19/10/2014

Ser cada um outro Cristo

Custou-te muito ir afastando e esquecendo as tuas preocupaçõezitas, os teus sonhos pessoais, pobres e poucos, mas enraizados. Agora, pelo contrário, estás bem seguro de que o teu entusiasmo e a tua ocupação são os teus irmãos, e só eles, porque aprendeste a descobrir Jesus Cristo no próximo. (Sulco, 765)

Se não queremos desperdiçar o tempo inutilmente – nem sequer com falsas desculpas das dificuldades exteriores do ambiente, que nunca faltaram desde o princípio do cristianismo – devemos ter muito presente que, de um modo normal, Jesus Cristo vinculou à vida interior a eficácia da nossa acção para arrastar os que nos rodeiam. Cristo pôs a santidade como condição para a eficácia da acção apostólica; corrijo-me, o esforço da nossa fidelidade, porque na terra nunca seremos santos. Parece inacreditável, mas Deus e os homens precisam que, da nossa parte, haja uma fidelidade sem condições, sem eufemismos, que chegue até às últimas consequências, sem mediocridade ou concessões, em plenitude de vocação cristã assumida e praticada com delicadeza.

Talvez entre vocês algum esteja a pensar que me refiro exclusivamente a um sector de pessoas selectas. Não se deixem enganar tão facilmente, movidos pela cobardia ou pelo comodismo. Pelo contrário, que cada um sinta a urgência divina de ser outro Cristo, ipse Christus, o próprio Cristo; em poucas palavras, a urgência de que a nossa conduta seja coerente com as normas da fé, pois a nossa santidade – a que temos de aspirar – não é uma santidade de segunda categoria, que não existe. (Amigos de Deus, 5–6)


Evangelho diário, coment. Leit. esp. (Cristo que passa)

Tempo comum XXXIII Semana

Evangelho: Lc 19 11-28

11 Estando eles a ouvir estas coisas, Jesus acrescentou uma parábola, por estar perto de Jerusalém e porque julgavam que o reino de Deus se havia de manifestar em breve. 12 Disse pois: «Um homem nobre foi para um país distante tomar posse de um reino, para depois voltar. 13 Chamando dez dos seus servos, deu-lhes dez minas, e disse-lhes: Negociai com elas até eu voltar. 14 Mas os seus concidadãos aborreciam-no e enviaram atrás dele deputados encarregados de dizer: Não queremos que este reine sobre nós. 15 «Quando ele voltou, depois de ter tomado posse do reino, mandou chamar aqueles servos a quem dera o dinheiro, a fim de saber quanto tinha lucrado cada um. 16 Veio o primeiro e disse: Senhor, a tua mina rendeu dez minas. 17 Ele disse-lhe: Está bem, servo bom; porque foste fiel no pouco, serás governador de dez cidades. 18 Veio o segundo e disse: Senhor, a tua mina rendeu cinco minas. 19 Respondeu-lhe: Sê tu também governador de cinco cidades. 20 Veio depois o outro e disse: Senhor, eis a tua mina que guardei embrulhada num lenço, 21 porque tive medo de ti, que és um homem austero, que tiras donde não puseste e recolhes o que não semeaste. 22 Disse-lhe o senhor: Servo mau, pela tua mesma boca te julgo. Sabias que eu sou um homem austero, que tiro donde não pus e recolho o que não semeei; 23 então, porque não puseste o meu dinheiro num banco, para que, quando eu viesse, o recebesse com os juros? 24 Depois disse aos que estavam presentes: Tirai-lhe a mina, e dai-a ao que tem dez. 25 Eles responderam-lhe: Senhor, ele já tem dez. 26 Pois eu vos digo que àquele que tiver, se lhe dará; mas àquele que não tem, ainda mesmo o que tem lhe será tirado. 27 Quanto, porém, àqueles meus inimigos, que não quiseram que eu fosse seu rei, trazei-os aqui e degolai-os na minha presença!». 28 Dito isto, ia Jesus adiante, subindo para Jerusalém.

Comentário:

Aparentemente, o senhor da parábola não tem que ver com Deus Nosso Senhor porque além de não ser austero mas sim misericordioso e compassivo, o que quer recolher é o que abundantemente semeou nos corações dos homens não Se poupando a esforços para que a sementeira dê frutos abundantes.

Mas, na verdade, o Senhor, tal como o da parábola, tem todo o direito de exigir a devolução do que é Seu acrescido do rendimento obtido por aquele a quem confiou os bens.

Ah! Sim! Será implacável na Sua exigência e magnificente na recompensa.

(ama, comentário sobre Lc 19, 11-28, 2011.11.17)
 

Leitura espiritual




CRISTO QUE PASSA 019 a 064
19           
Cumpriu a vontade de Seu Pai Deus

Não me afasto da mais rigorosa verdade se vos digo que Jesus continua agora a buscar pousada no nosso coração. Temos de Lhe pedir perdão pela nossa cegueira pessoal, pela nossa ingratidão. Temos de Lhe pedir a graça de nunca mais Lhe fechar a porta das nossas almas.

O Senhor não nos oculta que a obediência rendida à vontade de Deus exige renúncia e entrega porque o amor não pede direitos: quer servir. Ele percorreu primeiro o caminho. Jesus, como obedecestes Tu? Usque ad mortem, mortem autem crucis, até à morte e morte de Cruz. É preciso sair de nós mesmos, complicar a vida, perdê-la por amor de Deus e das almas... Tu querias viver e que nada te acontecesse; mas Deus quis outra coisa... Existem duas vontades: a tua vontade deve ser corrigida para se identificar com a vontade de Deus, e não torcida a de Deus para se acomodar à tua.

Com alegria, tenho visto muitas almas que jogaram a vida - como Tu, Senhor, "usque ad mortem"! - para cumprir o que a vontade de Deus lhes pedia, dedicando os seus esforços e o seu trabalho profissional ao serviço da Igreja, pelo bem de todos os homens.

Aprendamos a obedecer, aprendamos a servir. Não há maior fidalguia do que entregar-se voluntariamente ao serviço dos outros. Quando sentimos o orgulho que referve dentro de nós, a soberba que nos leva a pensar que somos super-homens, é o momento de dizer que não, de dizer que o nosso único triunfo há-de ser o da humildade. Assim nos identificaremos com Cristo na Cruz, não aborrecidos ou inquietos, nem com mau humor, mas alegres, porque essa alegria, o esquecimento de nós mesmos, é a melhor prova de amor.

20           
Permiti-me que volte de novo à naturalidade, à simplicidade da vida de Jesus, que já vos tenho feito considerar tantas vezes. Esses anos ocultos do Senhor não são coisa sem significado, nem uma simples preparação dos anos que viriam depois, os da sua vida púbica. Desde 1928 compreendi claramente que Deus deseja que os cristãos tomem exemplo de toda a vida do Senhor. Entendi especialmente a sua vida escondida, a sua vida de trabalho corrente no meio dos homens: o Senhor quer que muitas almas encontrem o seu caminho nos anos de vida calada e sem brilho. Obedecer à vontade de Deus, portanto, é sempre sair do nosso egoísmo; mas não tem por que se traduzir no afastamento das circunstâncias ordinárias da vida dos homens, iguais a nós pelo seu estado, pela sua profissão, pela sua situação na sociedade. Sonho - e o sonho já se tornou realidade - com multidões de filhos de Deus santificando-se na sua vida de cidadãos correntes, compartilhando ideais, anseios e esforços com as outras pessoas. Preciso de lhes gritar esta verdade divina: se permaneceis no meio do mundo, não é porque Deus se tenha esquecido de vós; não é porque o Senhor vos não tenha chamado; convidou-vos a permanecer nas actividades e nas ansiedades da Terra, porque vos fez saber que a vossa vocação humana, a vossa profissão, as vossas qualidades não só não são alheias aos seus desígnios divinos, mas que Ele as santificou como oferenda gratíssima ao Pai!

