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Civita Dei |
A
CIDADE DE DEUS
Vol. 1
LIVRO
VIII
CAPÍTULO
XXV
O que pode haver de comum
nos santos anjos e nos homens.
De
forma nenhuma se deve, portanto, procurar a benevolência e a beneficência dos
deuses bons, ou melhor, dos anjos bons, pela pretensa mediação dos demónios,
mas pela imitação da boa vontade dos anjos, pela qual estamos com eles, com
eles vivemos e com eles adoramos o Deus que eles adoram, embora não os possamos
ver com os nossos olhos carnais.
É
na medida em que a dissemelhança da nossa vontade e a fragilidade da nossa
débil natureza nos torna miseráveis que nós deles estamos afastados, não pelo
lugar do corpo mas pelo mérito da vida. O que nos impede de nos unirmos a eles
não é o facto de habitarmos na terra numa condição carnal, é o gosto do nosso
coração impuro pelos bens terrenos. Quando sararmos para sermos tais quais eles
são, então aproximar-nos-emos deles pela fé, se acreditarmos que pela sua
assistência, Aquele que fez a felicidade deles fará a nossa.
CAPÍTULO XXVI
Toda a religião dos pagãos
se reduz ao culto dos homens mortos.
Bom
é que se preste a devida atenção à maneira como o dito egípcio se exprime
quando se lamenta por estar a chegar o tempo em que do Egipto desaparecerão
estas instituições, obras, como ele confessa, de homens perdidos nos seus
graves erros, incrédulos e cheios de aversão pelo culto da religião divina.
Entre outras coisas diz ele:
Então
esta terra, santíssima sede de santuários e de templos, ficará toda cheia de
sepulcros e de mortos [i],
como
se, caso não desaparecesse aquele culto, os homens não tivessem que morrer ou
tivessem que ser sepultados em lugar diferente da terra. Com certeza que, à
medida que forem passando os tempos e os dias, irá aumentando também o número
dos sepulcros porque irá aumentando o número dos mortos.
Mas
o que parece entristecê-lo é que aos templos e aos santuários dos ídolos iriam
suceder os monumentos dos nossos mártires, de maneira que, ao lerem isto os que
são animados duma mentalidade oposta e hostil à nossa, pensarão que adoramos os
mortos nos túmulos como os pagãos adoravam os deuses nos templos. A cegueira
dos ímpios é tão grande que, a bem dizer, chegam a chocar contra as montanhas,
recusando-se a ver o que salta aos olhos. Não reparam que em todos os escritos
pagãos não se encontram, ou dificilmente se encontram, deuses que não tenham
sido homens que, uma vez falecidos, se tomaram objecto de honras divinas. Ponho
de parte a afirmação de Varrão, ou seja: que todos os mortos são por eles
considerados deuses — os deuses manes. Prova-o com os ritos sagrados oferecidos
a quase todos os mortos, nomeadamente com os jogos fúnebres, sinal máximo, para
ele, da sua divindade, pois estes jogos são ordinariamente reservados aos
deuses.
O
próprio Hermes, de quem agora se trata, no mesmo livro em que parece prever o
futuro, exclama pesaroso:
Então
esta terra, santíssima de santuários e de templos, ficará toda cheia de
sepulcros e de mortos [ii],
testemunhando
assim que os deuses do Egipto mais não são que homens mortos. Com efeito,
depois de ter declarado que os seus antepassados cometeram graves erros acerca
da noção dos deuses e, incrédulos, sem consideração pelo culto e pela religião
divina, inventaram a arte de fabricar deuses, acrescenta:
A
esta inventada arte, juntaram uma virtude apropriada tirada da natureza do
mundo; misturaram-na com aquela mas, como não podiam fazer almas, evocaram
almas de demónios ou de anjos, infundindo-as nas imagens santas e nos mistérios
divinos para que, mercê dessas almas, os ídolos tivessem o poder de praticar o
bem e o mal [iii].
