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Leitura Espiritual
Cristo que passa |
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O sal da mortificação
Para se santificar, o
cristão corrente - que não é um religioso e não se afasta do mundo, porque o
mundo é o lugar do seu encontro com Cristo - não precisa de hábito externo nem
sinais distintivos.
Os seus sinais são
internos: a constante presença de Deus e o espírito de mortificação.
Na realidade, são uma só
coisa, porque a mortificação é apenas a oração dos sentidos.
A vocação cristã é vocação
de sacrifício, de penitência, de expiação. Temos de reparar pelos nossos
pecados (já voltámos a cara tantas vezes para não vermos Deus!) e por todos os
pecados dos homens. Precisamos de seguir de perto os passos de Cristo: trazendo
sempre no nosso corpo a mortificação, a abnegação de Cristo, o seu abatimento
na Cruz, para que também a vida de Jesus se manifeste nos nossos corpos.
O nosso caminho é de
imolação e, nesta renúncia, encontraremos o gaudium
cum pace, a alegria e a paz.
Não contemplamos o mundo
com um olhar triste.
Talvez involuntariamente,
prestaram um fraco serviço à catequese os biógrafos de santos que queriam
encontrar a todo o custo coisas extraordinárias nos servos de Deus, logo desde
os primeiros vagidos. E contam de alguns deles que na sua infância não
choravam, não mamavam às sextas-feiras por mortificação...
Tu e eu nascemos a chorar,
como Deus manda; e sugámos o peito da nossa mãe sem nos preocuparmos com
Quaresmas nem Têmporas...
Agora, com o auxílio de
Deus, aprendemos a descobrir ao longo dos dias (aparentemente sempre iguais) spatium verae penitentiae, tempo de
verdadeira penitência; e nesses instantes fazemos propósitos de emendatio vitae, de melhorar a nossa
vida.
Este é o caminho para nos
predispormos à graça e às inspirações do Espírito Santo na alma.
E com essa graça - repito
- vem o gaudium cum pace, a alegria,
a paz e a perseverança no caminho.
A mortificação é o sal da
nossa vida.
E a melhor mortificação é
a que combate - em pequenos pormenores, durante todo o dia - a concupiscência
da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba de vida.
Mortificações que não
mortifiquem os outros, que nos tornem mais delicados, mais compreensivos, mais
abertos a todos.
Tu não podes ser
mortificado se és susceptível, se só vives os teus egoísmos, se dominas os
outros, se não sabes privar-te do supérfluo e, por vezes, até do necessário e,
enfim, se te entristeces quando as coisas não correm como tu tinhas previsto.
Serás, pelo contrário,
mortificado se souberes fazer-te tudo para todos para salvar a todos.
10
A fé e a inteligência
A vida de oração e de
penitência e a consideração da nossa filiação divina transformam-nos em
cristãos profundamente piedosos, como meninos pequenos diante de Deus.
A piedade é a virtude dos
filhos e, para que o filho possa entregar-se nos braços do seu pai, há-de ser e
sentir-se pequeno, necessitado. Tenho meditado com frequência na vida de
infância espiritual, que não se contrapõe à fortaleza, porque requer uma
vontade rija, uma maturidade bem temperada, um carácter firme e aberto.
Piedosos, portanto, como
meninos; mas não ignorantes, porque cada um há-de esforçar-se, na medida das
suas possibilidades, pelo estudo sério e científico da fé.
E o que é isto, senão
teologia?
Piedade de meninos, sim,
mas doutrina segura de teólogos.
O afã por adquirir esta
ciência teológica - a boa e firme doutrina cristã - deve-se, em primeiro lugar,
ao desejo de conhecer e amar a Deus.
Simultaneamente é
consequência da preocupação geral da alma fiel por alcançar a mais profunda
compreensão deste mundo, que é uma realização do Criador.
Com periódica monotonia,
há pessoas que procuram ressuscitar uma suposta incompatibilidade entre a fé e
a ciência, entre a inteligência humana e a Revelação divina.
Tal incompatibilidade só
pode surgir, e só na aparência, quando não se entendem os termos reais do
problema.