21           
Recordar a um cristão que a sua vida não tem outro sentido senão o de obedecer à vontade de Deus não é separá-lo dos outros homens. Pelo contrário: em muitos casos, o mandamento recebido do Senhor de que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou cumpre-se vivendo junto dos outros e tal como os outros, entregando-nos ao serviço do Senhor no mundo, para dar a conhecer melhor a todas as almas o amor de Deus; para lhes dizer que se abriram os caminhos divinos da terra.

O Senhor não se limitou a dizer que nos amava, mas demonstrou-o com obras. Não nos esqueçamos de que Jesus Cristo encarnou para nos ensinar, para aprendermos a viver a vida dos filhos de Deus. Recordai o preâmbulo do evangelista S. Lucas nos Actos dos Apóstolos: Primum quidem sermonem feci de omnibus, o Theophile, quae coepit Jesus facere et docere, falei de tudo o que mais notável fez e pregou Jesus. Veio ensinar, mas fazendo; veio ensinar, mas sendo modelo, sendo o Mestre e o exemplo, com a sua conduta. Agora, diante de Jesus Menino, podemos continuar o nosso exame pessoal: estamos decididos a procurar que a nossa vida sirva de modelo e de ensinamento aos nossos irmãos, aos nossos iguais, os homens? Estamos decididos a ser outros Cristos? Não basta dizê-lo com a boca. Tu - pergunto-o a cada um de vós e pergunto-o a mim mesmo - tu, que por seres cristão estás chamado a ser outro Cristo, mereces que se repita de ti que vieste facere et docere, fazer tudo como um filho de Deus, atento à vontade de seu Pai, para que deste modo possas levar todas as almas a participar das coisas boas, nobres, divinas e humanas, da Redenção? Estás a viver a vida de Cristo na tua vida de cada dia no meio do mundo?

Fazer as obras de Deus não é um bonito jogo de palavras, mas um convite a gastar-se por Amor. Temos de morrer para nós mesmos a fim de renascermos para uma vida nova. Porque assim obedeceu Jesus, até à morte de Cruz, mortem autem crucis. Propter quod et Deus exaltavit illum. Por isso Deus O exaltou. Se obedecermos à vontade de Deus, a Cruz será também Ressurreição, exaltação. Cumprir-se-á em nós, passo a passo, a vida de Cristo; poder-se-á afirmar que vivemos procurando ser bons filhos de Deus, que passamos fazendo o bem, apesar da nossa fraqueza e dos nossos erros pessoais, por mais numerosos que sejam.

E quando vier a morte, que virá inexoravelmente, esperá-la-emos com júbilo, como tenho visto que o souberam fazer tantas pessoas santas no meio da sua existência diária. Com alegria, porque, se imitámos Cristo em fazer o bem, - em obedecer e levar a Cruz, apesar das nossas misérias - ressuscitaremos como Cristo; surrexit Dominus vere!, que ressuscitou realmente.

Jesus, que se fez menino - meditai nisto - venceu a morte. Com o aniquilamento, com a simplicidade, com a obediência, com a divinização da vida corrente e vulgar das criaturas, o Filho de Deus foi vencedor!

Este foi o triunfo de Jesus Cristo. Assim nos elevou ao seu nível, ao nível dos filhos de Deus, descendo ao nosso terreno, ao terreno dos filhos dos homens.

22           
Estamos no Natal. Acodem-nos à memória os diversos factos e circunstâncias que rodearam o nascimento do Filho de Deus e o olhar detém-se na gruta de Belém, no lar de Nazaré. Maria, José, Jesus Menino ocupam de modo muito especial o centro do nosso coração. Que diz, que nos ensina a vida, simples e admirável ao mesmo tempo, dessa Sagrada Família?

Entre as muitas considerações que poderíamos fazer, agora quero escolher sobretudo uma., Como refere a Escritura, o nascimento de Jesus significa o início da plenitude dos tempos, o momento escolhido por Deus para manifestar plenamente o seu amor aos homens, entregando-nos o seu próprio Filho. Essa vontade divina realiza-se no meio das circunstâncias mais normais e correntes: uma mulher que dá à luz, uma família, uma casa. A omnipotência divina, o esplendor de Deus passam através das coisas humanas, unem-se às coisas humanas. Desde esse momento, nós, os cristãos, sabemos que, com a graça do Senhor, podemos e devemos santificar todas as realidades sãs da nossa vida. Não há situação terrena, por mais pequena e vulgar que pareça, que não possa ser a ocasião de um encontro com Cristo e uma etapa da nossa caminhada para o Reino dos Céus.

Por isso, não é de estranhar que a Igreja se alegre, que rejubile, contemplando a modesta morada de Jesus, Maria e José. É grato - reza-se no Hino de matinas desta festa - recordar a pequena casa de Nazaré e a existência simples que ali se vive, celebrar com cânticos a singeleza que rodeia Jesus, a sua vida escondida. Foi ali que, ainda criança, aprendeu o ofício de José; foi ali que cresceu em idade e partilhou o trabalho de artesão. Junto d'Ele, sentava-se a sua doce Mãe; junto a José, vivia a sua Esposa bem-amada, feliz por poder ajudá-lo e prestar-lhe os seus cuidados.

Ao pensar nos lares cristãos, gosto de imaginá-los luminosos e alegres, como foi o da Sagrada Família. A mensagem de Natal ressoa com toda a força: Glória a Deus no mais alto dos Céus e paz na terra aos homens de boa vontade. Que a Paz de Cristo triunfe nos vossos corações, escreve o Apóstolo. Paz por nos sabermos amados pelo nosso Pai, Deus, incorporados em Cristo, protegidos pela Virgem Santa Maria, amparados por S. José. Esta é a grande luz que ilumina as nossas vidas e que, perante as dificuldades e misérias pessoais, nos impele a seguir animosamente para diante. Cada lar cristão deveria ser um remanso de serenidade, em que se notassem, por cima das pequenas contrariedades diárias, um carinho e uma tranquilidade, profundos e sinceros, fruto de uma fé real e vivida.

23           
Para o cristão o matrimónio não é uma simples instituição social e menos ainda um remédio para as fraquezas humanas: é uma autêntica vocação sobrenatural. Sacramento grande em Cristo e na Igreja, como diz S. Paulo, é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, contrato que um homem e uma mulher fazem para sempre, pois, quer queiramos quer não, o matrimónio instituído por Jesus Cristo é indissolúvel, sinal sagrado que santifica, acção de Jesus, que invade a alma dos que se casam e os convida a segui-Lo, transformando toda a vida matrimonial num caminhar divino pela Terra.

Os casados estão chamados a santificar o seu matrimónio e a santificar-se nessa união: cometeriam, por isso, um grave erro. se edificassem a sua vida espiritual à margem do lar. A vida familiar, as relações conjugais, o cuidado e a educação dos filhos, o esforço por sustentar, manter e melhorar economicamente a família, as relações com as outras pessoas que constituem a comunidade social, tudo isso são situações humanas e correntes que os esposos cristãos devem sobrenaturalizar.