Continua
a seguir, como que a querer provar isto com exemplos:
Teu
avô, ó Asclépio, foi o primeiro inventor da medicina. Dedicaram-lhe um templo
no monte da Líbia, perto da Praia dos Crocodilos. E lá que repousa o homem que
ele foi, isto é, o seu corpo. Porém o resto dele, ou antes ele todo — se é que
o homem todo está no sentimento da vida — , voltou ao Céu numa condição melhor,
e agora, com a sua divindade, presta aos homens enfermos os socorros que costumava
prestar com a arte da medicina [iv].
Ei-lo
pois a afirmar que um morto é adorado como um deus no próprio lugar onde tinha
a sua sepultura. Mas engana-se e engana-nos ao dizer que ele voltou ao Céu.
Acrescenta ainda o seguinte:
Hermes,
o avô de quem eu tenho o nome, não assiste e não cura, na cidade em que habita
(a) e que traz o seu nome, todos os mortais que de toda a parte até ele acorrem [v].
Realmente
Hermes «o antigo», ou seja, Mercúrio, que ele afirma ser seu avô, reside, ao
que se diz, em Hermópolis, cidade que dele tirou o nome. Aí estão, pois, dois
deuses — Esculápio e Mercúrio — que, na sua opinião, foram homens. Acerca de
Esculápio, gregos e latinos pensam o mesmo. Quanto a Mercúrio muitos pensam que
ele não foi um mortal, embora o nosso Hermes afirme que ele foi seu avô. Mas na
realidade este é um e aquele é outro, embora tenham o mesmo nome. Não insisto
se um é distinto do outro. O certo é que este, como Esculápio, de homem se
tornou deus, segundo o testemunho de seu neto Trismegisto, varão de tão grande
autoridade entre os seus.
Acrescenta
ainda:
Quanto
a ísis, esposa de Osíris, sabemos quanto de bem ela fa z se está propícia, e
quanto pode prejudicar se está irada [vi].
Depois,
para mostrar que são deste género os deuses feitos pelos homens com a dita arte
(dá assim a entender que os demónios, na sua opinião, provêm de almas de mortos
que foram encerradas em estátuas, mercê da dita arte inventada por homens
presos a graves erros, incrédulos e irreligiosos — pois esses que tais deuses
faziam, almas é que não podiam fazer), depois de ter dito acerca de ísis o que
já referi:
Quanto
ela pode prejudicar se está irada6, acrescenta logo a seguir: Na verdade os
deuses da terra e do mundo facilmente se irritam, pois são formados e compostos
pelos homens de uma dupla natureza [vii].
Diz
ele ex utraque natura (duma dupla natureza), ou seja, de alma e
corpo, sendo a alma o demónio, e o corpo o ídolo. E prossegue:
Daí
resulta que os ídolos são chamados pelos egípcios «santos animais» e que as
diversas cidades honram as almas daqueles que foram divinizados em vida,
chegando a viver sob as suas leis e a tomar o seu nome [viii].
Onde
estão as fúnebres lamentações de Hermes pela terra do Egipto, sede santíssima
de santuários e de templos que um dia ficará toda cheia de sepulcros e de
mortos? Realmente, o espírito falacioso, que a Hermes inspirava estas
lamentações, foi obrigado a confessar, por seu intermédio, que esta terra
estava já repleta de sepulcros e de mortos adorados pelos egípcios como deuses.
Mas, por seu intermédio, era a dor dos demónios que se expressava: lamentavam
estes a eminência das suas penas junto das «memórias» dos santos mártires. E
que será em muitos destes sítios que eles sofrerão torturas, farão confissões e
serão expulsos dos corpos dos possessos.
CAPÍTULO XXVII
Maneira de os cristãos
honrarem os mártires.
E,
todavia, nós não instituímos para estes mesmos mártires nem templos, nem sacerdócio,
nem ritos sagrados, nem sacrifícios porque, para nós, eles não são deuses: o
Deus deles é o nosso Deus. E certo que veneramos as suas «memórias» como santos
homens de Deus, que até à morte combateram pela verdade para fazerem conhecer a
verdadeira religião, provando a falsidade, a mentira do paganismo. Se antes
deles homens houve que partilharam de tais sentimentos, por medo esses homens
tais sentimentos reprimiam.
