São Josemaria Escrivá
Cristo que passa
1
Começa o ano litúrgico e o
intróito da Missa propõe-nos uma consideração intimamente relacionada com o
princípio da nossa vida cristã: a vocação que recebemos.
Vias tuas, Domine, demonstra mihi et semitas tuas edoce me,
mostra-me Senhor os teus caminhos e ensina-me as tuas veredas.
Pedimos ao Senhor que no
guie, que nos deixe ver os seus passos, para que possamos aspirar à plenitude
dos seus mandamentos que é a caridade.
Julgo que vós, tal como eu,
ao pensar nas circunstâncias que acompanharam a vossa decisão de vos
esforçardes por viver integralmente a fé, dareis muitas graças ao Senhor e
tereis a convicção sincera - sem falsas humildades - de que não há mérito algum
da vossa parte.
Geralmente, aprendemos a
invocar Deus desde a infância, dos lábios de pais cristãos. Mais adiante,
professores, companheiros e simples conhecidos ajudaram-nos de muitas maneiras
a não perder de vista Jesus Cristo.
Um dia (não quero
generalizar; abre o coração ao Senhor e conta-lhe tu a história) talvez um
amigo, um cristão normal e corrente como tu, te tenha feito descobrir um
panorama profundo e novo e ao mesmo tempo tão antigo como o Evangelho.
Sugeriu-te a possibilidade
de te empenhares seriamente em seguir Cristo, em ser apóstolo de apóstolos.
Talvez tenhas perdido
então a tranquilidade e não a terás recuperado, convertida em paz, até que,
livremente, "porque muito bem te apeteceu" - que é a razão mais
sobrenatural - respondeste a Deus que sim.
E veio a alegria, vigorosa,
constante, que só desaparece quando te afastas d'Ele.
Não me agrada falar de
escolhidos nem de privilegiados.
Mas é Cristo quem fala
disso, quem escolhe. É a linguagem da escritura: elegit nos in ipso ante mundi
constitutionem - diz S. Paulo - ut essemus
sancti, escolheu-nos antes da criação do mundo para sermos santos.
Eu sei que isto não te
enche de orgulho, nem contribui para que te consideres superior aos outros
homens.
Essa escolha, raiz do teu
chamamento, deve ser a base da tua humildade.
Costuma levantar-se
porventura algum monumento aos pincéis dum grande pintor? Serviram para fazer
obras-primas mas o mérito é do artista.
Nós - os cristãos - somos
apenas instrumentos do Criador do mundo, do Redentor de todos os homens.
2
Os
Apóstolos, homens correntes
A mim, anima-me muito
considerar um precedente, narrado passo a passo, nas páginas do Evangelho: a
vocação dos primeiros doze.
Vamos meditá-la devagar,
pedindo a essas santas testemunhas do Senhor que saibamos seguir Cristo como eles
o fizeram.
Aqueles primeiros doze
apóstolos - a quem tenho grande devoção e carinho - eram, segundo os critérios
humanos, bem pouca coisa.
Quanto à posição social,
com excepção de Mateus - que com certeza ganhava bem a vida e deixou tudo
quando Jesus lhe pediu - eram pescadores; viviam do dia-a-dia, trabalhando até
de noite para poderem alcançar o seu sustento.
Mas a posição social é o
de menos.
Não eram cultos, nem
sequer muito inteligentes, pelo menos no que diz respeito às realidades
sobrenaturais.
Até os exemplos e as
comparações mais simples lhes eram incompreensíveis e pediam ao Mestre: Domine, edissere nobis parabolam, Senhor,
explica-nos a parábola.
Quando Jesus, com uma
imagem, alude ao fermento dos fariseus, supõem que os está a recriminar por não
terem comprado pão.
Pobres, ignorantes.
E nem sequer eram simples,
humildes.
Dentro das suas
limitações, eram ambiciosos. Muitas vezes discutem sobre quem seria o maior,
quando - segundo a sua mentalidade - Cristo instaurasse na terra o reino definitivo
de Israel.
Discutem e excitam-se até
naquela hora sublime em que Jesus está prestes a imolar-se pela humanidade, na
intimidade do Cenáculo.
Fé?
Pouca.
O próprio Jesus Cristo o
diz.
Viram ressuscitar mortos,
curar todo o tipo de doenças, multiplicar o pão e os peixes, acalmar
tempestades, expulsar demónios.
Pois S. Pedro, escolhido
como cabeça, é o único que sabe responder com prontidão: Tu és o Cristo, Filho
de Deus vivo.