A fé e a esperança hão-de manifestar-se na serenidade com que se focam os grandes ou pequenos problemas que surgem em todos os lares, no empenho com que se persevera no cumprimento do dever. A caridade há-de encher tudo e levará: a partilhar as alegrias e os possíveis dissabores; a saber sorrir, esquecendo-se das preocupações pessoais para atender os outros; a escutar o outro cônjuge ou os filhos, mostrando-lhes que são amados e compreendidos deveras; a passar por alto pequenos atritos sem importância, que o egoísmo poderia transformar em montanhas; a fazer com grande amor os pequenos serviços de que se compõe a convivência diária.

Santificar o lar no dia a dia, criar, com carinho, um autêntico ambiente de família: é disso precisamente que se trata. Para santificar cada um dos dias, é necessário exercitar muitas virtudes cristãs; em primeiro lugar, as teologais e, depois, todas as outras: a prudência, a lealdade, a sinceridade, a humildade, o trabalho, a alegria...

24           
Santidade do amor humano

Ao falar do matrimónio, da vida matrimonial, é necessário começar por referir-nos claramente ao amor dos cônjuges.

O amor puro e limpo dos esposos é uma realidade santa, que eu, como sacerdote, abençoo com ambas as mãos. A tradição cristã viu frequentemente na presença de Jesus nas bodas de Caná uma confirmação do valor divino do matrimónio: O nosso Salvador foi às bodas - escreve S. Cirilo de Alexandria - para santificar o princípio da geração humana.

O matrimónio é um sacramento que faz de dois corpos uma só carne: como diz com expressão forte a teologia, são os próprios corpos dos contraentes que constituem a sua matéria. O Senhor santifica e abençoa o amor do marido à mulher e o da mulher ao marido; e ordenou não só a fusão das suas almas, mas também a dos seus corpos. Nenhum cristão, esteja ou não chamado à vida matrimonial, pode deixar de a estimar.

O Criador deu-nos a inteligência, centelha do entendimento divino, que nos permite - com vontade livre, outro dom de Deus - conhecer e amar; e deu ao nosso corpo a possibilidade de gerar, que é como uma participação do seu poder criador. Deus quis servir-se do amor conjugal para trazer novas criaturas ao mundo e aumentar o corpo da Igreja. O sexo não é uma realidade vergonhosa; é uma dádiva divina que se orienta limpamente para a vida, para o amor, para a fecundidade.

Esse é o contexto, o pano de fundo, em que se situa a doutrina cristã sobre a sexualidade. A nossa fé não desconhece nada do que de belo, de generoso, de genuinamente humano há neste mundo. Ensina-nos que a regra do nosso viver não deve ser a procura egoísta do prazer, porque só a renúncia e o sacrifício levam ao verdadeiro amor; Deus amou-nos e convida-nos a amá-Lo e a amar os outros com a verdade e a autenticidade com que Ele nos ama. Quem conserva a sua vida, perdê-la-á; e quem perde a sua vida por meu amor voltará a encontrá-la, escreveu S. Mateus no seu Evangelho, com frase que parece paradoxal.

As pessoas que estão pendentes de si mesmas, que actuam procurando, antes de mais, a sua própria satisfação, põem em jogo a sua salvação eterna e, mesmo aqui na Terra, são inevitavelmente infelizes e desgraçadas. Só quem se esquece de si e se entrega a Deus e aos outros - no matrimónio também - pode ser ditoso na Terra, com uma felicidade que é preparação e antecipação do Céu.

Durante o nosso caminhar terreno, a dor é pedra de toque do amor. No estado matrimonial, considerando as coisas de maneira descritiva, poderíamos afirmar que há anverso e reverso: por um lado, a alegria de se saber amado, o entusiasmo por edificar e sustentar um lar, o amor conjugal, a consolação de ver crescer os filhos; por outro, dores e contrariedades, o decurso do tempo que consome os corpos e ameaça azedar os caracteres, a monotonia dos dias, aparentemente sempre iguais.

Formaria um pobre conceito do matrimónio e do amor humano quem pensasse que ao tropeçar com essas dificuldades, o carinho e o contentamento se acabam. É precisamente então que os sentimentos que animavam aquelas criaturas revelam a sua verdadeira natureza, que a doação e a ternura se enraízam e se manifestam com um afecto autêntico e profundo, mais poderoso que a morte.

25           
Essa autenticidade do amor requer fidelidade e rectidão em todas as relações matrimoniais. Deus, comenta S. Tomás de Aquino, uniu às diversas funções da vida humana um prazer, uma satisfação; esse prazer e essa satisfação são, por conseguinte, bons. Mas se o homem, invertendo a ordem das coisas, busca essa emoção como valor último, desprezando o bem e o fim a que deve estar ligada e ordenada, perverte-a e desnaturaliza-a, convertendo-a em pecado ou em ocasião de pecado.

A castidade - não a simples continência, mas a afirmação decidida de uma vontade enamorada - é uma virtude que mantém a juventude do amor em qualquer estádio da vida. Existe uma castidade dos que sentem despertar neles o desenvolvimento da puberdade, uma castidade dos que se preparam para se casarem, uma castidade dos que Deus chama ao celibato, uma castidade dos que foram escolhidos por Deus para viverem no matrimónio.

Como não recordar aqui as palavras fortes e claras que a Vulgata conserva, da recomendação que o Arcanjo Rafael fez a Tobias antes de desposar Sara? O Anjo admoestou-o deste modo: Escuta-me e mostrar-te-ei quem são aqueles contra quem o Demónio pode prevalecer. São os que abraçam o matrimónio de tal modo que excluem Deus de si e da sua mente e se deixam arrastar pela paixão como o cavalo e o mulo que carecem de entendimento. Sobre esses, o Diabo tem poder.

Não há amor claro, franco e alegre no matrimónio, se não se vive essa virtude da castidade, que respeita o mistério da sexualidade e o ordena à fecundidade à entrega. Nunca falei de impureza e evitei sempre descer a casuísticas mórbidas e sem sentido; mas de castidade e de pureza, da afirmação jubilosa do amor, falei muitíssimas vezes e devo continuar a falar.

Pelo que respeita à castidade conjugal, asseguro aos esposos que não devem ter medo de manifestar o seu carinho; pelo contrário, essa inclinação é a base da sua vida familiar. O que o Senhor lhes pede é que se respeitem mutuamente e que sejam mutuamente leais, que actuem com delicadeza, com naturalidade, com modéstia. Dir-lhes-ei também que as relações conjugais são dignas quando são prova de verdadeiro amor e, portanto, estão abertas à fecundidade, aos filhos.

Secar as fontes da vida é um crime contra os dons que Deus concedeu à humanidade e uma manifestação de que é o egoísmo e não o amor, o que inspira a conduta. Então tudo se turva, porque os cônjuges acabam por se olharem como cúmplices; e produzem-se entre eles dissenções que, continuando nessa linha, são quase sempre insanáveis.

Quando a castidade conjugal está presente no amor, a vida matrimonial é expressão de uma conduta autêntica, marido e mulher compreendem-se e sentem-se unidos; quando o bem divino da sexualidade se perverte, destrói-se a intimidade e marido e mulher já não podem olhar-se nobremente, cara a cara.

Os esposos devem edificar a sua convivência sobre um carinho sincero e puro, e sobre a alegria de ter trazido ao mundo os filhos que Deus lhes tenha dado a possibilidade de ter, sabendo, se for necessário, renunciar a comodidades pessoais e tendo fé na Providência divina. Formar uma família numerosa, se tal for a vontade de Deus, é uma garantia de felicidade e de eficácia, embora afirmem outra coisa os defensores de um triste hedonismo.