Quem
dentre os fiéis já alguma vez ouviu um sacerdote, de pé, diante do altar, mesmo
diante de um altar construído para a glória e o culto de Deus sobre o corpo de
um santo mártir, dizer nas suas orações: «ofereço-te este sacrifício ó Pedro, ó
Paulo, ó Cipriano» pois é diante das suas «memórias» que o sacrifício é
oferecido ao Deus que fez os homens e os mártires, associando-os aos seus
santos anjos na glória celeste? É também nessa solenidade que nós rendemos
graças ao verdadeiro Deus pela sua vitória e nos exortamos pela renovação da
sua memória a partilharmos das suas coroas e das suas palmas \ invocando a
protecção de Deus.
Todas
as homenagens trazidas pelos fiéis aos túmulos dos mártires são, portanto,
testemunhos prestados à sua memória — não são ritos nem sacrifícios oferecidos
aos mortos como se deuses fossem.
Alguns
transportam para lá mesmo alimentos — o que não fazem os melhores cristãos e,
na maior parte das terras não há esse costume. Aliás, os que o fazem, depois de
colocarem os alimentos sobre o túmulo e de recitarem as suas orações, levam-nos
para os comerem ou mesmo para os distribuírem pelos indigentes, desejando
apenas santificá-los pelos méritos dos mártires em nome do Senhor dos mártires.
Mas quem conhece o único sacrifício dos cristãos que também lá é oferecido,
sabe que não se trata de sacrifícios oferecidos aos mártires.
Nós
não veneramos os nossos mártires nem com honras divinas nem com crimes humanos
como fazem os pagãos com os seus deuses. Nós não lhes oferecemos sacrifícios
nem transformamos as torpezas em cerimónias sagradas. Pelo contrário, acerca de
ísis, esposa de Osíris, deusa do Egipto, e acerca dos seus antepassados que,
segundo consta das suas escrituras, foram todos reis (esta Isis quando oferecia
um sacrifício aos seus antepassados encontrou um feixe de cevada e apresentou
as espigas ao rei, seu marido, e a Mercúrio, conselheiro deste rei — donde
pretenderem que ela e Ceres são a mesma), acerca de Isis e dos seus
antepassados leiam os que quiserem e puderem, e nisso meditem os que já leram,
quantas e quão grandes são as maldades destes (contadas não por poetas, mas
constantes dos seus livros religiosos) que Alexandre relatou por escrito a sua
mãe Olimpíada de acordo com as revelações do sacerdote Leão — e verão a favor
de que homens, depois de mortos, e de que factos foi instituído culto como se
deuses fossem!
Não
ousem comparar, seja no que for, tais deuses, mesmo que os tomem por deuses,
aos nossos santos mártires que, mesmo assim, não tomamos por deuses. Nós não
instituímos sacerdotes em sua honra, nós não lhes oferecemos sacrifícios — o
que seria inconveniente, abusivo, ilícito, pois só a Deus estão reservados. Nem
nos divertimos com os seus crimes nem com esses jogos torpes com que celebram
as infâmias dos seus deuses — quer eles as tenham cometido quando eram homens,
quer as tenham inventado, se as não cometeram, para agrado dos maléficos
demónios. Não foi a um demónio deste género que Sócrates teve como Deus, se é
que algum teve! Mas com certeza, querendo sobressair nessa arte, foram eles que
proporcionaram um deus semelhante a um homem inocente e alheio àquela arte de
fabricar deuses.
Para
quê mais? Ninguém duvida, por muito pouco esperto que seja, de que estes
espíritos não devem ser venerados, tendo em mira a vida bem-aventurada que virá
depois da morte. Mas dirão talvez: todos os deuses são bons, mas, quanto aos
demónios, uns são bons outros são maus. Aos considerados bons é que se deve
prestar culto para se chegar à vida eternamente feliz.
No
próximo livro veremos quanto vale esta opinião
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Asclepius,
XXVIV , ed. Festugière-Nock, p. 327.
[ii] Id.
Ib., XXXVII, p. 348.
[iii] Id.
Ib., XXXVIII, p. 347-348.
[iv] Id.
Ib., XXVII, p. 347.
[v] Id.
Ib., XXXVIII, p. 347-348.
[vi] Id.
Ib., XXVII, p. 346.
[vii] Asclepius,
XXXVII, ed. cit. p. 348.