Se o mundo saiu das mãos
de Deus, se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança e lhe deu uma chispa da
sua luz, o trabalho da inteligência deve ser - embora seja um trabalho duro -
desentranhar o sentido divino que naturalmente já têm todas as coisas.
E, com a luz da fé,
compreendemos também o seu sentido sobrenatural, que resulta da nossa elevação
à ordem da graça.
Não podemos admitir o medo
da ciência, visto que qualquer trabalho, se é verdadeiramente científico, tende
para a verdade.
E Cristo disse: Ego sum veritas.
Eu sou a verdade.
O cristão precisa de ter
fome de saber.
Desde o estudo dos saberes
mais abstractos até à habilidade do artesão, tudo pode e deve conduzir a Deus.
Efectivamente não há
tarefa humana que não seja santificável, motivo para a nossa própria
santificação e oportunidade para colaborar com Deus na santificação dos que nos
rodeiam.
A luz dos seguidores de
Jesus Cristo não deve estar no fundo do vale, mas no cume da montanha para que
vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus.
Trabalhar assim é oração.
Estudar assim é oração.
Investigar assim é oração.
Nunca saímos afinal do
mesmo: tudo é oração, tudo pode e deve levar-nos a Deus, alimentar a nossa
intimidade contínua com Ele, da manhã à noite.
Todo o trabalho honrado
pode ser oração e todo o trabalho que é oração é apostolado.
Deste modo, a alma
fortalece-se numa unidade de vida simples e forte.
11
A esperança do Advento
Nada mais queria dizer-vos
neste primeiro domingo do Advento, quando já começamos a contar os dias que nos
aproximam do Natal do Salvador.
Vimos a realidade da
vocação cristã, ou seja, como o Senhor confiou em nós para levar as almas à
santidade, para as aproximar d'Ele, para as unir à Igreja e estender o reino de
Deus a todos os corações. O Senhor quer-nos entregues, fiéis, dedicados, com
amor. Quer-nos santos, muito seus.
Por um lado, a soberba, a
sensualidade e o tédio, o egoísmo; por outro, o amor, a entrega, a
misericórdia, a humildade, o sacrifício, a alegria.
Tens de escolher.
Foste chamado a uma vida
de fé, esperança e caridade.
Não podes cruzar os braços
e refugiar-te num medíocre isolamento.
Em certa ocasião, vi uma
águia encerrada numa jaula de ferro. Estava suja e meia depenada.
Tinha entre as garras um
pedaço de carne podre.
Pensei então no que seria
de mim se abandonasse a vocação recebida de Deus.
Tive pena daquele animal
solitário, enjaulado, que tinha nascido para subir muito alto e olhar de frente
o Sol.
Podemos ascender até às
humildes alturas do amor de Deus, do serviço a todos os homens.
Para isso, porém, é
preciso que não haja na alma recantos escondidos, onde não possa entrar o sol
de Jesus Cristo.
Temos de deitar fora todas
as preocupações que nos afastem d'Ele; e assim terás Cristo na tua
inteligência, Cristo nos teus lábios, Cristo no teu coração, Cristo nas tuas
obras.
Toda a vida - o coração e
as obras, a inteligência e as palavras - cheia de Deus.
Olhai e levantai as vossas
cabeças porque está próxima a vossa redenção, lemos no Evangelho.
O tempo do Advento é o
tempo da esperança.
Todo o panorama da nossa
vocação cristã, a unidade de vida que tem como nervo a presença de Deus, Nosso
Pai, pode e deve ser uma realidade diária.
Invoca comigo Nossa
Senhora, e imagina como passaria Ela aqueles meses à espera do Filho que havia
de nascer.
E Nossa Senhora, Santa
Maria, fará com que sejas alter Christus,
ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.
12
Lux fulgebit hodie super nos, quia natus est nobis Dominus - Hoje brilhará sobre nós
a luz, porque nos nasceu o Senhor!
Eis a grande novidade que
comove os cristãos e que, através deles, se dirige à Humanidade inteira.
Deus está aqui!
Esta verdade deve encher
as nossas vidas.