26           
Não vos esqueçais de que, em certas ocasiões, não é possível evitar as zangas entre os esposos. Nunca discutais diante dos vossos filhos; fá-los-eis sofrer e eles tomarão o partido de uma das partes, contribuindo talvez para aumentar inconscientemente a vossa desunião. Todavia, discutir, desde que não seja muito frequentemente, é também uma manifestação de amor, quase uma necessidade. A ocasião, não o motivo, costuma ser o cansaço do marido, esgotado pelo seu trabalho profissional; a fadiga - oxalá não seja o aborrecimento - da mulher que teve de aturar os filhos e o serviço ou lutar com o seu próprio carácter, às vezes pouco firme; embora vós, as mulheres, sejais mais firmes que os homens se vos decidis a isso.

Evitai a soberba, que é o maior inimigo da vossa vida conjugal: nas vossas pequenas zangas, nenhum dos dois tem razão. O que estiver mais sereno deve dizer uma palavra que guarde o mau humor até mais tarde. E mais tarde - a sós - discuti, que depois fareis as pazes.

Vós, mulheres, pensai que talvez vos descuideis um pouco no arranjo pessoal; recordai o provérbio que a mulher composta tira o homem de outra porta: é sempre actual o dever de aparecerdes amáveis como quando éreis noivas, dever de justiça porque pertenceis ao vosso marido; e ele também não se deve esquecer de que é vosso e de que tem a obrigação de ser, durante toda a vida, afectuoso como um noivo. Mau sinal, se sorrirdes com ironia ao lerdes este parágrafo; seria uma demonstração evidente de que o afecto familiar se tinha convertido em gélida indiferença.

27           
Lares luminosos e alegres

Não se pode falar do matrimónio sem pensar ao mesmo tempo na família, que é o fruto e a continuação daquilo que se inicia com o matrimónio. Uma família compõe-se, não apenas do marido e da mulher, mas também dos filhos e, num grau maior ou menor, dos avós, dos outros parentes, das empregadas domésticas. A todos eles há-de chegar o calor íntimo, do qual depende o ambiente familiar.

É certo que há casais a quem o Senhor não concede filhos; é sinal de que, nesse caso lhes pede que continuem a amar-se com igual amor e que dediquem as suas energias - se puderem - a serviços e tarefas em benefício de outras almas.

O normal, porém, é que um casal tenha descendência. Para estes esposos, a primeira preocupação têm de ser os seus filhos. A paternidade e a maternidade não terminam com o nascimento; essa participação no poder de Deus, que é a faculdade de gerar, há-de prolongar-se na cooperação com o Espírito Santo, para que culmine com a formação de autênticos homens cristãos e autênticas mulheres cristãs.

Os pais são os principais educadores dos seus filhos, tanto no aspecto humano como no sobrenatural, e hão-de sentir a responsabilidade dessa missão, que exige deles compreensão, prudência, saber ensinar e, sobretudo, saber amar; e devem preocupar-se por dar bom exemplo. A imposição autoritária e violenta não é caminho acertado para a educação. O ideal para os pais é chegarem a ser amigos dos filhos; amigos a quem se confiam as inquietações, a quem se consulta sobre os problemas, de quem se espera uma ajuda eficaz e amável.

É necessário que os pais arranjem tempo para estar com os filhos e falar com eles. Os filhos são o que há de mais importante; mais importante do que os negócios, do que o trabalho, do que o descanso. Nessas conversas, convém escutá-los com atenção, esforçar-se por compreendê-los, saber reconhecer a parte de verdade - ou a verdade inteira - que possa haver em algumas das suas rebeldias. E, ao mesmo tempo, apoiar as suas aspirações, ensiná-los a ponderar as coisas e a raciocinar; não lhes impor uma conduta, mas mostrar-lhes os motivos, sobrenaturais e humanos, que a aconselham. Numa palavra, respeitar a sua liberdade, já que não há verdadeira educação sem responsabilidade pessoal, nem responsabilidade sem liberdade.

28           
Os pais educam fundamentalmente com a conduta. O que os filhos e as filhas procuram no seu pai ou na sua mãe, não são apenas conhecimentos mais amplos do que os seus ou conselhos mais ou menos acertados, mas algo de maior importância: um testemunho do valor e do sentido da vida, encarnados numa existência concreta e confirmados nas diversas circunstâncias e situações que se sucedem ao longo dos anos.

Se eu tivesse de dar um conselho aos pais, dar-lhes-ia sobretudo este: que os vossos filhos vejam (não tenhais ilusões: desde crianças, vêem tudo e julgam-no) que procurais viver de acordo com a vossa fé, que Deus não está só nos vossos lábios, que está nas vossas obras; que vos esforçais por serdes sinceros e leias, que vos amais e os amais a eles realmente.

Assim é que contribuireis melhor para fazer deles homens e mulheres íntegros, capazes de enfrentar com espírito aberto as situações que a vida lhes depare, de servir os seus concidadãos e de contribuir para a solução dos grandes problemas da humanidade, levando o testemunho de Cristo aonde mais tarde venham a encontrar-se na sociedade.

29           
Escutai os vossos filhos, dedicai-lhes também o vosso tempo, mostrai que tendes confiança neles; acreditai em tudo o que vos disserem, mesmo que alguma vez vos enganem; não vos assusteis com as suas rebeldias, pois também vós, na idade deles, fostes mais ou menos rebeldes; ide ao seu encontro, até meio do caminho, e rezai por eles. E vereis que recorrerão aos seus pais com simplicidade - podeis ter a certeza disso, se actuais cristãmente - em vez de irem ter, para satisfazer as suas legítimas curiosidades, com um amigalhote desavergonhado ou brutal. A vossa confiança, a vossa relação amigável com os filhos, receberá como resposta a sinceridade deles para convosco; e isto, mesmo que não faltem disputas e incompreensões de pouca monta, é a paz familiar, a vida cristã.

Como descreverei - como um escritor dos primeiros séculos - a felicidade desse matrimónio que a Igreja une, que a entrega confirma, que a bênção sela, que os Anjos proclamam e que Deus Pai tem por celebrado?... Ambos os esposos são como irmãos, servos um do outro, sem que entre eles se dê a separação alguma, nem na carne nem no espírito. Porque verdadeiramente são dois numa só carne e onde há uma só carne deve haver um só espírito... Ao contemplar esses lares, Cristo alegra-Se e envia-lhes a Sua paz; onde estão dois, aí está também Ele, e onde está Ele não pode haver nada de mau.

30           
Procurámos resumir e comentar alguns dos traços desses lares em que se reflecte a luz de Cristo e que são, por isso, luminosos e alegres, repito; nos quais a harmonia que reina entre os pais se transmite aos filhos, à família inteira e a todos os ambientes que a envolvem. Assim, em cada família autenticamente cristã reproduz-se de algum modo o mistério da Igreja, escolhida por Deus e enviada como guia do mundo.

A todos os cristãos, qualquer que seja a sua condição - sacerdotes ou leigos, casados ou solteiros - se aplicam plenamente as palavras do Apóstolo que se lêem precisamente na epístola da festa da Sagrada Família: escolhidos de Deus, santos e amados. É isso mesmo o que somos todos, cada um no seu lugar e na sua tarefa no mundo: homens e mulheres escolhidos por Deus para dar testemunho de Cristo e levar aos que nos rodeiam a alegria de se saberem filhos de Deus, apesar dos nossos erros e procurando lutar contra eles.