Mas é uma fé que ele
interpreta à sua maneira; por isso atreve-se a enfrentar Jesus Cristo, a fim de
que Ele não se entregue pela redenção dos homens.
E Jesus tem de
responder-lhe: Retira-te de mim, Satanás; tu serves-me de escândalo, porque não
tens a sabedoria das coisas de Deus mas das coisas dos homens.
Pedro raciocinava humanamente,
comenta S. João Crisóstomo, e concluía que tudo aquilo (a Paixão e a Morte) era
indigno de Cristo, reprovável.
Por isso Jesus repreende-o
e diz-lhe: não, sofrer não é coisa indigna de Mim; tu pensas assim porque
raciocinas com ideias carnais, humanas.
Em que sobressaem então
aqueles homens de pouca fé?
Talvez no amor a Cristo?
Sem dúvida que O amavam,
pelo menos de palavra.
Chegam até a deixar-se
arrebatar pelo entusiasmo: Vamos nós também e morramos com Ele.
Mas à hora da verdade,
todos hão-de fugir, excepto João, que O amava com obras e de verdade. Só este
adolescente, o mais jovem dos Apóstolos, permanece junto da cruz.
Os outros não sentiam esse
amor tão forte como a morte.
Eram estes os discípulos
escolhidos pelo Senhor; assim os escolhe Cristo; assim se comportavam antes de
que, cheios do Espírito Santo, se tornassem colunas da Igreja. São homens
correntes, com defeitos, com debilidades, com palavras maiores do que as suas
obras.
E, contudo, Jesus chama-os
para fazer deles pescadores de homens, corredentores, administradores da graça
de Deus.
3
Sucedeu connosco uma coisa
semelhante.
Sem grande dificuldade,
poderíamos encontrar na nossa família, entre os nossos amigos e companheiros -
para não me referir já ao imenso panorama do mundo - tantas pessoas mais dignas
do que nós de receber o chamamento de Cristo.
Mais simples, mais sábias,
mais influentes, mais importantes, mais gratas, mais generosas...
Eu, ao pensar nisto, fico
envergonhado.
Mas compreendo também que
a nossa lógica humana não serve para explicar as realidades da graça.
Deus costuma procurar
instrumentos fracos para que se manifeste com evidente clareza que a obra é
sua.
O próprio S. Paulo evoca
com estremecimento a sua vocação; e por último, depois de todos, foi também visto
por mim, como por um aborto.
Porque eu sou o mínimo dos
apóstolos, que não sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja
de Deus.
Assim escreve Paulo de
Tarso, homem de uma personalidade e de um vigor que a história não fez mais do
que engrandecer.
Fomos chamados sem mérito
algum da nossa parte, dizia-vos.
Realmente, na base da
nossa vocação está o conhecimento da nossa miséria, a consciência de que as
luzes que iluminam a alma - a fé - o amor com que amamos - a caridade - e o
desejo que nos mantém - a esperança - são dons gratuitos de Deus.
Por isso, não crescer em
humildade significa perder de vista o objectivo da escolha divina: ut essemus
sancti, a santidade pessoal.
Agora, tomando como ponto
de partida essa humildade, podemos compreender toda a maravilha da chamada
divina.
A mão de Cristo colheu-nos
num trigal: o semeador aperta na sua mão chagada o punhado de trigo; o sangue
de Cristo banha a semente, empapa-a.
Depois, o Senhor lança ao
ar esse trigo, para que, morrendo, seja vida e, afundando-se na terra, seja
capaz de multiplicar-se em espigas de oiro.
4
É
hora de despertar
A Epístola da Missa
recorda-nos que temos de assumir esta responsabilidade de apóstolos com novo
espírito, com ânimo, despertos.
Porque já é hora de nos
levantarmos do sono. Porquanto agora está mais perto a nossa salvação do que
quando abraçámos a fé.
A noite está quase passada
e o dia aproxima-se.
Deixemos, pois, as obras
das trevas e revistamo-nos das armas da luz.
Dir-me-eis que isso não é
fácil, e não vos faltará razão.
Os inimigos do homem, que
são os inimigos da santidade, procuram impedir essa vida nova, que é
revestirmo-nos com o espírito de Cristo.
Não conheço melhor
enumeração dos obstáculos à fidelidade cristã do que a que nos dá S. João: concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum
et superbia vitae.
Tudo o que há no mundo é
concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba de vida.