Cada Natal deve ser para
nós um novo encontro especial com Deus, deixando que a sua luz e a sua graça
entrem até ao fundo da nossa alma.
Detemo-nos diante do
Menino, de Maria e de José; estamos contemplando o Filho de Deus revestido da
nossa carne...
Vem-me à lembrança a
viagem que fiz a Loreto, em 15 de Agosto de 1951, para visitar a Santa Casa por
motivo muito íntimo.
Celebrei lá a Santa Missa.
Queria dizê-la com
recolhimento mas não tinha contado com o fervor da multidão.
Não tinha calculado que
nesse grande dia de festa muitas pessoas dos arredores viriam a Loreto - com a
bendita fé dessa terra e com o amor que têm à Madona.
E a sua piedade,
considerando as coisas - como diria? - só do ponto de vista das leis rituais da
Igreja, levava-as a manifestações não muito correctas.
E assim, enquanto eu
beijava o altar, nos momentos prescritos pelas rubricas da Missa, três ou
quatro camponeses beijavam-no ao mesmo tempo.
Distraía-me mas estava
emocionado.
E também me atraía a
atenção a lembrança de que naquela Santa Casa - que a tradição assegura ser o
lugar onde viveram Jesus, Maria e José - na mesa do altar tinham gravado estas
palavras: Hic Verbum caro factum est.
Aqui, numa casa construída
pelas mãos dos homens, num pedaço de terra em que vivemos, habitou Deus!
13
Jesus Cristo, perfeito
Deus e perfeito homem
O Filho de Deus fez-se carne
e é perfectus Deus, perfectus homo,
perfeito Deus e perfeito homem!
Neste mistério há qualquer
coisa que deveria emocionar os cristãos. Estava e estou comovido; gostava de
voltar a Loreto...
Vou lá em desejo para
reviver os anos da infância de Jesus, repetindo e considerando: Hic Verbum caro factum est!
Jesus Christus, Deus Homo, Jesus Cristo, Deus-Homem!
Eis uma magnalia Dei, uma das maravilhas de Deus
em que temos de meditar e que temos de agradecer a este Senhor que veio trazer
a paz na terra aos homens de boa vontade, a todos os homens que querem unir a
sua vontade à Vontade boa de Deus.
Não só aos ricos, nem só
aos pobres!
A todos os homens, a todos
os irmãos!
Pois irmãos somos todos em
Jesus; filhos de Deus, irmãos de Cristo. Sua Mãe é nossa Mãe.
Na terra há apenas uma
raça: a raça dos filhos de Deus.
Todos devemos falar a
mesma língua: a que o nosso Pai que está nos Céus nos ensina; a língua dos
diálogos de Jesus com seu Pai; a língua que se fala com o coração e com a
cabeça; a que estais a usar agora na vossa oração.
É a língua das almas
contemplativas, dos homens espirituais por se terem dado conta da sua filiação
divina; uma língua que se manifesta em mil moções da vontade, em luzes vivas do
entendimento, em afectos do coração, em decisões de rectidão de vida, de
bem-fazer, de alegria, de paz.
É preciso ver o Menino,
nosso Amor, no seu berço.
Olhar para Ele, sabendo
que estamos perante um mistério. Precisamos de aceitar o mistério pela fé,
aprofundar o seu conteúdo. Para isso necessitamos das disposições humildes da
alma cristã: não pretender reduzir a grandeza de Deus aos nossos pobres
conceitos, às nossas explicações humanas, mas compreender que esse mistério, na
sua obscuridade, é uma luz que guia a vida dos homens.
Vemos - diz S. João
Crisóstomo - que Jesus saiu de nós, da nossa substância humana, e que nasceu de
Mãe virgem; mas não entendemos como pode ter-se realizado esse prodígio.
Não nos cansemos, tentando
descobri-lo; aceitemos antes com humildade o que Deus nos revelou sem
esquadrinharmos com curiosidade o que Deus nos escondeu.
Assim, com este
acatamento, saberemos compreender e amar; e o mistério será para nós um
esplêndido ensinamento, mais convincente do que qualquer outro raciocínio
humano.
(cont)