É muito importante que o sentido vocacional do matrimónio nunca falte, tanto na catequese e na pregação como na consciência daqueles a quem Deus quer levar por esse caminho, porque estão real e verdadeiramente chamados a integrar-se nos desígnios divinos da salvação de todos os homens.

Por isso, talvez não possa apresentar-se aos esposos cristãos melhor modelo que o das famílias dos tempos apostólicos: o centurião Cornélio, que foi dócil à vontade de Deus e em cuja casa se consumou a abertura da Igreja aos gentios; Áquila e Priscila, que difundiram o cristianismo em Corinto e em Éfeso, e que colaboraram no apostolado de S. Paulo; Tabita, que com a sua caridade assistiu aos necessitados de Jope... E tantos outros lares de judeus e de gentios, de gregos e de romanos, nos quais lançou raízes a pregação dos primeiros discípulos do Senhor.

Famílias que viveram de Cristo e que deram a conhecer Cristo. Pequenas comunidades cristãs que foram centros de irradiação da mensagem evangélica. Lares iguais aos outros lares daqueles tempos, mas animados de um espírito novo que contagiava aqueles que os conheciam e com eles conviviam. Assim foram os primeiros cristãos e assim havemos de ser os cristãos de hoje: semeadores de paz e de alegria, da paz e da alegria que Cristo nos trouxe.

31           
Ainda não há muito tempo, tive oportunidade de admirar um baixo-relevo em mármore, que representa a cena da adoração de Deus Menino pelos Reis Magos. Emoldurando esse baixo-relevo, havia outros: quatro anjos, cada um com seu símbolo - um diadema, o mundo coroado pela cruz, uma espada e um ceptro. Deste modo, utilizando símbolos bem conhecidos, ilustrava-se plasticamente o acontecimento que hoje comemoramos: uns homens sábios - reis, segundo a tradição - prostram-se diante do Menino, depois de perguntar em Jerusalém: Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?.

Também eu, instado por esta pergunta, contemplo agora Jesus, deitado numa manjedoura, num lugar que só é próprio para os animais. Onde está, Senhor, a tua realeza: o diadema, a espada, o ceptro? Pertencem-lhe e não os quer; reina envolto em panos. É um rei inerme, que se nos apresenta indefeso; é uma criança. Como não havemos de recordar aquelas palavras do Apóstolo: aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo.

Nosso Senhor encarnou para nos manifestar a vontade do Pai. E começa a instruir-nos estando ainda no berço. Jesus Cristo procura-nos - com uma vocação, que é vocação para a santidade -, a fim de consumarmos com Ele a Redenção. Considerai o seu primeiro ensinamento: temos de co-redimir à custa de triunfar, não sobre o próximo, mas sobre nós mesmos. Tal como Cristo, precisamos de nos aniquilar, de sentir-nos servidores dos outros para os conduzir a Deus.

Onde está o nosso Rei? Não será que Jesus quer reinar, antes de mais, no coração, no teu coração? Por isso se fez menino: quem é capaz de ter o coração fechado para uma criança? Onde está o nosso Rei? Onde está o Cristo que o Espírito Santo procura formar na nossa alma? Cristo não pode estar na soberba, que nos separa de Deus, nem na falta de caridade, que nos isola dos homens. Aí não podemos encontrar Cristo, mas apenas a solidão.

No dia da Epifania, prostrados aos pés de Jesus Menino, diante de um Rei que não ostenta sinais externos de realeza, podeis dizer-lhe: Senhor, expulsa a soberba da minha vida, subjuga o meu amor próprio, esta minha vontade de afirmação pessoal e de imposição da minha vontade aos outros. Faz com que o fundamento da minha personalidade seja a identificação contigo.

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O caminho da fé

Não é fácil esta meta da identificação com Cristo. Mas também não é difícil, se vivemos de acordo com os ensinamentos do Senhor, isto é, se recorrermos diariamente à sua Palavra, se impregnarmos a nossa vida da realidade sacramental - a Eucaristia - que Ele nos deixou como alimento, porque o caminho do cristão é andadeiro, como diz uma antiga canção da minha terra. Tal como os Reis Magos, descobrimos uma estrela que é luz, rumo certo no céu da nossa alma.

Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. Também nós vivemos esta experiência. Também nós sentimos que, pouco a pouco, se acendia na nossa alma uma luz nova: o desejo de ser cristãos em plenitude, o desejo, por assim dizer, de tomar Deus a sério. Se cada um de nós começasse agora a contar em voz alta o processo interior da sua vocação sobrenatural, não poderíamos deixar de pensar que tudo isso foi divino. Agradeçamos, pois, a Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo e a Santa Maria - por cuja intercessão chegam até nós todas as bênçãos do Céu - este dom, que, a par da fé, é o maior que o Senhor pode conceder a uma criatura: a firme determinação de alcançar a plenitude da caridade, com a convicção de que também é necessária, e não apenas possível, a santidade no meio dos afazeres profissionais, sociais...

Considerai a delicadeza com que o Senhor nos dirige este convite. Exprime-se com palavras humanas, como um apaixonado: Eu chamei-te pelo teu nome...Tu és meu. Deus - que é a Beleza, a Sabedoria, a Grandeza - anuncia-nos que somos seus, que fomos escolhidos como objecto do seu amor infinito. É precisa uma vida forte de fé para não desvirtuar esta maravilha que a Providência depõe nas nossas mãos, uma fé como a dos Reis Magos, que nos leva a ter a certeza de que nem o deserto, nem a tormenta, nem a tranquilidade do oásis nos impedirão de chegar à meta do presépio eterno: a vida definitiva com Deus.

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Caminho de fé é caminho de sacrifício. A vocação cristã não nos tira do nosso lugar, mas exige que abandonemos tudo o que estorva a vontade de Deus. A luz que se acende na nossa alma é apenas o começo; temos de segui-la, se queremos que se torne estrela e depois sol. Enquanto os Magos estavam na Pérsia - escreve S. João Crisóstomo - não viam senão uma estrela, mas quando abandonaram a pátria viram o próprio sol da justiça. Pode dizer-se que não teriam continuado a ver a estrela se tivessem permanecido no seu país. Apressemo-nos, pois, nós também; e embora todos no-lo impeçam, corramos para casa desse Menino.

Firmeza na vocação

Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. Ao ouvir isto, o Rei Herodes ficou perturbado, e com ele toda a cidade de Jerusalém. Esta cena continua a repetir-se nos nossos dias. Perante a grandeza de Deus, perante a decisão - seriamente humana e profundamente cristã - de viver de modo coerente com a fé, há quem fique desconcertado, e mesmo quem se escandalize, sem nada entender. Dir-se-ia que não admitem a existência de outra realidade para além dos seus acanhados horizontes terrenos. Em face das manifestações de generosidade que observam no comportamento dos que ouviram o chamamento do Senhor, sorriem com displicência, assustam-se, ou então - em casos que parecem verdadeiramente patológicos - obstinam-se em pôr obstáculos à santa determinação tomada por uma consciência com plena liberdade.

Já várias vezes tive oportunidade de assistir a essa espécie de mobilização geral contra quem se decide a dedicar toda a sua vida ao serviço de Deus e do próximo. Há pessoas que estão convencidas que o Senhor não pode escolher quem quer que seja sem lhes pedir primeiro autorização a eles; e de que o homem não tem inteira liberdade para aceitar ou recusar o Amor. Para quem pensa desse modo, a vida sobrenatural de cada alma é algo de secundário; julgam que se lhe deve prestar atenção, mas só depois de satisfeitos os pequenos comodismos e os egoísmos humanos. Se fosse assim, que seria do cristianismo? As palavras de Jesus, cheias de amor e ao mesmo tempo de exigência, são só para ouvir, ou para ouvir e pôr em prática? Ora Ele disse: sede perfeita, como o vosso Pai celestial é perfeita.

