrevendo aos
Gálatas: Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido
de uma mulher [vii].
Em
segundo lugar, Jesus Cristo é Filho de Deus: nasceu do Espírito Santo, e a sua
Mãe não concebeu de varão, mas foi Virgem: de Maria Virgem.
Já
no começo do seu Evangelho, São Mateus declara sobriamente: «Maria achou-se tendo concebido do Espírito
Santo» [viii]. Mais explicitamente ainda o ensina São Lucas, o
evangelista que obteve de Maria as confidências das coisas que Ela «guardava no seu coração» [ix]. Quando o Anjo anuncia a Maria que «conceberá em seu seio e dará à luz um Filho», a Virgem responde com
um pedido de esclarecimentos:
«Como se fará isto, pois eu não conheço varão?»
Maria não duvida do que o Anjo lhe anuncia da parte de Deus. Mas precisa de uma
explicação sobre “como se fará isso”. Estas palavras não teriam sentido algum,
se a Virgem tivesse o projecto de realizar com José, com quem “estava
desposada”, a constituição de uma união matrimonial como qualquer outra. Se
Maria as pronunciou, foi porque tinha oferecido a Deus a sua virgindade, e
possuía a consciência de que Deus queria e aceitava esse oferecimento para
sempre. Por isso, não lhe foi fácil compreender como era possível que o mesmo
Deus que a queria Virgem, a quisesse também Mãe. A resposta do Anjo dissipou
todas as dúvidas:
«O Espírito Santo descerá sobre ti e a
virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso, o santo que há de
nascer de ti será chamado Filho de Deus» [x].
Desde
o século I, a fé cristã entendeu que era uma verdade divinamente revelada que
Maria foi virgem antes do parto, no parto e depois do parto [xi].
Estas
são as verdades do Evangelho. Esta é a fé que os nossos irmãos dos primeiros
séculos abraçavam com toda a sua alma, tal como o haveriam de fazer todos os
que fielmente os seguiriam no decorrer da história.
Houve
ainda um novo capítulo nessas “reações da fé e do coração”. Esse terceiro
capítulo desenvolveu-se cerca de dois séculos mais tarde. Desta vez tratou-se
de um teólogo de Antioquia, Nestório, que fora elevado à sede patriarcal de
Constantinopla. Um belo dia, começou a pregar alto e bom som contra a
maternidade divina de Maria. Dizia Nestório que Maria não deveria ser chamada
“Mãe de Deus”, mas apenas “Mãe de Cristo”. Por quê? Porque o teólogo em questão
achava necessário “dividir” Cristo, distinguindo nele duas “personalidades”
diferentes, que – segundo afirmava – só estariam justapostas uma à outra: a
humana e a divina. Por outras palavras, Cristo seria uma pessoa humana, à qual
se teria unido – associado – uma pessoa divina. Conclusão: somente a pessoa
humana seria filho de Maria. Com isso, além de desvirtuar o mistério de Cristo,
recusava-se a proclamar que Maria é, verdadeiramente, “a Mãe do meu Senhor”, a
Mãe de Deus.
A
reacção dos fiéis, hierarquia e povo cristão, não se fez esperar. Brotou com o
ímpeto de um incêndio, reafirmando em uníssono a verdade revelada por Deus:
Cristo é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade que, sem deixar de ser Deus,
assumiu nas entranhas virginais de Maria a natureza humana. N’Ele há uma só
Pessoa, a divina, e duas naturezas distintas – humana e divina – unidas num só
ser pessoal. Maria é, portanto, verdadeira Mãe de Deus, porque é a Mãe de uma
Pessoa que é Deus.
Nenhuma
mãe é apenas mãe do corpo do filho – embora só tenha gerado o corpo –, mas é
mãe do filho inteiro, de alguém, de uma pessoa – mãe de João, de António, de
Clara... –. Da mesma maneira, Maria é a Mãe de Jesus, que é uma Pessoa, uma
pessoa divina. Por isso, é verdadeira Mãe de Deus. Esta foi a verdade
reafirmada e definida, em 22 de Junho de 431, pelo Concílio de Éfeso em que a
heresia de Nestório foi condenada.
É
comovente ler a carta de São Cirilo de Alexandria, que foi a alma desse
Concílio, relatando o que aconteceu na cidade de Éfeso nesse dia de verão: ao
anoitecer, uma autêntica multidão atirou-se às ruas, depois que os bispos
reunidos acabaram de proclamar a verdade da fé e de condenar o herege.
Inflamado de entusiasmo, o povo acompanhou os Padres conciliares até os seus
domicílios, com tochas acesas e cânticos, aclamando em grandes vozes:
Theotókos, Theotókos!, o que quer dizer: Mãe de Deus, Mãe de Deus! [xii]
O
amor a Maria arrebatou os corações dos fiéis, esfuziantes de ternura. Os ecos
daquela noite memorável em Éfeso não se extinguiram nem se extinguirão jamais.
Hoje, como ontem, como sempre, brotará das fibras mais íntimas da alma dos
cristãos a alegria de dizer, saboreando-a, essa verdade de fé: “Santa Maria,
Mãe de Deus...”
(cont)
[iv] cfr. José A. de Aldama, María en la patrística de los siglos I y II,
BAC, Madrid, 1960, págs. 33 ss.
[v] cfr. Aldama, op. cit., pág. 47
[vi] cfr. Justo Collantes, La fe de la Iglesia Católica, BAC, Madrid, 1984,
págs. 280-286;
[xi] cfr. Aldama, op. cit., págs. 81 ss.
[xii]
São
Cirilo de Alexandria, Epistolae, XXIV; in Migne, Patrologia Graeca, 77, 138
[xiii]
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A MÃE DE JESUS
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