Nosso Senhor dirige-se a todos os homens, para que venham ao seu encontro, para que sejam santos. Não chama só os Reis Magos, que eram sábios e poderosos; antes disso tinha enviado aos pastores de Belém, não simplesmente uma estrela, mas um dos seus anjos. Mas tanto uns como outros - os pobres e os ricos, os sábios e os menos sábios - têm de fomentar na sua alma a disposição de humildade que permite ouvir a voz de Deus.

Considerai o caso de Herodes. É um poderoso da terra e tem oportunidade de recorrer à colaboração dos sábios: convocando todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Messias. O poder e a ciência não o levam ao conhecimento de Deus. Para o seu coração empedernido, o poder e a ciência são instrumentos da maldade: o desejo inútil de aniquilar Deus, o desprezo pela vida de um punhado de crianças inocentes.

Prossigamos na leitura do Santo Evangelho. Eles responderam: - em Belém de Judá, porque assim está escrito pelo Profeta: E tu, Belém, terra de Judá, não és por certo a mínima entre as principais cidades de Judá, pois de ti sairá um chefe que há-de comandar Israel, meu povo. Não nos podem passar despercebidas estas manifestações da misericórdia divina: quem veio redimir o mundo nasce numa aldeia ignorada. Na verdade, Deus não faz acepção de pessoas, como nos repete a Escritura com insistência. Ao convidar uma alma para uma vida de plena coerência com a fé, não toma em conta a fortuna, a nobreza de família, os altos graus de ciência. A vocação precede todos os possíveis méritos: a estrela que tinham visto no Oriente, ia adiante deles até que, ao chegar sobre o lugar onde estava o Menino, parou.

A vocação está antes de tudo; Deus ama-nos antes de que saibamos sequer dirigir-nos a Ele e infunde em nós o amor com que podemos corresponder-lhe. A bondade paternal de Deus vem ao nosso encontro. Nosso Senhor não se limita a ser justo; vai muito mais além: é misericordioso. Não espera que nos dirijamos a Ele; antecipa-se, manifestando por nós, de modo inequívoco, amor de pai.

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Bom pastor, bom guia

Se a vocação é o mais importante, se a luz da estrela vai à nossa frente, para nos orientar no nosso caminho de amor de Deus, não é lógico ter dúvidas quando, uma vez ou outra, a perdemos de vista. Quase sempre por nossa culpa, em certos momentos da nossa vida interior, acontece-nos o que aconteceu na viagem dos Reis Magos: a estrela oculta-se. Já conhecemos o esplendor divino da nossa vocação, estamos convencidos do seu carácter definitivo, mas talvez o pó que levantamos ao caminhar - o pó das nossas misérias - forme uma nuvem densa, que não deixa passar a luz.

Que havemos de fazer então? Seguir o exemplo daqueles homens santos: perguntar. Herodes serviu-se da ciência para proceder de modo injusto; os Reis Magos utilizam-na para fazer o bem. Mas nós, cristãos, não temos necessidade de perguntar a Herodes ou aos sábios da Terra. Cristo deu à sua Igreja a segurança da doutrina, a corrente da graça dos Sacramentos; e providenciou para que haja pessoas que nos orientem, que nos conduzam, que nos recordem constantemente o caminho. Dispomos de um tesouro infinito de ciência: a Palavra de Deus, guardada pela Igreja; a graça de Cristo que se administra nos Sacramentos; o testemunho e o exemplo dos que vivem com rectidão a nosso lado e sabem fazer das suas vidas um caminho de fidelidade a Deus.

Permiti que vos dê um conselho: se alguma vez perderdes a claridade da luz, recorrei sempre ao bom pastor. E quem é o bom pastor? O que entra pela porta da fidelidade à doutrina da Igreja; o que não se comporta como um mercenário, que, ao ver vir o lobo, deixa as ovelhas e foge; e o lobo arrebata-as e faz dispersar o rebanho. Reparai que a palavra divina não é vã: a insistência de Cristo (vedes como fala, com tanto carinho, de ovelhas e de pastores, de redil e de rebanhos?) é uma demonstração prática da necessidade de um bom guia para a nossa alma.

Se não houvesse maus pastores - escreve S. Agostinho - Ele não teria feito referência especial aos bons. Quem é mercenário? É o que vê o lobo e foge. O que procura a sua própria glória, não a glória de Cristo; o que não se atreve a reprovar os pecadores com liberdade e espírito. O lobo fila uma ovelha pelo pescoço; o diabo induz um fiel, por exemplo, a cometer adultério. Se te calas e não reprovas esse comportamento, és mercenário: viste o lobo e fugiste. Talvez me contradigas: não, estou aqui; não fugi. E eu respondo-te: fugiste porque te calaste; e calaste-te porque tiveste medo.

A santidade da esposa de Cristo sempre se provou - e continua a provar-se actualmente - pela abundância de bons pastores. Mas a fé cristã, que nos ensina a ser simples, não nos leva a ser ingénuos. Há mercenários que se calam e há mercenários que pregam uma doutrina que não é de Cristo. Por isso, se porventura o Senhor permite que fiquemos às escuras, inclusivamente em coisas de pormenor, se sentimos falta de firmeza na fé, recorramos ao bom pastor, àquele que - dando a vida pelos outros - quer ser, na palavra e na conduta, uma alma movida pelo amor - àquele que talvez seja também um pecador, mas que confia sempre no perdão e na misericórdia de Cristo.

Se a vossa consciência vos reprova por alguma falta - embora não vos pareça uma falta grave - se tendes uma dúvida a esse respeito, recorrei ao sacramento da Penitência. Ide ao sacerdote que vos atende, ao que sabe exigir de vós firmeza na fé, delicadeza de alma, verdadeira fortaleza cristã. Na Igreja existe a mais completa liberdade para nos confessarmos com qualquer sacerdote que possua as necessárias licenças eclesiásticas; mas um cristão de vida limpa recorrerá - com liberdade! - àquele que reconhece como bom pastor, que o pode ajudar a erguer a vista para voltar a ver no céu a estrela do Senhor.

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Ouro, incenso e mirra

Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde” - diz o texto latino com admirável reiteração: ao descobrir novamente a estrela, exultaram com grande alegria. E porquê tanta alegria? Porque eles, que nunca duvidaram, recebem do Senhor a prova de que a estrela não tinha desaparecido; deixaram de a ver sensivelmente mas tinham-na conservado sempre na alma. Assim é a vocação cristã: se não se perde a fé, se se mantém a esperança em Jesus Cristo que estará connosco até à consumação dos séculos, a estrela reaparece. E, ao verificar uma vez mais a realidade da vocação, nasce em nós uma alegria maior, que aumenta a nossa fé, a nossa esperança, o nosso amor.

Ao entrarem na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, pondo-se de joelhos, adoraram-no. Ajoelhemo-nos nós também diante de Jesus, do Deus escondido na humanidade; repitamos-lhe que não queremos voltar as costas ao seu chamamento divino, que nunca nos afastaremos dele; que arredaremos do nosso caminho tudo o que for um estorvo para a fidelidade; que desejamos sinceramente ser dóceis às suas inspirações. Tu, interiormente, e eu também - porque estou a fazer uma oração íntima, com um profundo clamor silencioso - dizemos agora ao Menino que ansiamos por ser tão cumpridores como os servos da parábola, para que também nos possa responder a nós: alegra-te servo bom o fiel.

E, abrindo os seus tesouros, ofereceram-lhe presentes de ouro, incenso e mirra. Detenhamo-nos um pouco para entender este passo do Santo Evangelho. Como é possível que nós, que nada somos e nada valemos, ofereçamos alguma coisa a Deus? Diz a Escritura: toda a dádiva e todo o dom perfeito vem do alto. O homem não consegue descobrir plenamente a profundidade e a beleza dos dons do Senhor: se tu conhecesses o dom de Deus... - responde Jesus à mulher samaritana. Jesus Cristo ensinou-nos a esperar tudo do Pai, a procurar antes de mais o Reino de Deus e a sua justiça, porque tudo o resto se nos dará por acréscimo e Ele conhece bem as nossas necessidades. Na economia da salvação, o nosso Pai cuida de cada alma com amor e delicadeza: cada um recebeu de Deus o seu próprio dom; uns de um modo, outros de outro. Portanto, podia parecer inútil cansarmo-nos, tentando apresentar ao Senhor algo de que Ele precise; dada a nossa situação de devedores que não têm com que saldar as dívidas, as nossas ofertas assemelhar-se-iam às da Antiga Lei, que Deus já não aceita: Tu não quiseste os sacrifícios, as oblações e os holocaustos pelo pecado, nem te são agradáveis as coisas que se oferecem segundo a Lei.

Mas o Senhor sabe que o dar é próprio dos apaixonados e Ele próprio nos diz o que deseja de nós. Não lhe interessam riquezas, nem frutos, nem animais da terra, do mar ou do ar, porque tudo isso lhe pertence. Quer algo de íntimo, que havemos de lhe entregar com liberdade: dá-me, meu filho, o teu coração. Vedes? Se compartilha, não fica satisfeito: quer tudo para si. Repito: não pretende o que é nosso; quer-nos a nós mesmos. Daí - e só daí - advêm todas as outras ofertas que podemos fazer ao Senhor.

Demos-lhe, portanto, ouro: o ouro fino do espírito de desprendimento do dinheiro e dos bens materiais. Não esqueçamos que são coisas boas, que vêm de Deus. Mas o Senhor dispôs que as utilizemos sem deixar que o coração fique preso a elas, pelo contrário, tirando delas proveito para bem da humanidade.

Os bens da terra não são maus; pervertem-se quando o homem os toma como ídolos e se prostra diante deles; mas tornam-se nobres quando os tornamos instrumentos para o bem nalguma actividade cristã de justiça e de caridade. Não podemos correr atrás dos bens económicos, como quem procura um tesouro; o nosso tesouro está aqui, deitado num presépio; é Cristo e nele se há-de concentrar todo o nosso amor, porque onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração.

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Oferecemos incenso: o desejo - que elevamos até ao Senhor - de levar uma vida recta, de que se desprenda o bonus odor Christi, o perfume de Cristo. Impregnar as nossas palavras e acções desse bonus odor é semear compreensão e amizade. Que a nossa vida acompanhe as vidas dos restantes homens, para que ninguém se encontre ou se sinta só. A caridade há-de ser também carinho, calor humano.

Assim no-lo ensina Jesus Cristo. A humanidade havia séculos que esperava a vinda do Salvador; os profetas tinham-no anunciado de mil maneiras; e - embora, por acção do pecado e da ignorância se tivesse perdido grande parte da Revelação de Deus aos homens - conservava-se até aos confins da Terra o desejo de Deus, a ânsia de redenção.

Chega a plenitude dos tempos e, para cumprir essa missão, não aparece um génio filosófico, como Sócrates ou Platão; não se instala na terra um conquistador poderoso, como Alexandre Magno. Nasce um Menino em Belém. É o Redentor do mundo; mas, antes de começar a falar, demonstra o seu amor com obras. Não é portador de nenhuma fórmula mágica, porque sabe que a salvação que nos traz há-de passar pelo coração do homem. As suas primeiras acções são risos e choros de criança, o sono inerme de um Deus humanado; para que fiquemos tomados de amor, para que saibamos acolhê-Lo nos nossos braços.

Uma vez mais consciencializamos que isto é que é o Cristianismo. Se o cristão não ama com obras, fracassa como cristão, o que significa fracassar também como pessoa. Não podes pensar nos outros homens como se fossem números, ou degraus para tu subires; como se fossem massa, para ser exaltada ou humilhada, adulada ou desprezada, conforme os casos. Tens de pensar nos outros - antes de mais, nos que estão ao teu lado - vendo neles o que na verdade são: filhos de Deus, com toda a dignidade que esse título maravilhoso lhes confere.

Com os filhos de Deus, temos de comportar-nos como filhos de Deus: o nosso amor há-de ser abnegado, diário, tecido de mil e um pormenores de compreensão, de sacrifício calado, de entrega silenciosa. Este é o bonus odor Christi que arrancava uma exclamação aos que conviviam com os primeiros cristãos: Vede como se amam!.

Não estou a falar de um ideal distante. O cristão não é um Tartarin de Tarascon, empenhado em caçar leões onde não pode encontrá-los: nos corredores da sua própria casa. Falo, sim, da vida quotidiana e concreta: da santificação do trabalho, das relações familiares, da amizade. Se não somos cristãos nestas coisas, onde podemos sê-lo? O perfume do incenso deve-se ao carvão em brasa que queima sem ostentação uma grande quantidade de grãos. Também o bonus odor Christi se manifesta entre os homens, não como a chama espectacular de um incêndio passageiro, mas mediante a eficácia de todo um rescaldo de virtudes: justiça, lealdade, fidelidade, compreensão, generosidade, alegria.

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E, com os Reis Magos, oferecemos também mirra, isto é, o sacrifício, que não deve faltar na vida cristã. A mirra traz à nossa lembrança a Paixão do Senhor: na cruz, dão-lhe a beber mirra misturada com vinho, e com mirra ungiram o seu corpo para a sepultura. Mas não penseis que meditar na necessidade de sacrifício e da mortificação significa dar uma nota de tristeza a esta festa que comemoramos alegremente no dia de hoje.

Mortificação não é pessimismo nem espírito azedo. A mortificação nada vale sem a caridade: por isso, havemos de procurar mortificações que, além de nos manterem livres em relação às coisas da terra, não mortifiquem os que vivem à nossa volta. O cristão não pode ser um verdugo nem um miserável; há-de ser um homem que sabe ama com obras, que prova o seu amor na pedra de toque da dor.

Mas - insisto - essa mortificação não consistirá habitualmente em grandes renúncias, cuja oportunidade não se nos depara com frequência. Há-de estar feita de pequenas vitórias: ter um sorriso para quem nos incomoda, negar ao corpo o capricho dos bens supérfluos, habituarmo-nos a ouvir os outros, fazer render o tempo que Deus põe à nossa disposição... e tantos outros pormenores, aparentemente insignificantes - contrariedades, dificuldades, dissabores - que surgem ao longo do dia sem os procurarmos.

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Sancta Maria, Stella Orientis

Termino repetindo umas palavras do Evangelho de hoje: ao entrarem em casa, viram o Menino com Maria , sua Mãe. Nossa Senhora não se separa do seu Filho . Os Reis Magos não são recebidos por um rei sentado no trono, mas por um Menino nos braços da Mãe. Peçamos, pois, à Mãe de Deus, que é nossa Mãe, que nos prepare o caminho que conduz à plenitude do amor: Cor Mariæ dulcissimum, iter para tutum! O seu suave coração conhece o caminho mais seguro para encontrarmos Cristo.

Os Reis Magos tiveram uma estrela; nós temos Maria, Stella Maris, Stella Orientis. No dia de hoje, dizemos-lhe: Santa Maria, Estrela do mar, Estrela da manhã, ajuda os teus filhos. O nosso cuidado pelas almas não deve conhecer fronteiras, porque ninguém está excluído do amor de Cristo. Os Reis Magos foram os primeiros dos gentios; mas, depois de consumada a Redenção, já não há judeu nem grego, não há servo nem livre, não há homem nem mulher - não existe descriminação de espécie alguma - porque todos vós sois um só em Jesus Cristo.

Nós cristãos, não podemos ser exclusivistas, nem separar ou catalogar as almas; virão muitos do Oriente e do Ocidente; todos cabem no coração de Cristo. Voltamos a contemplá-lo no presépio; os seus braços são de menino mas são os mesmos que se abrirão na Cruz, atraindo todos os homens.

E o nosso pensamento vai também para esse homem justo, Nosso Pai e Senhor, S. José, que, como habitualmente, passa despercebido na cena da Epifania. Pressinto-o recolhido em contemplação, protegendo com amor o Filho de Deus, que, ao fazer-se homem, foi confiado à sua atenção paternal. Com a maravilhosa delicadeza de quem não vive para si, o Santo Patriarca entrega-se com um espírito de sacrifício tão silencioso como eficaz.

Falámos hoje da vida de oração e do afã de apostolado. Queremos porventura melhor mestre nesta matéria do que S. José? Se quereis que vos dê um conselho, dir-vos-ei - com palavras que venho a repetir incansavelmente desde há muitos anos: Ite ad Joseph, recorrei a S. José; ele vos mostrará caminhos concretos e meios humanos e divinos para chegar a Jesus. E em breve ousareis, tal como ele, segurar nos braços, beijar, vestir e cuidar deste Menino Deus que nasceu para nós. Em sinal de veneração, os Magos ofereceram a Jesus ouro, incenso e mirra; José deu-lhe plenamente o coração jovem, cheio de amor.

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A Igreja inteira reconhece S. José como seu protector e padroeiro. Ao longo dos séculos tem-se falado dele, sublinhando diversos aspectos da sua vida, sempre fiel à missão que Deus lhe confiara. Por isso, desde há muitos anos, me agrada invocá-lo com um título carinhoso: Nosso Pai e Senhor.

S. José é realmente Pai e Senhor, protegendo e acompanhando no seu caminho terreno aqueles que o veneram, como protegeu e acompanhou Jesus enquanto crescia e se fazia homem. Ganhando intimidade com ele descobre-se que o Santo Patriarca é, além disso, Mestre da vida interior, porque nos ensina a conhecer Jesus, a conviver com Ele, a tomar consciência de que fazemos parte da família de Deus. E S. José dá-nos essas lições sendo, como foi, um homem corrente, um pai de família, um trabalhador que ganhava a vida com o esforço das suas mãos. Este facto possui também, para nós, um significado que é motivo de reflexão e de alegria.

Ao celebrar hoje a sua festa, quero evocar a sua figura, recordando o que dele nos diz o Evangelho para podermos assim descobrir melhor o que, através da vida simples do Esposo de Santa Maria, nos transmite Deus.

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A figura de S. José no Evangelho

Tanto S. Mateus como S. Lucas nos falam de S. José como varão descendente de uma estirpe ilustre: a de David e de Salomão, reis de Israel. Historicamente, os pormenores dessa descendência são algo confusos. Não sabemos qual das duas genealogias que os evangelistas trazem corresponde a Maria - Mãe de Jesus, segundo a carne - e qual a S. José, que era seu Pai segundo a lei judaica. Nem sabemos se a cidade natal de José era Belém, onde se dirigiu para se recensear, ou Nazaré, onde vivia e trabalhava.

Sabemos, no entanto, que não era uma pessoa rica; era um trabalhador como milhões de homens no mundo. Exercia o ofício fatigante e humilde que Deus escolheu também para Si quando tomou a nossa carne e viveu trinta anos como uma pessoa mais entre nós.

A Sagrada Escritura diz que José era artesão. Vários Padres acrescentam que foi carpinteiro. S. Justino, falando da vida de trabalho de Jesus, afirma que fazia arados e jugos. Baseando-se talvez nestas palavras, Santo Isidoro de Sevilha concluiu que José era ferreiro. De qualquer modo era um operário que trabalhava ao serviço dos seus concidadãos, que tinha uma habilidade manual, fruto de anos de esforço e de suor.

Das narrações evangélicas depreende-se a grande personalidade humana de S. José: em nenhum momento nos aparece como um homem diminuído ou assustado perante a vida; pelo contrário, sabe enfrentar-se com os problemas, superar as situações difíceis, assumir com responsabilidade e iniciativa os trabalhos que lhe são encomendados.

Não estou de acordo com a forma clássica de representar S. José como um homem velho, apesar da boa intenção de se destacar a perpétua virgindade de Maria. Eu imagino-o jovem, forte, talvez com alguns anos mais do que a Virgem, mas na pujança da vida e das forças humanas.

Para viver a virtude da castidade não é preciso ser-se velho ou carecer de vigor. A castidade nasce do amor; a força e a alegria da juventude não constituem obstáculo para um amor limpo. Jovem era o coração e o corpo de S. José quando contraiu matrimónio com Maria, quando conheceu o mistério da sua Maternidade Divina, quando vivei junto d'Ela respeitando a integridade que Deus lhe queria oferecer ao mundo como mais um sinal da sua vinda às criaturas. Quem não for capaz de compreender um amor assim conhece muito mal o verdadeiro amor e desconhece por completo o sentido cristão da castidade.

Como dizíamos, José era artesão da Galileia, um homem como tantos outros. E que pode esperar da vida um habitante de uma aldeia perdida, como era Nazaré? Apenas trabalho, todos os dias, sempre com o mesmo esforço. E, no fim da jornada, uma casa pobre e pequena, para recuperar as forças e recomeçar o trabalho no dia seguinte.

Mas o nome de José significa em hebreu Deus acrescentará. Deus dá à vida santa dos que cumprem a sua vontade dimensões insuspeitadas, o que a torna importante, o que dá valor a todas as coisas, o que a torna divina. À vida humilde e santa de S. José, Deus acrescentou - se me é permitido falar assim - a vida da Virgem Maria e a de Jesus Nosso Senhor. Deus nunca se deixa vencer em generosidade. José podia fazer suas as palavras que pronunciou Santa Maria, sua Esposa: Quia fecit mihi magna qui potens est, fez em mim grandes coisas Aquele que é todo poderoso quia respexit humilitatem, porque pôs o seu olhar na minha pequenez.

José era efectivamente um homem corrente, em quem Deus confiou para realizar coisas grandes. Soube viver exactamente como o Senhor queria todos e cada um dos acontecimentos que compuseram a sua vida. Por isso, a Sagrada Escritura louva José, afirmando que era justo. E, na língua hebreia, justo quer dizer piedoso, servidor irrepreensível de Deus, cumpridor da vontade divina; outras vezes significa bom e caritativo para com o próximo.

Numa palavra, o justo é o que ama a Deus e demonstra essa amor, cumprindo os seus mandamentos e orientando toda a sua vida para o serviço dos seus irmãos, os homens.

(cont)